As posições historiográficas do intelectual brasileiro Caio Prado Júnior1 certamente tiveram um impacto importante e são reivindicadas por um amplo setor, que vai do meio acadêmico a uma gama de intelectuais e militantes que se denominam “de esquerda”. No entanto, algumas questões merecem ser assinaladas: Qual foi sua principal contribuição e mérito? Até que ponto “rompeu” com a linha teórico-política do Partido Comunista Brasileiro (PCB), isto é, com a concepção estalinista da história? O que Caio Prado propunha, programaticamente? O que seus principais críticos argumentaram? Em suma, como compreender globalmente sua obra?

O “sentido da colonização”
Em 1942, Caio Prado publicou sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, na qual estabeleceu sua polêmica opinião sobre o “sentido da colonização tropical”:

No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial […] destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes […] Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto […] Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país […] Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira2.

O autor propõe, portanto, que a estrutura econômica e social da colônia brasileira – cujos pilares são a “grande lavoura, a monocultura e o trabalho escravo” – esteve indissoluvelmente ligada e a serviço do mercado europeu. Assim, a produção para o mercado mundial – capitalista, agregamos – será o motor da colonização portuguesa na América, que, para isso, recorrerá à “mão-de-obra que precisa: indígenas ou negros importados”. Este caráter colonial, por sua vez, não terminaria com a independência política de 1822, mas prolongar-se-ia no tempo: “ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos”3.

Caio Prado não apenas acertou nessa definição geral, como também apresentou uma tese que se chocava com a visão estalinista, tanto no Brasil como no resto de América Latina, segundo a qual os europeus tinham “transplantado” e reproduzido o “feudalismo” nestas terras4. Essa era a análise-justificação, promovida pelo estalinismo, do programa etapista nos países semicoloniais: primeiro a revolução “democrática” e “antifeudal”, concebida como “etapa” obrigatória na qual o proletariado deveria subordinar-se à burguesia “progressista”, e sem a qual seria impossível abrir as portas ao capitalismo industrial; somente depois o programa socialista poderia ser proposto.

A resolução do VI Congresso Mundial da Internacional Comunista estabeleceu as distintas “graduações de maturidade nos distintos países”, que impunham “etapas intermediárias para chegar à ditadura do proletariado”5:

Os países coloniais e semicoloniais (China, Índia, etc.) e os países dependentes (Argentina, Brasil, etc.), com gérmens de indústria e, às vezes, com um desenvolvimento industrial considerável, mas insuficiente para a edificação socialista independente; com predomínio das relações feudal-medievais ou relações de “modo asiático de produção”. [Nestes países…] a transição à ditadura do proletariado é aqui possível, como regra geral, somente através de uma série de etapas preparatórias, como resultado de todo um período de transformação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista6.

A tradução desta tese ao caso brasileiro pode ser lida na resolução política do V Congresso do PCB, em 1960:

O Partido Comunista do Brasil, partido da classe operária, tem como objetivo supremo o estabelecimento da sociedade socialista. […] Nas condições atuais, entretanto, o Brasil tem seu desenvolvimento entravado pela exploração do capital imperialista internacional e pelo monopólio da propriedade da terra em mãos da classe dos latifundiários. As tarefas fundamentais que se colocam hoje diante do povo brasileiro são a conquista da emancipação do País do domínio imperialista e a eliminação da estrutura agrária atrasada, assim como o estabelecimento de amplas liberdades democráticas e a melhoria das condições de vida das massas populares. Os comunistas se empenham na realização dessas transformações, ao lado de todas as forças patrióticas e progressistas, certos de que elas constituem uma etapa prévia e necessária no caminho para o socialismo7.

Caio Prado teve a ousadia intelectual de qualificar essa tese como “obsoleta” para o Brasil, embora a considerasse acertada para os países asiáticos. Já em 1933, referindo-se ao caráter da propriedade jurídica da terra nos primeiros anos da colonização brasileira, Caio Prado refutou a questão do passado feudal: “Não comporta, todavia, nenhuma relação de caráter feudal, vassalagem ou outra. As terras eram alienáveis por livre disposição dos proprietários e não criavam laço algum de dependência pessoal”8.

