Em 2017, completou-se cem anos da Revolução Russa e, nesse mesmo ano, completou-se 150 anos da publicação da primeira edição de O Capital de Marx. É uma ironia histórica que a Revolução Russa tenha se dado meio século após a publicação da obra máxima de Marx. Apesar da coincidência nas datas, esses dois episódios estão intimamente relacionados. Principalmente porque a Revolução iniciada em 1917 colocou sob nova perspectiva todos eventos transcorridos desde essa data, alterou de forma definitiva o destino de todas as demais nações, por trágico que possa ser considerado o seu desfecho1. Particularmente, no domínio teórico, o pensamento de Karl Marx, até então considerado como apenas mais um dos múltiplos capítulos da tradição revolucionária do século XIX, tal como o foi, por exemplo, Blanqui e Proundhon, não pôde mais ser ignorado.
Ora, como se sabe, em fevereiro de 1848, com a publicação do Manifesto Comunista, Marx apresentara ao mundo uma nova perspectiva de transformação social, não mais fundada em modelos futuros de uma sociedade perfeita, em apelos éticos de justiça ou nos direitos universais do homem2, mas nas condições sociais dadas, ou mais precisamente, no entrelaçamento entre o proletariado e o movimento socialista, entre as necessidades sociais de uma dada classe social, produto genuíno do modo de produção capitalista, e a possibilidade de destruição e superação desse mesmo modo de produção. Se poucos meses depois da publicação do Manifesto o levante de junho de 1848 na França mostrara que o proletariado poderia se colocar em luta em função de seus próprios interesses, antes de marchar necessariamente a reboque de outras classes sociais; se a Comuna de Paris mostrara que esse mesmo proletariado poderia, sob certas circunstâncias, depor o poder constituído; 1917 colocara à prova a efetividade dessa perspectiva acima aludida: a possibilidade do proletariado, por meio de suas organizações e em função das contradições produzidas no seio da própria sociedade capitalista, destruir as formas de poder instauradas e colocar o futuro em suas mãos. Não sem razão, desde a Revolução Russa, a obra de Marx passou a ser, como nunca antes, debatida e divulgada, reivindicada e detratada, em todos os meios e em todos os espaços.
Gramsci e a hipótese da Revolução Russa como negação de O Capital de Marx
Paradoxalmente, se a Revolução Russa era vista como a prova inconteste da efetividade do pensamento de Marx, por outro lado, era considerada, por muitos, a sua negação, seu ponto frágil. Afinal, sendo a Rússia um país atrasado – social, político e economicamente –, o braço asiático da Europa, o reduto da reação europeia3, como poderia ser exatamente esse país, em que as condições sociais dadas estariam tão pouco desenvolvidas em relação à própria forma social capitalista, o ponto de partida da revolução socialista?
Com efeito, foi exatamente desse modo que não poucos marxistas consideraram a questão. Por exemplo, o marxista italiano Antonio Gramsci, em dezembro de 1917, escrevera um artigo sobre a então recente Revolução Russa, denominado: A Revolução contra O Capital. Não se teria nada de estranho nesse título não fosse o fato de por O Capital Gramsci se referir não a forma de organização social contraposta pela revolução em curso, mas a obra principal de Marx. A Revolução de Outubro seria, assim, uma revolução contra O Capital de Marx, a negação de seu pensamento ou, ao menos, de algumas teses centrais ali defendidas.
Diz Gramsci literalmente que a revolução dos bolcheviques “é a revolução contra O Capital de Marx. O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais que dos proletários”. E continua de modo a não deixar dúvidas quanto a sua interpretação: O Capital era “a demonstração crítica da fatal necessidade de que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental”. Somente então o proletariado poderia “pensar em sua desforra, em suas reivindicações de classe, em sua revolução”. E conclui: “Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos quais a história da Rússia deveria se desenvolver segundo os cânones do materialismo histórico” (GRAMSCI, 2004, p.126).
O que era desconhecido de Gramsci à época é que uma indagação dessa natureza não era estranha ao próprio Marx. Nos últimos anos de sua vida, Marx fora questionado diretamente sobre as consequências de sua obra principal para o país dos czares. Não apenas respondeu diretamente a presente questão como desenvolvera, ao menos em esboço, algumas especificidades da sociedade russa. Antes, todavia, de melhor examinarmos tais escritos de Marx, cabe analisar a questão prévia de se em seu pensamento anterior, particularmente em O Capital, poderíamos encontrar respaldo para tese que nega a possibilidade de uma revolução socialista na Rússia.
