Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Chico Buarque
Roda Viva
Direita e esquerda
As metáforas – de tanto usadas, quase se apagam os traços de metáforas – direita e esquerda, ainda guardam significados. O espectro terminológico e conceitual para a esquerda e a direita é muito geral mas de alguma serventia. Isto se articula à objetividade da sociedade de classes – de classes antagonicamente irreconciliáveis.
Historicamente, os usos destes termos começam no século XVIII, durante o segundo período da Revolução Francesa (1789-1799). De indicativo espacial, localizando os participantes de uma assembleia, os termos passaram a designar uma variedade de perspectivas, em última instância políticas e classistas.
De todo modo, esquerda e direita é sempre posicional. À esquerda ou à direita de algo e/ou alguém, sempre. Novamente: não esquecer das classes sociais no entendimento do problema.
Agora trata-se de situar Bakhtin e os Formalistas.
Mikhail Bakhtin (1895-1975) escreveu em russo. Os seus textos chegaram ao Brasil de muitas formas: leituras, traduções, publicações impregnam-se das marcas do inglês e do francês, por onde os textos passaram e de uma recepção fragmentária, quase mutilada.
Bakttin apresenta-se, à primeira vista, como um teórico e historiador da literatura. Ora, na época em que estreia na vida intelectual russa, o primeiro plano, em matéria de pesquisa literária, está ocupado por um grupo de críticos, de linguistas e escritores, chamados ‘os formalistas’ (para nós ‘os formalistas russos’). (TODOROV, 2010, p. XV)
Três vertentes constituem o cenário intelectual quando visto como estudos linguísticos e literários. Tudo no interior das imensas tensões da passagem da sociedade czarista para a soviética. Logo nos primeiros anos depois da Revolução delineia-se um quadro social, histórico e cultural cindido em lutas e perspectivas.
Um primeiro conjunto de posições localiza-se à direita.
A larga reação contra o Formalismo dividiu-se numa ala direita e numa ala esquerda. A direita era composta por todos aqueles cujas objeções se baseavam numa ou noutra escola tradicional de crítica, tais como as da abordagem biográfica ou histórica, ensinadas nos cursos universitários antes da Revolução. Os argumentos mais poderosos da direita eram montados menos por críticos literários do que por filósofos, como Gustav Chpet ou Alexandre Smirnov, ou por gente que se sentia inteiramente em casa na filosofia. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 211)
Mais: a leitura e a recepção de Bakhtin é fogo. Não é neutralidade. Limpar o terreno é importante para saber de que lado está Bakhtin; de que lado estão os seu leitores; de que recepção ao autor e aos seus textos se pretende falar e viver.
Entre o Formalismo e o marxismo
Neste quadro geral começa a inserção de Bakhtin.
Bakhtin tinha certa afinidade com este campo, no mínimo porque subscrevia suas acusações de que os formalistas, em suas engenhosas interpretações de obras particulares, careciam de base teórica em uma estética plenamente desenvolvida. Era esta a acusação característica dos oponentes da ala direita. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 211)
Uma outra posição se localiza à esquerda.
O ataque da esquerda, em grande parte montado por marxistas tão eminentes quanto Trótski e expoentes tão representativos da crítica sociológica quanto P. N. Sakúlin, mantinha que os Formalistas ignoravam, em suas obras, os fatores sociais e políticos. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 211-212)
Um debate sem diálogo, segundo intérpretes do russo.
Bakttin observa que, embora a oposição entre os Formalistas e os marxistas parecesse constituir um debate, a disputa não era um verdadeiro diálogo, pois nenhum dos lados se mostrava capaz de acomodar-se ao outro. As duas partes não ouviam realmente uma à outra; elas falavam para além uma da outra, e não uma para a outra. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 213)
Uma carência fundamental é apontada. Falta um elemento intelectual de consistência e base.
A fim de levar a melhor sobre os Formalistas cumpria dispor de uma teoria capaz de empenhar de modo efetivo textos específicos e problemas literários concretos, como a teoria formalista fizera, coisa que os marxistas não haviam providenciado. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 213)
A crítica da crítica marxista por Bakhtin
Além de Bakhtin outros autores defendiam uma perspectiva marxista para a abordagem do Formalismo e os problemas postos por esta vertente. Um deles – o nome fala por si – é Trotsky. (TROTSKI, 2007; e, TROTSKY, 1978)
O eixo dos debates é o Formalismo, agora concretizado na especificidade de um livro.