Em sua interpretação histórica, Caio Prado opôs o conceito de “economia colonial” ao de “economia nacional”, entendida esta última como um modelo focado no atendimento das necessidades da população de seu país em detrimento dos “negócios” estrangeiros. Sintetizou essa visão teórica deste modo: “Numa palavra, não completamos ainda hoje a nossa evolução da economia colonial para a nacional”9.

As críticas ao “modelo” de Prado: o “escravismo colonial”
Entre as principais críticas teóricas à afirmação de Caio Prado sobre o “sentido da colonização”, destaca-se a tese do modo de produção escravista colonial. Possivelmente, a obra mais conhecida sobre o tema seja O escravismo colonial, escrita por Jacob Gorender10 e publicada em 1978, embora esse conceito tenha sido previamente proposto pelo intelectual Ciro F. Cardoso11.

Ambos autores enfocam sua análise na discussão sobre modos de produção, especialmente no Brasil, taxando o enfoque de Caio Prado, que enfatiza a relação colonial com o mercado europeu, de circulacionista. Gorender afirma que a escravidão é a categoria central, o “ponto de partida” para compreender o Brasil colonial:

Tal diferença consiste em que [Fernando] Novais e [João Manuel] Cardoso de Mello partem do sistema colonial mundial como totalidade que determina o conteúdo da formação social no Brasil, ao passo que eu inicio minha análise com o modo de produção escravista colonial, a cuja dinâmica própria atribuo uma determinação fundamental12.

Segundo esta interpretação, a estrutura econômica interna teria alcançado tal autonomia que engendrou um modo de produção original, distinto dos que surgiram anteriormente:

Impõe-se, por conseguinte, a conclusão de que o modo de produção escravista colonial é inexplicável como síntese de modos de produção pré-existentes, no caso do Brasil […] O escravismo colonial emergiu como um modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana13.

Em oposição à proposta de Prado Jr., seus críticos defenderam que a colônia tinha um “sentido” próprio. Gorender propôs, então, que “as relações de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora”14. Ciro F. Cardoso, por sua vez, criticou o modelo interpretativo de Prado, atribuindo-lhe uma “obsessão plantacionista”, que considerou simplificadora15.

Deve-se destacar que estes autores não deixaram de criticar o dogma estalinista dos “cinco estágios”. Argumentaram, corretamente, que tanto o desenvolvimento das forças produtivas quanto os modos de produção na América não seguiam – nem poderiam seguir – o “esquema” europeu. Mas, no afã de negar a dicotomia “passado feudal-passado capitalista”, foram pelo caminho de elaborar uma “teoria geral”16 sobre a complexidade da particularidade do caso americano. Assim, fazendo um chamado a “renunciar à importação de esquemas interpretativos elaborados a partir de outros processos de evolução”, Ciro F. Cardoso exortou:

[Deve-se reconhecer] a especificidade dos modos de produção coloniais da América. Mas, especificidade levada a sério, no sentido forte da palavra: eles existiram como estruturas dependentes (isto é, a dependência constitui um elemento essencial de sua definição e de seu modelo), mas irredutíveis aos esquemas eurocêntricos. […] Desde 1968, eu defendo a necessidade de reconhecer o caráter específico e irredutível dos modos de produção coloniais17.

Para demostrar a especificidade do “escravismo colonial”, a contribuição de Cardoso sistematizou as diferenças entre o escravismo da Antiguidade e sua versão moderna18. São evidentes as diferenças entre os “tipos” de escravismo, fundamentalmente porque o escravismo antigo e o moderno se assentaram sobre distintos graus de desenvolvimento das forças produtivas.

No entanto, tomadas como um todo, ambas formas de trabalho forçado mantiveram uma característica fundamental, comum a toda sociedade escravista: o escravo era ao mesmo tempo capital fixo e mercadoria; o mercado de trabalho era abastecido por roubos que “constituem pura e simplesmente atos de apropriação da força de trabalho por meio da violência física descarada”19.

Nesta perspectiva, a escravidão moderna não deixa de ser uma forma de produção pré-capitalista; sendo falso apresentar o “escravismo colonial” como um modo de produção completamente novo.

