No último dia 1 de maio completaram-se 155 anos da assinatura do Tratado secreto da Tríplice Aliança entre o então Império do Brasil, a Argentina governada por Bartolomé Mitre e o Uruguai controlado pelo caudilho Venancio Flores. Esse documento selou o caráter de conquista e extermínio da guerra contra o Paraguai [1864-1870]. O Tratado estabelecia a divisão do território e a pilhagem de guerra entre os governos signatários, além de impor uma dívida – para cobrir os custos de uma guerra que causou sua própria destruição – ao Paraguai. O peso dessa dívida seria arrastado até a década de 1940. Reproduzimos um artigo do historiador Ronald León Núñez, publicado em Assunção no passado 1 de março, em ocasião do 150º aniversário do final da maior contenda bélica interamericana.
O conflito entre o Paraguai e a Tríplice Aliança foi encerrado há 150 anos com o último disparo em Cerro Corá, mas a guerra entre interpretações historiográficas continua no papel e nas tribunas porque, apesar de nas últimas décadas uma nova geração de historiadores acadêmicos proclamar o advento de uma “renovação historiográfica” e tentar nos convencer de que é possível escrever uma história neutra, “objetiva” da contenda bélica mais mortífera da história sul-americana, a guerra segue sendo “a continuação da política por outros meios”, como sentenciou Clausewitz.
Para aqueles que pretendem associar o método marxista – que nós aplicamos – ao nacionalismo burguês paraguaio ou o revisionismo histórico argentino, é necessário elucidar o que, em nossa opinião, não está em debate:
1) Uma combinação excepcional de fatores externos e internos fez com que as tarefas próprias da revolução democrático-burguesa anticolonial – sem chegar a ser social, como no Haiti – avançassem relativamente mais que em outras áreas da região.
A incipiente burguesia paraguaia, para se defender e aumentar sua acumulação, implementou uma política agrária baseada em: nacionalização de 90% das terras e concessão de arrendamentos a custo moderado para o campesinato pobre e mestiço; controle estatal dos principais itens de exportação e regulação pública do mercado interno; fortalecimento das forças armadas para a defesa da independência nacional e, evidentemente, para sua própria proteção.
Mas esse progresso, que vivenciou um salto a partir da década de 1850, foi feito sobre a base de forças produtivas muito atrasadas em relação aos seus poderosos vizinhos. Sem negar o mérito dos avanços materializados por meio de uma política estatista e protecionista, não aderimos ao mito do Paraguai-potência econômica e militar. Pelo contrário, consideramos que o Paraguai, apesar desses avanços, manteve o caráter de nação oprimida, herdado do período colonial.
2) Não é admissível o culto à personalidade do doutor Francia e dos López, considerados “heróis da pátria” e, em certos meios de esquerda, promotores de um suposto projeto “protossocialista”. Este é um delírio causado pela febre nacionalista que, lamentavelmente, contagiou boa parte dos chamados “setores progressistas”. Desvario que o marxismo não pode endossar.
Embora identifiquemos que o modelo estatista se mostrou superior ao modelo livre-cambista que foi aplicado no restante do Rio da Prata e no então Império do Brasil, não podemos ocultar que o doutor Francia e os López impulsionaram este modelo não para melhorar as condições de vida das classes exploradas – seus governos mantiveram a submissão do indígena, o “enganche” dos peões nos ervais1 e a escravidão negra – mas para o benefício da embrionária burguesia nacional.
O regime político que sustentou esses avanços (capitalistas) não apenas se valeu destes modos de produção (pré-capitalistas), mas se consolidou na forma de ditaduras pessoais, baseadas no fortalecimento crescente do militarismo.
Em síntese, rechaçamos a concepção do Paraguai do pré-Guerra como um “paraíso social” para o comum. Nem protossocialismo francista nem anti-imperialismo lopista: ambas são leituras anacrônicas. Nossa história entre 1811 e 1870 é a de um capitalismo “em formação”, que partiu de muito atrás.