Uma lenda sem qualquer base textual
É muito provável que um dos trechos centrais para justificar a presente tese se encontre no Prefácio da primeira edição de O Capital. Nesse Prefácio, após sustentar a necessidade do emprego da abstração para investigação dos fenômenos sociais, esclarece Marx que o que pretende “nessa obra investigar é o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação”. Ora, como sua “localização clássica é, até o momento, a Inglaterra”, ela serve de ilustração principal da exposição teórica. No entanto, tratava-se de uma edição alemã, motivo pelo qual Marx adverte que se o leitor alemão virar as costas à situação da classe trabalhadora inglesa seria obrigado a gritar-lhe: “A fábula refere-se a ti” (MARX, 2013, p.78).
A questão acima esboçada se aguça no parágrafo seguinte quando Marx, ao comentar sobre as leis imanentes do modo de produção capitalista, diz das “tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade”. Mais ainda. “O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2013, p.78). O que importa aqui notar é que, dessas passagens, se extraiu a conclusão de uma concepção etapista da história: todos os países deveriam percorrer as mesmas fases de desenvolvimento até que, por fim, esteja colocada a possibilidade da superação do modo de produção capitalista, a passagem para uma etapa superior. Sendo a Inglaterra, naquele momento, “o país industrialmente mais desenvolvido”, segue-se desse raciocínio que seria em terras britânicas a origem da revolução socialista ou, ao menos, em outros países mais desenvolvidos do ocidente como era o caso da França.
De fato, não faltam passagens na obra de Marx que atestam a necessidade de uma revolução na Inglaterra para o sucesso da revolução proletária. Vejamos alguns exemplos. Na Nova Gazeta Renana, jornal editado por Marx em Colônia no curso das revoluções de 1848-49, podemos ler: “A Inglaterra domina o mercado mundial. Uma transformação das relações econômico-nacionais em todos os países do continente europeu, no continente europeu em seu conjunto sem a Inglaterra, é uma tempestade num copo d’água” (MARX, 2010, p.367). Na mesma direção, em 1850, na Nova Gazeta Renana – Revista, em artigo incluído por Engels na edição do livro As Lutas de Classes na França, vemos uma afirmação no mesmo sentido: “as relações de produção francesas são condicionadas pelo comércio exterior da França, por sua posição no mercado mundial e pelos seus limites; como poderia a França rompê-los sem uma guerra revolucionária que atingisse o déspota do mercado mundial, a Inglaterra?” (MARX, 2012, p.46-47).
Mesmo após a primeira edição de O Capital, podemos encontrar sem maiores dificuldades passagens nesse mesmo sentido. Por exemplo, em seus escritos sobre a Irlanda, datados de fins de 1869 a 1870, Marx explica que pela sua posição na sociedade capitalista de então, a “classe trabalhadora inglesa constitui desde já o peso mais decisivo para inclinar a balança da emancipação social em geral” (MARX; ENGELS, 1979, p. 189). A “Inglaterra, como metrópole do capital, como potência que domina até agora o mercado mundial, é no momento o país mais importante para a revolução operária”. Além disso, é o “único país em que as condições materiais para esta revolução se desenvolveram até alcançar um certo grau de maturidade” (MARX; ENGELS, 1979, p. 214). Muitos outros trechos análogos poderiam ser citados.
Não fosse o bastante, vários autores, inclusive o caso da primeira geração de marxistas russos, encontram outro momento da obra de Marx para corroborar a tese de que, para ele, uma revolução proletária apenas poderia ser levada a cabo na Inglaterra. Trata-se do célebre capítulo XXIV de O Capital, aquele a respeito da acumulação originária. Nesse capítulo, Marx explica a gênese histórica do capital, senão exclusivamente na Inglaterra, ao menos nos principais países do ocidente europeu. Para tal, demonstra como foi necessário, para que o capital viesse à luz, um longo processo histórico em que os produtores diretos foram violentamente expropriados de seus meios de produção e as instituições feudais, que garantiam minimamente sua sobrevivência, dissolvidas. Em uma passagem particularmente interessante para o problema aqui em análise, presente na primeira edição francesa, portanto em uma edição posterior à alemã, podemos ler: “Essa expropriação só se realizou de maneira radical na Inglaterra: por isso, esse país desempenhará o papel principal em nosso esboço. Mas todos os outros países da Europa ocidental percorreram o mesmo caminho” (MARX, 2013, p. 788).