Não se trata de discutir se existiam ou não diferenças entre o escravismo moderno e o antigo, ou com o feudalismo e o capitalismo. Isso é verdade. Também é um fato que, na América, o capital comercial em expansão serviu-se das mais diversas relações de produção pré-capitalistas, que se combinaram entre si e deram origem a formações econômico-sociais “híbridas”, embora sempre com hegemonia de uma forma de produção ou outra em um determinado período. Assim, é certo que, nessa combinação de formas de produção, a predominante no Brasil, nas Antilhas, nas Guianas, no sul dos EUA, etc. foi a escravista.

A polêmica reside em qual era o objetivo – para que se organizava – essa produção; se o escravismo na América colonial estava subordinado, ou não, ao processo de acumulação primitiva de capital pela via da produção em grande escala para o mercado mundial, que era capitalista.

Em nossa opinião, durante o período de desenvolvimento do capitalismo americano –que vai do período colonial até fins do século XIX –, existiu uma combinação de relações de produção pré-capitalistas – que coexistiam inclusive com formas marginais de trabalho “livre” –, com uma predominância, no caso brasileiro e outros, da forma de produção escravista.

As contribuições de Cardoso e Gorender acertaram ao questionar a deformação estalinista dos “cinco estágios”, mas esse acerto acaba sendo diluído no erro de criar uma categoria em certa medida “autônoma” em relação ao processo de conformação do capitalismo americano e mundial, um pretendido modo de produção essencialmente “desconhecido” pela história.

Marx, referindo-se ao sul escravista dos EUA, definiu claramente o caráter das relações de produção no marco do processo de acumulação primitiva de capital, isto é, durante o período relacionado à escravidão nas colônias modernas:

A escravidão reaparece igualmente nas colônias, no período da acumulação primitiva, e mesmo depois do triunfo do modo de produção capitalista, sem que por isso se possa concluir que existiu um modo de produção escravista nos séculos XVIII e XIX. […] Se atualmente não só chamamos os proprietários de plantações na América de capitalistas, e eles de fato o são, isso se baseia no fato de que eles existem como uma anomalia no interior de um mercado mundial fundado no trabalho livre20.

O critério principal de Marx para sentenciar que os plantadores escravocratas dos EUA eram capitalistas partia do entendimento desse fenômeno – a escravidão – como parte dessa totalidade chamada mercado mundial capitalista. Seu raciocínio, oposto ao de Gorender, não considera a forma como eram produzidas as mercadorias como “determinação fundamental”. A preocupação de Marx é advertir que não se pode “concluir que existiu um modo de produção escravista nos séculos XVIII e XIX” simplesmente pelo fato de o trabalho “livre” não ser predominante, e que o escravismo era uma “anomalia” nesse mundo em plena transição ao modo de produção capitalista.

Marx insiste sobre este problema em outra passagem:

Na segunda classe de colônias – as plantações, que foram desde o primeiro momento utilizadas para criar especulações comerciais, centros de produção para o mercado mundial – existe um regime de produção capitalista, embora só de um modo formal, pois a escravidão dos negros exclui o livre trabalho assalariado, que é a base sobre a qual descansa a produção capitalista. No entanto, aqueles que controlam o negócio do tráfico de escravos são capitalistas. O sistema de produção introduzido por eles não provém da escravidão, mas se enxerta nela. Neste caso, o capitalista e o proprietário de terras são uma só pessoa21.

Em termos concretos: ainda que de maneira “formal”, ou seja, sem serem ainda “hegemônicas”, as relações de produção capitalistas – por meio dos “capitalistas” que “controlam o negócio do tráfico de escravos” e da orientação da produção para um mercado mundial comandado pelo capital comercial – iam se “enxertando” no escravismo existente no sul dos EUA, no Brasil, etc. Utilizando uma formulação mais específica, existia um processo no qual predominava a “subordinação formal do trabalho ao capital”. O escravismo era, portanto, uma de tantas formas de produção pré-capitalistas que o capital comercial e usurário “explorava” para extrair excedente social das colônias, mas sempre em benefício da acumulação primitiva.

No terreno metodológico, o erro de Cardoso e de Gorender radica em superdimensionar o fenômeno, perdendo de vista a totalidade e universalizando a particularidade.