O Estado nacional estava a serviço do fortalecimento de uma burguesia que explorava sem dó a força de trabalho local mas que, por sua própria conveniência e fragilidade, manteve um modelo independente – que não deve ser entendido como inteiramente “isolado” –, estatista, protecionista, oposto ao modelo do laissez-faire que comandava a região.
Livrado o terreno desses possíveis mal-entendidos, apontemos o que, entre outros temas, está sim em debate: 1) o caráter da guerra; 2) a discussão sobre se existiu ou não um genocídio; 3) a suposta “neutralidade” britânica.
A polêmica fundamental reside na definição da natureza da guerra, porque nem todas as guerras são iguais: foi civilizadora ou reacionária – mais precisamente, de conquista de uma nação oprimida?; o objetivo político – traduzido no terreno militar – da Tríplice Aliança era libertar o povo paraguaio da opressão ou “destruir os monopólios” e acabar de fato com a independência política do Estado paraguaio, ainda que isso significasse o extermínio de uma nacionalidade que defendeu sua soberania e seu modo de vida?
Para nós, foi uma guerra de conquista e extermínio de uma nacionalidade oprimida. Os governos aliados jamais se interessaram pela sorte do povo paraguaio, mas em impor, pela força, o livre-comércio em benefício de suas respectivas burguesias, que por sua vez eram sócias menores do Reino Unido, potência hegemônica da época.
O próprio general Mitre o reconheceu em um artigo escrito em 10 de dezembro de 1869 no contexto de uma polêmica pública: “Os soldados aliados, e muito particularmente os argentinos, não foram ao Paraguai para derrubar uma tirania […mas] para reivindicar a livre navegação dos rios, reconquistar suas fronteiras de fato e de direito […] e faríamos o mesmo se em vez de um governo monstruoso e tirano como o de López tivéssemos sido insultados por um governo mais liberal e mais civilizado […] Não se mata a bala um povo, não se incendeia seus lares, não se rega seu território de sangue, dando como razão de tal guerra a derrubada de uma tirania a despeito de seus próprios filhos que a sustentam ou a apoiam”2.
Como diriam os juristas: a confissão dispensa a prova.
Cabe compreender que, se o choque fosse entre um modelo estatista-protecionista e outro livre-cambista e sujeito ao capital estrangeiro, então a causa paraguaia foi a causa de uma nação oprimida que lutou por seu direito a existir.
Pois bem, compreender a causa do Paraguai não significa respaldar sua direção político-militar, encarnada em Solano López e seu séquito de “cem cidadãos proprietários”. Se existe um “herói” nesta guerra, foi o povo paraguaio, e não sua classe dominante.
Passemos a discutir o problema do genocídio. Os números são sempre polêmicos, mas se assumimos as cifras apresentadas pelo historiador brasileiro Francisco Doratioto, o Império brasileiro mobilizou 1,52% de sua população total; a Confederação Argentina, 1,72%; e o Uruguai, 2,23%3. Essas proporções, na atualidade, equivaleriam a uma invasão de mais de quatro milhões de soldados ao Paraguai. Sem contar que as tropas aliadas estavam equipadas com o armamento mais moderno e, sobretudo, contavam com a poderosa frota encouraçada imperial.
O exército paraguaio enfrentou essa força colossal com fuzis de pederneira, canhões alma lisa e uma “frota de guerra” composta por embarcações mercantes com casco de madeira. A qual “terrível ameaça” se referem os historiadores liberais quanto repetem que a Tríplice Aliança não fez mais que se “defender” desse Paraguai quase desarmado?
No caso paraguaio, ao menos a partir de 1866, o conflito derivou em uma guerra total: significou a mobilização de todos os recursos da nação para repelir os invasores. E o resultado responde à questão sobre se houve ou não “genocídio”: em 1870, entre 60 e 69% da população, estimada em 450.000 pessoas antes do início das hostilidades, desaparecera4. Em contraste, os três países aliados perderam 0,64% de sua população total5. Em outros termos, mais de 80% de mortalidade coube ao povo paraguaio.