Diante desse quadro, a conclusão parece ser de que somente após esse longo percurso, que vai da dissolução das relações sociais feudais ao desenvolvimento pleno das relações sociais capitalistas, poderia se pensar em uma revolução proletária, na expropriação dos expropriadores, tal como ousaram fazer, paradoxalmente, ou para alguns, precipitadamente, o proletariado russo sob direção do Partido Bolchevique. A emancipação do proletariado teria como pressuposto um certo grau de maturação das condições sociais que, naquela altura, apenas a Inglaterra atenderia.
No entanto, se é absolutamente inquestionável o juízo de Marx de que, ao menos para a situação econômico-mundial da época, uma Revolução Inglesa era uma condição necessária para o sucesso da revolução socialista e da emancipação do proletariado; podemos nos perguntar, em que medida, os trechos acima citados, e qualquer outro, nos autoriza inferir que um processo revolucionário deva necessariamente se iniciar pelo seu polo mais desenvolvido ou, ainda, o que é mais grave, que todos países devam seguir o mesmo curso deste. Mesmo na passagem já citada de que o “país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro”, não permite de modo algum inferir que esse país mais atrasado deva seguir o mesmo caminho e passar pelas mesmas fases de sucessão que o país mais desenvolvido.
E realmente! A hipótese de que a revolução socialista deva necessariamente começar pela Inglaterra, ou, ainda, aquela outra tese a essa correlata: a de que todos os países devam passar pelas mesmas etapas sociais de desenvolvimento, começam a perder toda sua aparente solidez tão logo examinemos mais de perto o texto de Marx, no lugar da colagem arbitrária de um sem-número de trechos isolados.
Em uma leitura atenta do capítulo sobre a Acumulação Originária, logo se percebe que, longe de criar qualquer universalização para lá da história, de impingir um caráter de necessidade ao processo histórico, o desenvolvimento de cada localidade é preservado em sua originalidade incontornável. Mesmo na passagem acima citada onde se diz que “todos os outros países da Europa ocidental percorreram ou estão a percorrer o mesmo caminho [o da acumulação originária]”, prossegue com o seguinte complemento: “ainda que, segundo o meio, ele mude de coloração local, ou se restrinja a um círculo mais estreito, ou apresente um caráter menos pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente” (MARX, 2013, p. 788).
Como se nota, a passagem se refere tão somente aos países da Europa ocidental que, de uma maneira ou de outra, já percorreram ou estão a percorrer o caminho que conduz ao modo de produção capitalista. Mesmo nesse caso, Marx esclarece que, segundo o país considerado, esse processo se apresenta com distintas tonalidades, amplitude e, ainda, com ordens de sucessão diversas. Se isto é assim nas situações já consumadas de países da Europa Ocidental, o que dizer daqueles que procuram uma teoria das etapas necessárias inescapáveis para toda e qualquer localidade independente das particularidades internas de seu desenvolvimento?4
Ora, realmente, tal teoria não poderia encontrar, e não encontra, qualquer respaldo nos textos de Marx. Diferentemente da teodiceia hegeliana, em O Capital não existe qualquer Absoluto que impulsione a humanidade rumo ao capitalismo. Se é possível dizer que a Inglaterra mostra aos demais países a imagem de seu próprio futuro, é pelo fato do capital, uma vez originado localmente e historicamente, pela sua dinâmica e potência interna, ter a tendência de estender os seus tentáculos a todas as formas sociais a ele concomitantemente existentes. No entanto, se essa tendência interna do capital sempre permanece, nada se pode dizer, a priori, a respeito de quando, por que meios ou etapas tal tendência poderá se efetivar. Nem mesmo se irá se efetivar.