A escravidão, assim como a encomienda mitaria ou yanacona22 e outras formas de trabalho na América colonial, que se assentavam na coerção extraeconômica, eram particularidades inseridas em uma totalidade: o capital comercial avançando, com distintos ritmos, sobre formas de produção pré-existentes, sem detrimento de utiliza-las durante séculos em proveito próprio. A escravidão nas colônias desenvolveu-se, então, como uma particularidade dentro da universalidade do processo de acumulação primitiva de capital.

Embora os autores mencionados assinalem que o “escravismo colonial” era “dependente”, devido à relação colonial, esse elemento é em seguida abstraído de suas conclusões. Terminam menosprezando a relação metrópole-colônia e a ligação com o mercado mundial capitalista. Perdem de vista que o grosso da produção extraída das colônias americanas, com todas suas particularidades, não era, majoritariamente, realizada nas colônias, mas fora delas, dado que estavam vinculadas às metrópoles e, por essa via, ao desenvolvimento desigual do capitalismo europeu.

Em meio deste processo geral, a escravidão – com sua odiosa brutalidade – foi uma necessidade econômica – altamente lucrativa – derivada tanto do interesse em ampliar a produção para um mercado que havia deixado de ser só “europeu”, como da escassez de mão de obra na América. Foi um processo similar à “segunda servidão europeia” mencionada por Engels23. O trabalho forçado transformou-se em algo imperioso no processo de acumulação primitiva de capital.

Marx assinala este papel econômico da escravidão moderna: “Em geral, a escravidão disfarçada dos trabalhadores assalariados na Europa exigia, como pedestal, a escravidão ‘sans phrase’ [sem floreios] do Novo Mundo”24. Em outras palavras, para garantir o desenvolvimento capitalista europeu, as colônias deveriam produzir em grande escala, inclusive com relações de produção que as próprias metrópoles haviam superado.

Marx assinala o “sentido” capitalista da moderna escravidão:

A escravidão é uma categoria econômica como qualquer outra. Portanto, tem também seus dois lados. Deixemos o lado mau e falemos do lado bom da escravidão: esclarecendo que se trata da escravidão direta, a dos negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte. A escravidão direta é o fundamento da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. A escravidão foi o que valorizou as colônias; foram as colônias criaram o comércio universal; o comércio universal é a condição da grande indústria. Por isto, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância. […] Os povos modernos conseguiram apenas disfarçar a escravidão em seus próprios países, impondo-a sem véus no Novo Mundo25.

Não se pode explicar a “estrutura interna” das economias coloniais americanas por fora deste processo de expansão do sistema capitalista.

Sendo assim, na tendência a tornar absoluto o “escravismo colonial” – pelo menos na visão de Gorender –, é possível perceber a concepção de uma espécie de etapa – não “feudal”, mas “escravista” –, cujos resquícios deveriam ser superados para abrir o caminho ao capitalismo industrial e, somente depois, ao socialismo.

Gorender afirmou que “a revolução burguesa é uma categoria inaplicável à história brasileira”26. No entanto, reconheceu que existia “uma burguesia brasileira, isto é, uma burguesia cujo centro de interesses se situa na economia nacional”27. Em outras palavras, trata-se de uma classe dominante nacionalista, embora às vezes inconsequente.

A fixação no “escravismo colonial” como “determinação fundamental” levou Gorender a avaliar positivamente a ideia de um papel politicamente “progressista” da burguesia abolicionista brasileira. Em 1981 afirmou que: “a Abolição foi a única revolução social jamais ocorrida na história de nosso País28.

Se considerarmos que, para o próprio Gorender, não foi a luta dos escravos o elemento determinante em semelhante transformação, cabe questionar: qual teria sido, então, o sujeito dessa revolução social? Acaso a burguesia industrial liberal? Foram os cafeicultores do oeste paulista?

Gorender responde que, embora não existisse um “estudo monográfico” sobre a atuação da burguesia em tamanha transformação, existiam “referências ocasionais à militância abolicionista de comerciantes e industriais”29 e uma “burguesia brasileira [que] não se comportou como espectadora passiva dos acontecimentos históricos”30, passando assim a ideia de um suposto papel revolucionário desse setor da classe dominante.

Em resumo: embora Gorender tenha questionado a tese do “passado feudal”, sua elaboração sobre o “escravismo colonial” e sua visão programática, como um todo, não passaram de uma variante do etapismo estalinista.