O Método Formal é, pois, único, no sentido de que é não somente uma crítica aos Formalistas, mas também à crítica marxista a eles. Bakhtin censura-os por serem demasiado vagos em seu programa e igualmente desprovidos de princípios no seu ataque à teoria do Formalismo. Ele distingue a sua própria explicação das deficiências formalistas de qualquer das explicações dadas até então pelos marxistas, que, ao seu ver, dificilmente se mostravam menos mecânicos do que seus adversários. A maioria dos teóricos literários filiados ao marxismo limitava-se a repetir os clichês do dogma marxista clássico segundo o qual a literatura não era mais do que uma superestrutura ideológica a refletir a base econômica, ficando para ser especificado como tal processo teve lugar efetivamente em exemplos concretos da história literária. Bakhtin acusa a crítica marxista ‘de recusar-se a enfrentar o Formalismo no território real dos problemas que este levanta’. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 213)
Localizar o Formalismo, a sociologia e o marxismo no interior das teorias da literatura é o objeto de Pável Nikoláievitch Medviédev – Círculo de Bakhtin, em O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. A tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo, publicação de uma editora de São Paulo, a Contexto, em 2012, estende-se por 269 páginas.
A concepção de Bakhtin
Na concepção de Bakhtin, o real problema levantado pelos Formalistas tinha a ver com a natureza da linguagem literária, que é oposta a outros usos da linguagem, e este conjunto de questões se relacionava, em última análise, com o modo pelo qual a mudança se opera na história. (CLARK & HOLQUIST, 2004, p. 213)
Um Bakhtin formalista ou um Bakhtin clamando pela história? Uma oposição? Uma síntese? Um dilema? Uma saída?
Originalmente, O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica foi publicado em 1928: em Leningrado, atualmente São Petersburgo. A tradução para o português é inaugural; diretamente do russo. Um trabalho a quatro mãos: por Sheila Camargo Grillo, uma linguista eslavista e falante nativa de português; e, por Ekaterina Vólkova Américo, teórica da literatura, falante nativa de russo.
Os acréscimos editoriais ao texto original de Pável Nikoláievitch Medviédev estabelecem elos entre o livro propriamente e o Círculo de Bakhtin. Uma leitura centrada apenas na redação do autor russo passaria sem esta vinculação, explícita na edição brasileira.
Dos estudos literários aos estudos de uma totalidade
Em primeira aproximação O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, de Pável Nikoláievitch Medviédev, do Círculo de Bakhtin, parece se restringir aos estudos literários. Uma segunda forma de aproximação apreende as questões fundamentais para a compreensão dos gêneros do discurso de forma geral. E do marxismo e outros temas fundamentais da contemporaneidade.
O conhecimento dessas questões permitiria compreender os demais trabalhos do Círculo de Bakhtin. Neles, uma espécie de resposta aos pensadores da linguagem: traços fundamentais recuperados e problematizados, uma nova visão sobre o tema.
A hipótese de articulação ao Círculo de Bakhtin e a hipótese contrária, de ausência desta vinculação, sem um caráter de exclusividade ─as duas fecundam a leitura posta na tensão intervalar entre os dois pólos hipotéticos, estabelecendo uma tensão essencial.
O volume apresenta uma rica configuração material e textual. Na “Apresentação”, assinada por Beth Brait, o caráter relevante e necessário da publicação é posto e reiterado em mais de meia dúzia de páginas.
O “Prefácio”, nessa edição brasileira escrito por uma das tradutoras, Sheila Camargo Grillo, põe O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, de Pável Nikoláievitch Medviédev, em contexto, tratando de questões de tradução, de história e de autoria da obra.
Para o maior enriquecimento da edição, antes da entrada no texto traduzido, Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo, apresentam uma “Nota das tradutoras”, recheada de considerações específicas sobre esse aspecto do trabalho.
O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, de Pável Nikoláievitch Medviédev, distribui o seu conteúdo por quatro partes, nove capítulos e uma conclusão. Ao final, uma nota biográfica e uma bibliografia do autor e outra biográfica das tradutoras, completam o quadro.
O objeto e as tarefas dos estudos literários, em perspectivas marxistas, começam o livro. Passa pelas ideologias e suas tarefas imediatas na especificação do problema. Aponta uma crise do idealismo e do positivismo nas ciências humanas. Elabora na tentativa de síntese de uma visão de mundo filosófica no âmbito objetivo, concreto, histórico e material nas suas articulações ideológicas. O problema das formas e tipos de comunicação ideológica em inserção nas relações sociais e materiais para uma apreensão de seu significado e alcance ganha corpo.
Um estabelecimento de tarefas e especificidades
Quais seriam as tarefas imediatas dos estudos literários?
