O tempo presente nos apresenta uma série de considerações sobre o que é o amor. Na maioria das vezes são considerações apaixonadas, recheadas de idealismo romântico, e que não nos fazem nenhum mal a princípio.

Entretanto, com o desenvolver desta manifestação do amor, o sujeito pode passar a demonstrar a maior e mais forte negação de si mesmo. Esta é a nossa tese central aqui: o amor como negação de si.

Para que nossos leitores continuem a nos acompanhar é necessário se permitir a algumas outras palavras sobre alienação e idealismo.

O filósofo prussiano, Hegel, identificava várias manifestações da alienação e uma delas se colocava no sentido positivo, onde o sujeito retirava uma parte de si e entregava, colocava em outro/no outro/outra. Tratemos de exemplificar isso.

Uma pessoa que trabalha, ao trabalhar, coloca um pouco de sim no produto do seu trabalho, identificando-se no produto que “tem a cara dele”, ou tem um pouco dele colocado no ato da criação. Assim, ao fazer uma mesa, o produtor a faz com o seu jeito, com a sua forma de cortar a madeira, de pregar as partes, de lixar, pintar e de usar de acordo com aquilo que imaginou antes mesmo de iniciar o processo de construção da mesa. Uma vez finalizado o processo de construção, o produtor olha para o produto, fruto da sua atividade e se identifica nele, mais uma vez, “tem a cara dele”. Ele se vê naquilo que construiu, ele se identifica com a mesa, há nela uma parte dele. Com efeito, ele alienou uma parte de si no produto mesa que construiu.

Neste sentido, alienação tem um sentido positivo, pois ele aliena uma parte de si no produto e se identifica nele, aquilo é parte dele objetivada e não lhe é estranho, pois vê no produto todo um processo no qual ele é sujeito criador. Mas este é apenas um sentido de alienação, repleto de positividade. Há outros sentidos para esse conceito.

Em 1844, outro pensador prussiano, Karl Marx, desenvolvia seus estudos iniciais sobre economia política e deixou-nos na forma de rascunhos uma outra leitura de alienação. Sem desconsiderar os sentidos que Hegel deu a este termo, Marx identifica na sociedade de classes uma outra manifestação do sentido de alienação. Chamaremos aqui de estranhamento o grau elevado de alienação onde o produtor não se identifica com a produção, pois sequer identifica como sendo sua a atividade produtora. Alienação, agora, seria o estranhamento diante daquilo que é produzido não existindo identificação com a ação criadora. A ação criadora já não é mais uma iniciativa daquele que produz, mas uma determinação daquele que deseja a efetividade da produção. O que isso significa? Quer dizer que a atividade criadora não pertence mais aquele que produz. Significa ainda dizer que o produtor de mesas as produz em quantidades elevadas não para atender suas necessidades, mas para servir aos interesses de outras pessoas que o contrata para produzir para este terceiro. Em outras palavras, não se produz mais para a tender as necessidades do produtor, mas para a necessidade de troca no mercado por aquele que contrata o trabalhador para fazer mesas. Aqui o trabalhador que faz mesa não a faz mais para seu uso. Não coloca espontaneamente uma parte de si no produto, pois o próprio produto e o seu destino não o interessa mais. Neste caso o trabalhador só o faz (mesas) para receber uma quantidade geral de valor, que, a partir daí sim (?), vai buscar sua realização através do consumo no mercado, onde os produtos são destinados recebendo o nome de mercadorias.

Uma enorme coleção de mercadorias sem identificação imediata por aqueles que produzem, mas com desejos vorazes por aqueles que as consomem. Mas aqui não há uma identificação? Sim. Mas radicalmente passageira! Trata-se de uma realização através do consumo e como esse consumidor não é ao mesmo tempo produtor, a sensação de frustração logo se estabelece e busca-se mais uma vez, desesperadamente, a realização via o novo consumo. Mas inutilmente, pois aquilo não tem a cara dele. É estrangeiro/estranho.

Agora sobre o idealismo. Do que se trata?