Caio Prado, o “político”: uma ruptura parcial e um programa etapista
Havíamos apontado que, de sua análise – essencialmente correta – sobre o “sentido” da colonização portuguesa no Brasil, Prado Jr. estabeleceu uma contradição principal: a oposição entre economia “colonial” e economia “nacional”.

Alguns autores identificam Caio Prado, devido à sua militância no PCB, como uma referência intelectual “marxista” e “comunista”. Permitimo-nos discordar. Apesar do enorme mérito de sua análise sobre o período colonial, Prado Jr. nunca rompeu completamente com a concepção etapista do estalinismo. E não é lícito confundir marxismo com estalinismo.

Em 1954, apontou que o problema central para o desenvolvimento econômico brasileiro seria a atrofia da produção – capitalista – para o mercado interno: “o vício que corrói a economia de boa parte do Brasil não é um nível técnico baixo, e sim a insignificância dos mercados; é aí que se situa o ponto nevrálgico do círculo vicioso que se trata de romper a fim de revitalizar a economia do país”31.

Embora Caio Prado não descartasse o socialismo “a longo prazo”, considerava-o prematuro para as condições históricas concretas do Brasil. Ainda em 1954, afirmou que as mudanças econômicas que propunha não implicavam na ruptura com o capitalismo nacional, mas o contrário, consistiam em um plano de reformas para fortalecê-lo:

[…] é dentro das relações capitalistas de produção que se propõe a política preconizada, pois essa política precisamente e essencialmente consiste em desenvolver os fatores econômicos que constituem os principais estímulos do mecanismo capitalista, a saber, o mercado. Se reformas se propõem, é justamente porque esses estímulos ou são insuficientes, ou atuam de maneira inconveniente para o desenvolvimento adequado, dentro dos quadros do capitalismo, de nossas forças produtivas32.

Em um artigo publicado em 1947 no jornal do PCB, Caio Prado já havia afirmado que o capital privado – embora “regulado” pelo Estado e por seus “órgãos representativos dos interesses da coletividade” –, poderia cumprir um papel progressista para desenvolver o Brasil:

Mas não uma iniciativa privada deixada a seu arbítrio e livre. E sim estritamente regularizada e encaminhada para aqueles setores da atividade onde a necessidade dela se faça mais sentir frente aos interesses gerais do país. E complementada e substituída sempre que convier e pela ação direta do Estado ou de seus órgãos representativos dos interesses da coletividade. Em suma, trata-se de aproveitar o capitalismo naquilo que ele ainda oferece de positivo nas condições atuais do Brasil; e contê-lo, e o suprimir mesmo no que possa se opor às reformas que o país necessita. E, ao mesmo tempo, ir preparando os elementos necessários para a futura construção do socialismo brasileiro33.

Dadas estas premissas, expôs a tarefa principal:

Trata-se de libertar as forças anticolonialistas já presentes no interior da atual estrutura econômica do país […]. Essas forças não são ainda ou não são, sobretudo, as do socialismo, que começa apenas a esboçar-se entre nós e precisará aguardar ainda, para amadurecer, um largo progresso das forças produtivas que não será possível sem a preliminar destruição do sistema colonial. As forças que realizarão essa destruição ainda são as do capitalismo34.

Em 1957, insistiu no caráter precoce dos países semicoloniais para o socialismo de maneira mais clara: “A socialização dos meios de produção, premissa dessa transformação, é certamente prematura nos países subdesenvolvidos com seu baixo nível industrial e a larga fragmentação e dispersão das atividades econômicas”35.

Em 1966, Caio Prado publicou seu livro A revolução brasileira, no qual reafirmou sua concepção geral de que a “linha central e essencial do desenvolvimento histórico brasileiro”36 não apontava ao socialismo, mas à “[…] integração nacional da economia brasileira”37.

Segundo essa visão, o socialismo era uma “previsão histórica” que não deveria interferir na formulação da política cotidiana:

É claro que, para um marxista, é no socialismo que irá desembocar afinal a revolução brasileira. […] Isto, contudo, representa uma previsão histórica, sem data marcada nem ritmo de realização prefixado. E podemos mesmo acrescentar, sem programa pré-determinado. Ela não interfere, assim, diretamente, ou não deve interferir na análise e interpretação dos fatos correntes, e muito menos na solução a ser dada aos problemas pendentes ou na determinação da linha política a ser seguida na emergência de situações imediatas38.