Os erros de fundamentos e de métodos da crítica e da história da literatura russa e as tarefas da história da literatura passam por um estudo. A estrutura artística na obra literária e os reflexos do horizonte ideológico na configuração de uma estética e de uma poética recebem um escrutínio. Os problemas do distanciamento e do isolamento como objetos, tarefas e métodos da história da literatura, da poética sociológica e o “método formal” nos estudos literários indissociáveis na abordagem constituem objeto de pensamento e de reflexão.
Para uma entrada mais segura no estudo do método formal vale uma contribuição à sua história. Inicialmente um inventário da corrente formal nos estudos da arte da e na Europa Ocidental. A seguir o estudo do formalismo da Europa Ocidental e da Rússia, em relações recíprocas.
Tudo considerado desfilam, de começo, as premissas históricas do Formalismo da Europa Ocidental, o seu horizonte ideológico geral, a sua direção fundamental.
Em decorrência cabe enumerar as tarefas construtivas da arte, os meios da representação e da técnica, a dimensão ideológica da forma, o problema da visibilidade, todos os itens no interior da corrente formal na poética.
Para especificar mais um pouco, O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, de Pável Nikoláievitch Medviédev, aborda o método formal na Rússia, de modo singular. Contextualiza historicamente as primeiras manifestações do Formalismo russo e o método formal. Aponta a orientação do método formal para o futurismo. Não descuida de registrar a tendência do Formalismo ao niilismo.
No percurso levanta os resultados do primeiro período, o desenvolvimento do segundo e a situação, contemporânea ao autor, do método formal. Discute os fundamentos e os descaminhos do Formalismo na Rússia.
Depois da revisita histórica entra por inteiro na problemática do método formal na poética.
De pronto identifica a linguagem poética como objeto da poética e o método formal como um sistema unificado, onde ganham sentido os elementos fundamentais da doutrina formalista.
A construção poética elabora os materiais e os procedimentos no avesso da forma. Replica as relações entre o bordado e o bastidor.
Uma crítica da doutrina dos formalistas leva em conta uma avaliação social, o seu papel e o enunciado concreto na construção poética.
Nos elementos da construção artística, o gênero e suas orientações na realidade, a unidade temática, o protagonista, a fabulação e o enredo, numa especificação gradual, pesam e decidem.
O método formal na história da literatura constitui o seu objeto de um modo singular. O objeto de arte literária na concepção formalista é um dado externo à consciência.
Nexos internos ou a dialética em presença
A dialética do “externo” e do “interno” passa ao largo do Formalismo. Nele, não se pergunta nunca como o interno torna formal o externo; como a literatura é social sempre.
A convenção artística no centro da teoria formalista implica na concepção formalista da sucessão histórica e literária, da crítica e das teorias literárias, estabelecendo as premissas centradas na ausência do tempo histórico, portanto, humano e social.
Bakhtin foi marxista? O Circulo de Bakhtin foi marxista? Uma resposta é cabível: foram relevantes para o marxismo. A relevância do marxismo nem precisa de reafirmação. A relevância do encontro entre o marxismo e o Círculo de Bakhtin vale reafirmar. Ler estas questões em clave marxista é fundamental – no Brasil, principalmente.
À esquerda dos formalistas, vale explicitar direita e esquerda em termos e conceitos, entre o Formalismo e o marxismo, a crítica da crítica marxista por Bakhtin, uma concepção de linguagem, de homem e de mundo, indo dos estudos literários aos estudos de uma totalidade, um estabelecimento de tarefas e de especificidades, na captação dos nexos internos ou a dialética em presença, um percurso de interpretação em perspectiva de transformar a leitura, a recepção de reformistas e afins, idealizadas assepticamente com vistas a eliminar a pulsão revolucionária, em algo vivo, tenso e incandescente.
Isto é reencontrar permanentemente um Bakhtin vivo.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 5. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
CLARK, Katerina & HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004. (Perspectivas/direção J. Guinsburg)
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
TODOROV, Tzvetan. Prefácio à edição francesa. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 5. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
TROTSKI, Leon. A escola de poesia formalista e o marxismo. In: TROTSKI, Leon. Literatura e revolução. Tradução de Luiz Alberto Moniz Bandeira. Apresentação William Keach. Tradução da apresentação, cronologia da vida de Trotski. Glossário, sugestões de leitura e índice por Débora Landsber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
TROTSKY, Leon. A escola poética formalista e o marxismo. In: VÁRIOS. Teoria da literatura: formalistas russos. Tradução de Ana Mariza Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Revisão de Rebeca Peixoto da Silva. Organização, apresentação e apêndice de Dionísio de Oliveira Toledo. Prefácio de Boris Schnaiderman. 4. ed Porto Alegre: Globo, 1978.