Como qualificar semelhante grau de mortandade, que o próprio historiador liberal Thomas Whigham admite representar “uma porcentagem enorme, praticamente sem precedentes na história de uma nação moderna”6?
De nossa parte, não encontramos melhor definição que a de genocídio. Embora isso esteja em discussão. Os historiadores liberais, sobretudo brasileiros, não a admitem ou preferem categorias mais suaves. Mas isso é completamente normal. Esperar o reconhecimento de que existiu um genocídio, por parte dos Estados brasileiro ou argentino e seus escrivães, seria tão ingênuo como esperar que os turcos assumissem o genocídio contra o povo armênio.
Muitos historiadores liberais asseguram que não é adequado usar o termo “genocídio” porque, por mais que esse tenha sido o resultado da guerra, semelhante grau de mortalidade não foi uma ação “deliberada” por parte dos Aliados. Em outras palavras, admitem que existiu um extermínio descomunal, mas tremem na hora de chamar as coisas pelo seu nome.
Se aceitarmos como evidência a carta que Caxias escreveu a Pedro II em 1867 dizendo que, para encerrar a guerra, seria necessário “transformar em fumaça e pó toda a população paraguaia […] para matar até os fetos no ventre das mulheres […]”7; ou se considerarmos o que escreveu Sarmiento à senhora Mary Mann em 1869: “não acredite que sou cruel. É providencial que um tirano tenha feito morrer todo esse povo guarani. Era preciso purgar a terra dessa excrecência humana”8, como é possível assegurar, taxativamente, que não existiu nenhuma ação “deliberada” para prolongar a guerra até concretizar esse “expurgo”?
Doratioto diz que o elevado número de mortes se deveu principalmente “[…] à fome, doenças ou cansaço como consequência da marcha forçada de civis para o interior”9. Este argumento é repetido por outros acadêmicos. No entanto, mesmo que esse fosse o caso, é possível separar essas penúrias da existência mesma da guerra? Acaso sugerem que isso poderia ocorrer sem que existisse uma guerra total no país?
O genocídio é um fato inquestionável. Qualquer pretensão de negar este crime contra a humanidade com o argumento de que não foi encontrada documentação oficial com ordens explicitas de aniquilar a população civil, à luz dos fatos não passa de um abuso da paciência e, sobretudo, de uma inaceitável subestimação da inteligência de qualquer indivíduo crítico.
Finalmente, sobre o assunto da interferência britânica, não compreendemos aqueles que a negam com o argumento de que “não existem evidencias”. Se extremássemos esse método, empirista e indutivo até a medula, é possível imaginar que a “estrita neutralidade” britânica somente poderia ser julgada se, em algum arquivo londrino, aparecesse uma foto da própria rainha Vitória tomando chá com Pedro II, Mitre e Venancio Flores, enquanto contemplam um mapa do Paraguai.
Porém mesmo que assumíssemos esse neopositivismo e autocerceássemos qualquer tipo de dedução, existem “provas” suficientes de que o Reino Unido não foi neutro. Nem seus banqueiros nem seu governo nem seu parlamento.
Como apresentamos em outra edição desse suplemento: 1) entre 1860 e 1865, a monarquia brasileira recebeu 12.191.900 libras esterlinas da Casa Rothschild, principalmente para custear a guerra; 2) o governo de Mitre recebeu 1,25 milhões de libras esterlinas em 1866 e 1,98 milhões em 1868 da Baring Brothers para o mesmo fim; 3) Existem registros de queixas de Candido Bareiro, representante paraguaio na Europa, ao governo inglês pela violação da “neutralidade” – envio de armas, construção de navios de guerra, transporte de material bélico em navios com bandeira britânica para equipar os aliados, etc. –; 4) se ao financiamento – a um único beligerante – acrescentamos a inocultável simpatia e as medidas de diplomacia – isto é, do governo britânico –, que se mostraram claramente favoráveis à causa aliada, de que “falta de provas” nos falam?