Mais contundentemente:

A eliminação da iniciativa privada somente é possível com a implantação do socialismo, o que na situação presente é desde logo irrealizável no Brasil por faltarem, se outros motivos não houvessem, as condições mínimas de consistência e estruturação econômica, social, política e mesmo simplesmente administrativa39.

Seguindo com a defesa, sem meias palavras, da “iniciativa privada” para o “mercado interno” – capitalismo nacional –, escreveu: “[…] é perfeitamente possível e acreditamos mesmo indispensável para o funcionamento regular da vida econômica brasileira, assegurar nela a participação da iniciativa privada40.

Nesse mesmo trabalho, aprofundou sua visão programática e expôs que essa “revolução”, na realidade, tratava-se de um “programa de reformas”41:

Tratar-se-á, dentro da planificação e direção gerais das atividades econômicas, em que se combinarão as iniciativas e empreendimentos públicos com a iniciativa privada, devidamente controlada e orientada, de visar sempre, e em primeiro e principal lugar, a elevação dos padrões materiais e culturais da massa da população, e a satisfação de suas necessidades […]42.

Sobre a burguesia nacional, escreveu:

A ‘burguesia nacional’, tal como é ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente anti-imperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil […] O anti-imperialismo tem no Brasil outro conteúdo e outras bases que interesses específicos da burguesia ou de qualquer dos seus setores43.

Sem dúvida isto é correto, e há quem utilize essa passagem para argumentar que Prado Jr. tinha uma estratégia “anticapitalista” e “socialista”. Mas esta afirmação não desmente as alegações – que encontramos em seus trabalhos de 1947, 1954 e até em 1966 –, que afirmam que o agente das transformações seriam as “forças do capitalismo” e a “iniciativa privada devidamente controlada”, que se combinariam com o que chamou “a massa rural”44, “massa da população brasileira”45, etc.

Prado Jr. também cedeu ao ecletismo ao evitar definir nada menos que o caráter da revolução brasileira:

É nesses termos que se propõe a questão, pouco importando a caracterização e definições teóricas, desde logo, da revolução brasileira, em função de situações históricas que não são a nossa e que dela se distinguem profundamente. Isto é, saber se é “socialista”, “democrático-burguesa”, “popular” ou outra qualquer46.

A visão geral da história brasileira elaborada por Caio Prado certamente tem seus méritos. No entanto, no terreno político – no qual seus estudos historiográficos cumpriram um papel coadjuvante – essa visão esteve a serviço de negar que o socialismo estivesse colocado objetivamente para o Brasil e os países semicoloniais, nos quais ainda faltava “um longo progresso das forças produtivas”. Desta maneira, por outra via e apesar de suas importantes críticas, sua elaboração parou na mesma “estação” que a da direção do PCB, que argumentava:

A contradição antagônica entre o proletariado e a burguesia, inerente ao capitalismo, é também uma contradição fundamental da sociedade brasileira. Mas esta contradição não exige solução radical e completa na atual etapa da revolução, uma vez que, na presente situação do País, não há condições para transformações socialistas imediatas […]47.

A lucidez de sua análise sobre o sentido da colonização não pode nublar, nem negar, que na proposta política de Caio Prado existe uma etapa prévia, sem a qual o socialismo é “irrealizável”: a eliminação dos traços coloniais da economia brasileira e o caminho a uma economia – capitalista “regulada” – nacional, que denominou “organização econômica nacional, a saber, estruturada em função e para o fim precípuo do atendimento das necessidades do próprio país”48, que teria como sujeito um leque policlassista de “forças anticoloniais”:

[A evolução brasileira está marcada pelo] processo geral que vai do Brasil colônia de ontem ao Brasil nação de amanhã, e que se trata hoje de levar a cabo. Tarefa essa que constitui precisamente a essência da revolução brasileira de nossos dias49.