Mais ainda. A mera origem histórica, em uma dada localidade, de indivíduos expropriados face a outros com o controle dos meios de produção não assegura por si só o desenvolvimento do capital. Marx pôde escrever esse capítulo, não por uma necessidade inscrita no interior do processo histórico inglês, ou no interior da história ocidental, mas porque, no século XIX, o capital já se encontrava plenamente desenvolvido nesse país, permitindo buscar no passado a sua origem. Nos Grundrisse, já dizia Marx que enquanto “o capital é fraco, ele próprio procura ainda apoiar-se nas muletas dos modos de produção do passado ou que estão desaparecendo com o seu surgimento. Tão logo ele se sente forte, joga as muletas fora e se movimenta de acordo com as suas próprias leis” (MARX, 2011, p. 546). O capital de muletas ainda não se movimenta de acordo com suas próprias leis e, não sem razão, nos momentos que a antiga sociedade se encontra em decadência, a intencionalidade dos indivíduos, a maior ou menor audácia dos personagens e sujeitos sociais em luta, assim como acidentes históricos de todo tipo, jogam, sem qualquer dúvida, um importante papel.
Tanto é assim que, em nota, se acrescenta que na “Itália, onde a produção capitalista se desenvolveu mais cedo, foi também o primeiro país a manifestar a dissolução das relações de servidão. […] Assim, sua emancipação o transforma imediatamente num proletário absolutamente livre, que, no entanto, já encontrava seus novos senhores nas cidades, em sua maior parte originários da época romana”. Por que então não foi a Itália a pátria originária do capital? Ora, apesar desse percurso inicial, quando no século XV se deu cabo na supremacia comercial do norte da Itália em função de uma revolução no mercado mundial, “surgiu um movimento em sentido contrário. Os trabalhadores urbanos foram massivamente expulsos para o campo e lá deram um impulso inédito à pequena agricultura, exercida sob a forma da horticultura” (MARX, 2013, p.788). Sem dúvida, inúmeros outros casos poderiam ser mencionados nessa mesma direção.
A inexistência de uma teoria das etapas da história em Marx
Como se vê, não se encontra em O Capital qualquer respaldo para a tese etapista e unilinear da história. Mesmo assim, tal tese já se insinuava entre certos grupos de “marxistas” russos nos fins dos anos de 1870, particularmente em um grupo de russos exilados em Genebra onde se encontravam, dentre outros, Plekhanov e Axelrod. Não há de se surpreender, então, que o próprio Marx demonstrasse um certo espanto ante tais interpretações e, contra elas, tenha se manifestado sem deixar margem para qualquer ambiguidade.
Referimo-nos a carta enviada por Marx à redação do jornal russo Notas Patrióticas, na qual contesta o sociólogo Nicolai Michailovski. Este escrevera um artigo para esse mesmo jornal no intuito de responder as acusações do economista liberal Juli Jukovski. Ocorre que nesse artigo Michailovski sustentara exatamente a tese de que a Rússia deveria percorrer as mesmas etapas de desenvolvimento que os demais países da Europa ocidental. Em sua resposta, Marx diz que Michailovski metamorfoseou completamente seu “esquema histórico da gênese do capitalismo na Europa ocidental em uma teoria histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, independentemente das circunstâncias históricas nas quais eles se encontrem” (MARX, 2013b, p. 68). A essa interpretação, que a posteridade transformará em lugar comum, Marx responde:
Porém, peço-lhe desculpas (Sinto-me tão honrado quanto ofendido com isso.) Tomemos um exemplo. Em diferentes pontos de O Capital fiz alusão ao destino que tiveram os plebeus da antiga Roma. Eles eram originalmente camponeses livres que cultivavam, cada qual pela própria conta, suas referidas parcelas. No decurso da história romana, acabaram expropriados. […] Assim sendo, numa bela manhã (eis aí), de um lado homens livres, desprovidos de tudo menos de sua força de trabalho, e de outro, para explorar o trabalho daqueles, os detentores de todas riquezas adquiridas. O que aconteceu? Os proletários romanos não se converteram em trabalhadores assalariados, mas numa turba desocupada, ainda mais abjetos do que os assim chamados brancos pobres dos estados sulistas dos Estados Unidos, e ao lado deles se desenvolve um modo de produção que não é capitalista, mas escravagista. (MARX, 2013b, p. 68-69).