O idealista desenvolve um conjunto de perspectivas que não possuem, necessariamente, conexão com a vida social que está inserido. Tratemos que esclarecer. Um trabalhador que recebe um salário mínimo (no caso brasileiro, menos de 800 reais) pode desenvolver a ideia de que se poupar poderá ter a sua casa própria e sair do aluguel. Nada mais sóbrio do que este desejo! Entretanto, a perspectiva não está considerando a relação entre os valores. Como pode um assalariado que recebe uma quantidade de equivalente geral de valor (dinheiro) menor que a quantidade de equivalente de uma casa ter a sua moradia e sair do aluguel?

Para exemplificarmos de outra maneira: se estou apaixonado, eu e minha companheira, no maior calor de todas as paixões… resolvemos ir ao cinema para nos realizarmos no consumo da arte, e, nesta perspectiva idealizamos que seria muito gostoso nos sentarmos naquelas poltronas confortáveis e tomarmos um refrigerante acompanhado de dois maravilhosos pacotes de pipocas amanteigadas e quentinhas? Até aqui tudo bem… concordaríamos que isso seria muito bom! Entretanto, mais uma vez, ficaríamos no campo do idealismo se não considerássemos que os bolsos estão vazios e que no final do mês as coisas são ainda mais difíceis. Logo, poderíamos, ainda assim, caminharmos por quilômetros até chegarmos a sala de cinema, poderíamos até consumirmos a propaganda dos cartazes, o cheiro da pipoquinha e o barulhinho do abrir das garrafas de refrigerantes, mas nos frustraríamos, provavelmente, no caminho (a pé) de volta para casa!

Não queremos desanimar os caros leitores, mas apenas colocarmos algumas palavras sobre alienação e idealismo em nosso tempo presente.

Agora passaremos a tese central deste nosso artigo e certamente a mais abusada: o amor como negação de si. Não nos deteremos aqui em realizamos um estudo sobre a origem do amor e a sua pluralidade semântica, por isso, vamos direto ao tema, fazendo apenas uma consideração: nos referiremos ao amor como forma de alienação e negação de si mesmo, considerando que esta é apenas uma forma de se entender a questão e muito particularizada de uma das manifestações daquilo que chamamos de amor na sociedade de classes. Dito isso, passemos a nossa tese.

O verbo amar comparece cotidianamente e na maioria absoluta das vezes é conjugado da forma mais banal que conseguirmos imaginarmos. A banalização do amor não está só, vem acompanhada do imperativo “meu”, da primeira pessoa do singular “eu” e até mesmo a primeira do plural “nosso”.

São ricos os casos banais da conjugação do amor. Podemos encontrar da mais vulgar expressão “amor bandido” até a mais clássica: “amor é fogo que arde sem …”. E tudo isso expressa a pluralidade que nos referimos anteriormente, e, contra ela não temos nenhuma crítica, pois é a maior expressão da criatividade humana na história da opressão e da exploração. Não nos cabe aqui um juízo maior por conta do espaço.

Entretanto, o amor nem sempre se coloca de forma tão inofensiva em uma sociedade em que a regência do capital impõe a alienação da produção e reprodução da vida, recheado de idealismos de todas as espécies, onde, mesmo trabalhando com meias verdades (ideologias no sentido de Engels e Marx em 1845). (?)

Diante destas relações sociais os sujeitos se relacionam em busca da tal realização a todo custo. Nesta verdadeira Via Crúcis, contrai inevitáveis relações sociais onde o amor se manifesta como uma das formas mais belas e reluzentes de coexistirem, principalmente diante das dificuldades do tempo presente no capitalismo.

É verdade que este tipo de aproximação se coloca na história muito anteriormente a sociedade capitalista, mas é no capitalismo que o fenômeno amor ganha proporções inimagináveis, estabelecendo um tipo de alienação nociva e destruidora, capaz de fazer a negação de si mesmo ser a tônica mais perniciosa da construção do ser social!

Ao depositar um pouco de si no outro, identificamo-nos neste outro e o fazemos com prazer, com amor. O outro, ao agir da mesma forma, também busca se identificar e juntos buscam a realização naquilo que equivocadamente é chamado de amor.