Assim, Caio Prado acabou propondo uma concepção e um programa etapistas, circunscritos aos limites do “campo democrático-popular”. Um horizonte político situado na realização de um capitalismo “nacional”, focado no mercado interno e estritamente “regulado”, como condição para alcançar a soberania nacional e satisfazer as necessidades da maioria da população de seu país. Dito de outra maneira, uma “independência nacional” sem romper com a burguesia nacional associada ao imperialismo.

Tradução: Marcos Margarido


Notas

1 Caio Prado Júnior [1907-1990]. Intelectual brasileiro, membro do Partido Comunista Brasileiro [PCB] de 1931 à sua morte. Filho de uma das famílias mais ricas e tradicionais de São Paulo, foi eleito deputado nacional em 1945 e deputado constituinte em 1948. Seu mandato, porém, foi cassado em virtude do banimento do PCB. Foi admirador da URSS, que visitou em duas ocasiões, sendo a primeira em 1933. Ao retornar, escreveu seu primeiro ensaio historiográfico: Evolução Política do Brasil – Ensaio de Interpretação Materialista do Brasil. Em 1934, escreveu outro texto: URSS, um novo mundo. Elogiou os regimes da Polônia, da ex-Checoslováquia, China e Cuba, onde foi recebido por Fidel Castro. Em seu papel de empresário, fundou a Editora Brasiliense em 1943 e a Revista Brasiliense em 1955, esta última fechada pela ditadura militar em 1964. No terreno historiográfico, criticou a teoria do PCB sobre o “passado feudal” do Brasil. Entre suas principais obras se encontram: Formação do Brasil contemporâneo (1942) e A Revolução Brasileira (1966), estudos históricos voltados ao debate político de seu tempo.

2 PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1972, pp. 31-32. Todos os destaques são nossos, salvo indicação contrária.

3 Idem.

4 A questão do passado feudal na América Latina foi incorporada formalmente em 1928, durante o VI Congresso da III Internacional Comunista, já controlada pelo estalinismo. Nessa linha, entre 1929 e 1931, a burocracia da ex-URSS decidiu eliminar o conceito marxista de modo de produção asiático – sem propriedade privada, mas com exploração dos camponeses por uma casta dirigente e administradora dos trabalhos públicos e dos canais de irrigação –, porque essa categoria poderia contribuir para elucidar o caráter do próprio regime burocrático estalinista. Em 1938, Stalin estabelece a teoria dos cinco modos de produção: “A história conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo”, encontrada em seu livro Materialismo dialético e materialismo histórico, disponível em: <http://www.marx2mao.com/M2M(SP)/Stalin(SP)/DHM38s.html>. Estes cinco estágios, sucedidos linearmente, eram considerados “etapas” comuns ao desenvolvimento histórico de todos os povos. Nesta perspectiva, por exemplo, Stalin caracterizava as sociedades incas, maias e astecas como escravistas.

5 Programa y estatutos de la Internacional Comunista. Adoptados por el VI Congreso Mundial en Moscú el 1 de septiembre de 1928. Bruxelas: Ediciones Adelante, s/d, p. 52. Destacado no original.

6 Ibidem, p. 54.

7 Resolução política do V Congresso do PCB [1960]. Disponível em: <https://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=149:resolucao-politica-do-v-congresso-do-pcb&catid=1:historia-do-pcb>, consultado em 02/12/2016.

8 PRADO Jr., Caio. Evolução política do Brasil [1933]. 15a ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 15.

9 PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo…, p. 7.

10 Jacob Gorender [1923-2013]. Intelectual brasileiro e dirigente do PCB. Ingressou ao PCB em 1942, chegando a compor seu Comitê Central em 1960. Destacou-se na redação do órgão central do partido, Classe Operária, e na tarefa da formação de militantes nos chamados Cursos Stalin. Estudou na Escola Superior do PC da URSS, entre 1955 e 1957. Em sua volta, fez parte da redação da “Declaração de março de 1958”, que mudou a orientação “esquerdista” do PCB para adotar una linha mais adaptada à legalidade democrática. Depois da instauração da ditadura militar em 1964, surgiram diferenças internas sobre como enfrentar esse regime e Gorender rompeu com o PCB para fundar, em 1967, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), que propunha uma luta aberta, inclusive armada, contra o regime militar. Foi preso e torturado pela ditadura brasileira entre 1970 e 1972. Sua principal obra, O escravismo colonial, foi escrita em 1978. Afastou-se da militância partidária por muitos anos, até que ingressou no PT brasileiro na década de 1990.