Evidentemente, a influência inglesa não é a única explicação da Guerra Grande10. O que afirmamos é que não se pode dizer que o Império britânico foi neutro nesse conflito. E isso não supõe sustentar que os governantes dos países aliados não tivessem interesses próprios ou que atuassem como simples marionetes de Londres, muito menos os exime de seus crimes. Uma coisa não exclui a outra.
Uma última reflexão. A recordação dos 150 anos deve servir para extrair lições da história, não para demonstrações patrióticas nem para alardear de uma suposta “integração regional” posterior à “redemocratização”, que não existiu já que persistem as assimetrias no Cone Sul. O Paraguai foi destruído há um século e meio. Essa derrota condicionou seu desenvolvimento histórico. Seu caráter de nação oprimida foi reforçado: não somente pela exploração do imperialismo hegemônico, mas também pelas burguesias mais poderosas da região. A penetração territorial por meio do agronegócio e o roubo escandaloso no caso das hidrelétricas são apenas uma mostra desse problema.
Essa realidade requer, por parte da classe trabalhadora brasileira, argentina, uruguaia e, por que não, latino-americana, uma apropriação do estudo deste episódio histórico para expressar plena solidariedade com o povo paraguaio. Por outro lado, exige da classe trabalhadora paraguaia identificar em seus irmãos de classe dos países que compuseram a Tríplice Aliança não potenciais inimigos – porque a Guerra Grande não foi obra desses povos e sim de suas classes dominantes –, mas aliados na luta comum pela segunda independência – tarefa inseparável da libertação social – em seu próprio país e no restante da América Latina.
Publicado originalmente em: <https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/cultural/2020/03/01/a-150-anos-del-final-de-la-guerra-contra-el-paraguay/>
Tradução: Túlio Rocha
Notas:
1 Enganche: Os peões, muitos deles semiproletários – que além de trabalhar uma parcela de terra ocupavam uma parte anual do seu tempo no processo de produção da erva-mate –, constituíram, principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, o embrião do trabalho “livre”. Esses trabalhadores rurais normalmente não recebiam salário em dinheiro, mas uma quantidade de mercadorias (roupas, ferramentas, comida) que deveriam pagar posteriormente com a sua própria produção. Tais mercadorias evidentemente estavam sobrevalorizadas de tal forma que o peão ficava endividado desde antes de ser internar no mato; em outras palavras, na prática ficava “enganchado” aos empresários da erva-mate [Nota da Tradução].
2 MITRE, Bartolomé; GÓMEZ, Juan. Polémica de la Triple Alianza: correspondencia entre el Gral. Mitre y el Dr. Juan Carlos Gómez. La Plata: Imprenta La Mañana, 1897, pp. 4-5.
3 DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 458-462.
4 WHIGHAM, Thomas; POTTHAST, Barbara. The Paraguayan Rosetta Stone: New Insights into the Demographics of the Paraguayan War, 1864-1870. Latin American Research Review, v. 34, n. 1, pp. 174-186, 1999.
5 DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra…, op. cit., pp. 91, 458, 461, 462.
6 Holocausto paraguayo en la Guerra del 70. ABC Color. Disponível em: <http://www.abc.com.py/articulos/holocausto-paraguayo-en-guerra-del-70-24852.html>.
7 POMER, León. La guerra del Paraguay: Estado, política y negocios. Buenos Aires: Colihue, 2008, pp. 230-231.
8 BARATTA, María V. Representaciones del Paraguay en Argentina durante la Guerra de la Triple Alianza [1864-1870]. Revista Sures. Foz do Iguaçu: UNILA, n. 4, 2014, p. 50. Mary Mann foi a tradutora ao inglês de Facundo, uma obra de Domingo Sarmiento.
9 DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra…, op. cit., p. 456.
10 Guerra Grande é o termo como popularmente é conhecido o conflito no Paraguai [Nota da Tradução].