E continua: “acontecimentos de uma analogia que salta aos olhos, mas que se passam em ambientes históricos diferentes, levando a resultados totalmente díspares”. E concluí de modo a não deixar margem para dúvidas sobre a impossibilidade de uma teoria histórica universal perpassada por um elemento de necessidade: “Quando se estuda cada uma dessas evoluções à parte, comparando-as em seguida, pode-se encontrar facilmente a chave desse fenômeno. Contudo, jamais se chegará a isso tendo como chave-mestra uma teoria histórico filosófica, cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica” (MARX, 2013b, p. 69). O trecho não poderia ser mais contundente e direto em relação ao problema aqui em análise. A chave dos fenômenos pode ser encontrada “quando se estuda cada uma dessas evoluções à parte, comparando-as em seguida”, jamais por meio de uma “teoria histórico filosófica”, jamais por meio de uma “teoria supra-histórica” que pretenda informar, de antemão, o curso do processo histórico.
Ora, se alguns autores, mesmo nos dias de hoje, como é o caso de Michel Löwy5, sustentam existir em Marx, ao menos em certos momentos de sua trajetória, uma teoria etapista ou unilinear da história, não encontramos qualquer apoio em seus textos, sobretudo em O Capital. Na verdade, desde muito cedo, Marx rechaça sem ambiguidades qualquer teoria histórico universal. Por exemplo, em texto direcionado ao economista alemão Friedrich List, datado de 1845, ainda que em uma linguagem mais abstrata, podemos ler:
Sustentar que cada povo passa por este tipo de desenvolvimento seria uma visão tão absurda como pensar que cada povo teria de seguir o desenvolvimento político da França ou o desenvolvimento filosófico da Alemanha. O que as nações fizeram enquanto nações, fizeram-no para a sociedade humana; todo o seu valor reside somente em que cada (nação) concretizou para as outras uma determinação principal (um ponto de vista principal) dentro das determinações segundo as quais a humanidade leva a cabo o seu desenvolvimento (MARX, 2013b, p. 68-69).
Em suma, se é verdade que Marx sustentou que, para o sucesso da revolução proletária, seria necessária uma revolução em seu elo mais desenvolvido, já que o socialismo pressupõe o “desenvolvimento superior das forças produtivas sociais promovido pelo trabalho assalariado” (MARX, 2011, p. 111); se é igualmente correto que procurou demonstrar a tendência interna do capital – e não uma tendência externa posta pela (H)istória concebida metafisicamente – de se expandir por todo o globo, dissolvendo as formas sociais pretéritas; jamais procurou deduzir filosoficamente o desenvolvimento histórico e as etapas necessárias pelas quais deveriam passar toda e qualquer nação; jamais afirmou que a revolução proletária principiaria necessariamente pela Inglaterra, ou qualquer outro país. Tampouco é possível deduzir de seus escritos a impossibilidade de sua realização, de início, em um país atrasado. Não é possível extrair conclusão alguma sobre uma situação particular sem que antes se tenha estudado “cada uma dessas evoluções à parte, comparando-as em seguida”. Somente uma leitura muito superficial de O Capital, como parece ser a de Gramsci, ao menos no período do artigo referido no começo do presente texto, pôde concluir que a Revolução Russa teria sido uma revolução contra O Capital de Marx.
Considerações finais
Fica patente, então, que O Capital de Marx, longe de indicar os caminhos e descaminhos de qualquer nação, sequer garante, a priori, que um dado problema social possa encontrar nele sua solução. O exame das particularidades nacionais, à luz de O Capital e não contra ele, é uma tarefa permanente e das mais complexas para qualquer marxista disposto a buscar os caminhos entre o especificamente nacional e a universalidade da revolução socialista, entre as contradições específicas de uma dada nação e as contradições do modo de produção capitalista.
No final das contas, foi negando a tese unilinear da história de Plekanov, ao mesmo tempo que centrando todos os esforços possíveis para a correta compreensão das particularidades nacionais russas, no entanto, sem autonomizá-las como faziam os narodniks, que os Bolcheviques, conseguiram depor o czarismo e conduzir os trabalhadores e camponeses, e suas organizações, os sovietes, ao poder. Nesse sentido, enquanto realização do projeto histórico encerrado em O Capital a partir das especificidades que cada contexto sempre impõe, a Revolução Russa de 1917 pode ser considerada, como nenhuma outra revolução do século XX, a realização de O Capital de Karl Marx
O presente texto é um trecho adaptado do artigo Sobre a possibilidade de uma Revolução Russa nos escritos de Marx. Originalmente publicado na revista Verinotio.