11 Ciro Flamarion Cardoso [1942-2013]. Intelectual brasileiro. Escreveu sobre história e metodologia, mas seus principais estudos centraram-se nos modos de produção colonial, aos quais atribuía caráter específico. Foi pioneiro no conceito de modo de produção escravista colonial. Posteriormente, transformou-se em egiptólogo.

12 GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira [1981]. 2a. reimpressão da 3a. ed. de 1990. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 7.

13 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 3a. ed. São Paulo: Ática, 1980, p. 54. Destacado no original.

14 Ibidem, p. 21.

15 CARDOSO, Ciro F. O trabalho na colônia. In: LINHARES, M. Y. (Org.). História geral do Brasil. 5a ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 69.

16 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial…, p. 22.

17 CARDOSO, Ciro F. Severo Martínez Peláez y el carácter del régimen colonial. In: ASSADOURIAN, Carlos, et al. Modos de producción en América Latina. Córdoba: Cuadernos Pasado y Presente, 1974, p. 102.

18 CARDOSO, Ciro F. El modo de producción esclavista colonial en América. In: ASSADOURIAN, Carlos, et al. Modos de producción en América Latina…, p. 224.

19 MARX, K. Contribución a la crítica de la economía política. Buenos Aires: Estudio, 1970, p. 210.

20 MARX, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. Grundrisse [1857-1858]. In: MARX, K.; ENGELS, F. Materiales para la historia de América. Córdoba: Cuadernos Pasado y Presente, 1972, p. 164.

21 MARX, K. Historia crítica de la teoría de la plusvalía. Tomo II. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, pp. 332-333.

22 Formas de exploração semiescrava na América espanhola [nota da tradução].

23 Engels explicou que, no século XVI, houve um “renascimento” feudal em grande parte da Europa Oriental, com o objetivo de produzir lã e outras matérias primas para o desenvolvimento manufatureiro da Europa Ocidental. Assim, o servo viu reforçada sua sujeição à terra pela força, para produzir em grande escala para o mercado ocidental. Esse processo seria uma antecipação do que ocorreria, de maneira ampliada, no Novo Mundo. Consultar: MAZZEO, Antônio. O escravismo colonial: modo de produção ou formação social? Revista Brasileira de História. São Paulo. V. 6. Nº 12, 1986, p. 211.

24 MARX, K. El Capital. Tomo I. [1867]. In: MARX, K.; ENGELS, F. Materiales para la historia de América…, p. 166. Destacado no original.

25 MARX, K. Miseria de la Filosofía [1847]. In: MARX, K.; ENGELS, F. Materiales para la historia de América…, p. 153.

26 GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira…, p. 112. Destacado no original.

27 Ibidem, p. 111. Destacado no original.

28 Ibidem, p. 21. Destacado no original.

29 Ibidem, p. 22.

30 Ibidem, p. 112.

31 PRADO Jr., Caio. Diretrizes para uma política econômica brasileira. São Paulo: Gráfica Urupês, 1954, p. 115.

32 Ibidem, pp. 227-228.

33 PRADO Jr., Caio. Fundamentos econômicos da revolução brasileira. A Classe Operária, 1947, p. 6.

34 PRADO Jr., Caio. Diretrizes…, p. 236.

35 PRADO Jr., Caio. Esboço dos fundamentos da teoria econômica. 3a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 222.

36 PRADO Jr. Caio. A revolução brasileira. 3a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 145.

37 Ibidem, p. 132.

38 Ibidem, pp. 9-10.

39 Ibidem, p. 250.

40 Idem.

41 Ibidem, p. 251.

42 Ibidem, p. 253

43 Ibidem, pp. 179-180.

44 Ibidem, p. 255.

45 Ibidem, p. 258.

46 Ibidem, p. 252.

47 Resolução política do V Congresso do PCB [1960]. Disponível em: <https://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=149:resolucao-politica-do-v-congresso-do-pcb&catid=1:historia-do-pcb>, consultada em 02/12/2016.

48 PRADO Jr. Caio. A revolução brasileira…, p. 144.

49 Ibidem, p. 118.