Diante da carência de consumo, diante da não realização diante da produção, buscam a realização diante de si mesmos! E até aqui a problemática não se manifesta de forma tão fenomênica.

Quase tudo é alegria, festa e motivo de risada. Fazem planos, idealizam, romantizam… e até aqui tudo maravilha, pois esta é a parte inicial da questão e normalmente ela nos coloca em uma situação apoteótica do viver onde os problemas do tempo presente são secundarizados e a sociedade de classes pode ser radicalmente ignorada! É o momento de sentir, imaginar, gozar e poetizar independente do concreto que mora ao lado. É realmente tudo muito gostoso e não há como negar, é bom demais! Todavia, nosso caro leitor terá que se permitir considerar o momento pós-gozo.

Quem já se apaixonou e se disse amando deve se identificar plenamente com nossas palavras, então, continuemos (…).

Quem é que já conjugou o verbo amar e não acrescentou: “amor, que saudades”; “amor, eu te amo muito”; “amor sem você eu não existo”; “amor, você é meu porto seguro”; “amorzinho, saudades”; “amor, você é muito importante para mim”; “amor da minha vida”; “amor, você é tudo”; Amor… amor… amor (…).

Tudo isso pode ser verdade e não estamos aqui a julgar nada, mas apenas identificando algumas situações do dia a dia, possíveis de se manifestarem entre aqueles que amam, ou acreditam amar.

Mas a questão pode se tornar complexa e auto negadora, e, é disso que escrevemos aqui. A relação de amor pode chegar a tal ponto que a identificação daquele que ama só é possível diante da pessoa amada. A realização só é aceitável ao lado do amor tão declarado a ponto de se estranhar diante de si mesmo. E aqui teríamos uma situação de alienação elevada, oque inicialmente apontamos como estrangeiro (estrangeirismo).

Nesta situação o sujeito passa pelas maiores privações de si mesmo quando distante do grande amor, do porto seguro, da pessoa a qual ele mesmo diz não ser nada sem ela/e!

Trava-se as demais relações sociais, nega-se a identidade que agora so é identificável na outra pessoa. Se entristece fulminantemente com a ausência, pois apenas si não é existente sem a outra parte. O que acontece?

Ao depositar não apenas parte se si no outro, mas entregar-se (idealmente) totalmente ao outro pode fazer acreditar que a vida já não possui mais sentido sem a pessoa amada… Que a existência perdeu o sentido de ser… Que a vida deve ser ao lado do amor distante, ou mesmo renegado… Ignora-se que o estado de idealização ao lado de outra pessoa não considerou a realidade mais concreta que sempre esteve ao lado [ao lado escrito duas vezes]. Idealiza-se (o que inicialmente não é ruim) o bom, o bem, a alegria e o prazer em um mundo frio, bárbaro e violento. Aliena o máximo de si em uma construção idealista (em dada media…insistimos… inevitável), pois a realidade da produção da vida não nos permite a realização plena da felicidade, seja na produção ou mesmo no consumo de mercadorias.

Neste sentido, o amor, tão apregoado pela indústria acaba por funcionar como um elixir. Ameniza, mas jamais curará, pois o farmacêutico necessita da venda de mercadorias e os sujeitos não podem ser curados plenamente, pois isso significaria a sua ruína (a do farmacêutico). Assim o amor, não à toa, é entoado por todos os cantos, por várias vozes, por vários encantadores de flautas em punhos.

O que significa isso? Que palavras são estas… pode perguntar nossos leitores… Um pessimismo, um ato contra o amor? Respondemos: não, trata-se de não aceitar o amor como alienação, como mercadoria, como propriedade opressiva, mas de defendê-lo a todo custo como forma de realização humana que não nos parece possível integralmente, ainda, na sociedade de classes. Trata-se de não entender o amor como uma ideologia, no sentido de falseamento da realidade na sociedade onde impera o trabalho alienado e onde o idealismo nos atravanca a busca da emancipação humana. Trata-se de propor uma forma de entender o amor diante da realidade que vivemos, não nos permitindo a reprodução de peças enganosas para fundamentarem as relações sociais mais plenas de amor e realidade.