Referências
BROUÉ, Pierre. História Da Internacional Comunista 1919-1943: A Ascensão e a queda. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.
DROZ, Jacques. História Geral do Socialismo. Vol. 2. Lisboa: Livros Horizontes. 1972
OLIVEIRA, Lelita. O socialismo dos engenheiros em face do Manifesto propriamente operário. In: Caio Navarro de Toledo. (Org.). Ensaios sobre o Manifesto Comunista. 1a.ed. São Paulo: Xamã, 1998, v. 1, p. 11-44.
MARX, KARL. Lutas de Classes na Rússia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013b.
_____. O Capital – Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.
_____. Grundrisse. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2011.
_____. As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo, 2012.
_____. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
_____. Nova Gazeta Renana. São Paulo: EDUC, 2010.
_____. Crítica do nacionalismo económico. Lisboa: Antígona, 2009.
_____. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Lisboa: Editorial Estampa,
1971.
_____. Escritos Sobre Rusia I: La Historia Diplomática Secreta del Siglo XVIII. México: Cuadernos Pasado y Presente, 1979.
MCLELLAN, David. Karl Marx: Vida e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 3a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, vols. 3
SODRÉ, Nelson Werneck. O conceito de modo de produção e a pesquisa histórica.” In: LAPA, José Roberto do Amaral (org .). Modos de produção e realidade brasileira . Petrópolis, Vozes, 1980.
STALIN, J. Materialismo Dialético e Materialismo Histórico. São Paulo: Global, 1982.
Notas
1 Como ilustração do impacto avassalador da Revolução Russa basta rememorar que, em meados de 1921, o III Congresso da Internacional Comunista, criada sob o influxo da revolução bolchevique, reuniu 605 delegados, de 103 organizações que representavam 52 países de todos os continentes. Parte expressiva desses partidos já possuíam dezenas de milhares de membros. Ver: (BROUÉ, 2007, p.288-299).
2 A crítica ao socialismo utópico, socialismo dos engenheiros do futuro, perpassa boa parte da obra de Marx. A última seção do Manifesto está dedicada especificamente a esse tema. A esse respeito, ver: (OLIVEIRA, 1998).
3 Em parte expressiva da obra de Marx existe referências ao papel reacionário exercido pela Rússia desde a Revolução Francesa. Por exemplo, em 1848, na Nova Gazeta Renana, Marx escreve que em “qualquer lugar onde o absolutismo e a contra-revolução são ativos, encontramos, de fato, sempre alemães, mas em nenhum lugar mais do que no ponto central da contra-revolução permanente, a diplomacia russa” (MARX, 2010, p.365). Com relação a esse tema, Marx escreve uma obra, praticamente ignorada pela totalidade dos interpretes, destinada ao exame da diplomacia secreta no século XVIII, cujo centro é o papel desempenhado pela Rússia e pelo czarismo (MARX, 1979). Seu juízo sobre a Rússia é tão severo que um importante biógrafo de Marx como David Mclellan chega a afirmar que ele possuía um “ódio quase patológico contra Rússia” (MCLELLAN, 1990, p. 308).
4 A teoria das etapas necessárias pelas quais passariam toda e qualquer nação foi cristalizada na Terceira Internacional a partir do ensaio atribuído a Stalin: Materialismo Dialético e Materialismo Histórico (STALIN, 1982). Entre nós, essa visão foi mais amplamente difundida por Nelson Werneck Sodré. Por exemplo, já ao final de sua vida, em uma conferência sobre a teoria da história no Brasil, ele diz: “O feudalismo representa avanço em relação ao escravismo, e por isso vem depois, no tempo (…) Acontece, no Brasil. (…) Ao mesmo tempo, as relações escravistas passam, sem intermediações atenuadoras – como aconteceu no modelo clássico – a relações de novo tipo, que denominamos feudais” (SODRE, 1980, p. 141-142).
5 Na apresentação da coletânea que tomamos como base neste artigo, mas também em outros textos anteriores, Michel Löwy sustenta que os escritos de Marx sobre a Rússia marcam uma “ruptura profunda com qualquer interpretação unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico” (MARX, 2013b, p. 9). A tese é no mínimo curiosa, particularmente por tomar como ponto de demarcação exatamente a carta de 1877 citada acima, em que Marx nega que O Capital ofereça uma base minimamente consistente para qualquer teoria unilinear da história.