O tema da corrupção é tratado, pelo senso comum e pelo pensamento conservador, como o centro das mazelas sociais e como um problema puramente ético. Já a esquerda, a seu turno, parece desdenhar a questão, tomando-a simplesmente como uma pauta conservadora – e essa postura esquiva iniciou-se, não por acaso, com o caso do Mensalão: diante da popularidade do governo Lula em 2005 e, acima de tudo, da sua adesão à cartilha neoliberal, o que havia restado à oposição de direita para se afirmar era o discurso ético contra o PT, silenciando-se, hipocritamente, sobre os seus próprios escândalos. Desde então, a esquerda passou a confundir a repulsa das massas contra a corrupção com um sentimento antipetista de direita, associando o tema a uma questão de “atraso de consciência” da população.

Ainda que a indignação das massas contra a corrupção não fosse justa – e definitivamente não é esse o caso –, seria necessário, de qualquer maneira, um exame marxista acerca desse fenômeno, uma vez que ele é uma constante nas formações sociais capitalistas. Tal exame exige, fundamentalmente, uma reflexão a respeito do Estado e da política conforme as determinações históricas do capitalismo. Nosso esforço vai nessa direção.

Cabe ressaltar que, no contexto da Operação Lava Jato, a compreensão marxista sobre a corrupção é decisiva, eis que a indigência teórica e o impressionismo têm levado boa parte da esquerda a aderir, inclusive, a tresloucadas “teorias da conspiração”, como se o problema das práticas dessa natureza não passassem de uma grande encenação para se encobrir a dominação imperialista do capital internacional – e como se ele precisasse apelar a esses expedientes para exercer a sua dominação! Veremos, no entanto, que a crítica marxista do Estado oferece uma leitura muito mais coerente e, para dizer o mínimo, muito mais sóbria.

Autonomia e impessoalidade do Estado como atributos capitalistas
É comum dizer-se, dentro do marxismo, que o Estado é detentor de uma “autonomia relativa”. Isto significa que ele consiste num aparato especializado de dominação, uma aparelhagem que se destaca das classes dominantes diretamente interessadas na exploração, e que funciona em relação a elas com algum nível de independência: não é um fantoche, um mero instrumento da classe exploradora, embora esteja longe de ser indiferente aos seus desígnios e muito menos às suas atividades econômicas.

A autonomia é um atributo do Estado tanto quanto a impessoalidade e a soberania – e aqui nos referimos à forma política do capitalismo. Seu fundamento social é a estrutura mercantil da sociedade burguesa, a qual estabelece um tipo de autoridade que, respeitando a igualdade formal entre as partes num conflito, assume uma posição de equidistância entre elas. Trata-se da encarnação jurídica de um interesse geral de todos os cidadãos, uma aparência necessária no sistema de formas impessoais que caracteriza a dominação capitalista.

Essa autonomia do Estado, assim, é um corolário da troca mercantil generalizada, da equivalência oriunda da sociedade do trabalho abstrato e da forma jurídica, que tem no contrato uma de suas principais expressões. Ao chancelar a igualdade jurídica presente no contrato e em todas as transações contempladas pelo direito, o Estado legitima o reino da desigualdade material sob o pretexto de isonomia e imparcialidade. E ele é, de certo modo, formalmente imparcial, já que as classes dominantes só podem ocupar as instâncias legais de poder mediante critérios objetivos, legalmente estatuídos, e não simplesmente pelo exercício de um poder de fato, pelo mando nu e cru.

Na medida em que, pela lógica mercantil da sociedade capitalista, não se pode admitir que um indivíduo, enquanto portador de mercadorias, sobreponha-se a outro diretamente, ou seja, sem recorrer a uma autoridade superior e supostamente distanciada dos interesses em jogo, a autonomia do Estado é uma manifestação necessária da sua existência enquanto forma política capitalista. Isto vale tanto para os conflitos entre burgueses e proletários como para os conflitos interburgueses, já que o direito, sendo consequente com seu caráter abstrato, não faz qualquer diferenciação dessa ordem nas lides que se travam dentro dele.

Da autonomia do Estado enquanto pretensão de imparcialidade jurídica, enquanto posição de neutralidade perante o conjunto dos cidadãos (abstraindo-se aí, juridicamente, a existência das classes sociais), segue-se uma autonomia mais política propriamente, e que é conhecida pelo seu caráter relativo. Pois além de ser juridicamente autônomo em face de cada cidadão, o Estado é também autônomo, agora no plano político, em relação às frações da classe dominante e aos capitalistas individualmente considerados. Mas há que se ter em conta a relatividade desta autonomia, haja vista o fato de que o intercâmbio constante entre indivíduos da classe dominante e o aparato estatal introduz elementos de pessoalidade no exercício concreto da dominação burguesa – até o ponto máximo em que nem mesmo a legalidade oficial comporta a “intimidade” de certos laços, o que pode levar ao enquadramento nos crimes de corrupção.

O crime de corrupção como delito peculiar ao capitalismo
Há que se notar que a noção de corrupção depende de uma nítida distinção entre o público e o privado, razão pela qual ela é inaugurada pelo capitalismo. Por mais que se possa dizer que, numa sociedade socialista, subsistiria uma esfera coletiva que poderia ser lesada por ações individuais egoísticas, ensejando práticas qualificáveis como “corruptas”, fato é que é apenas na ordem social burguesa que se verifica uma oposição nítida e bem definida entre um domínio público de Estado e um domínio privado civil. Práticas de corrupção no interior do socialismo, ou de uma sociedade em transição, devem ser compreendidas como desvios e deformações burocráticas, e não como expressão de uma dualidade contraditória entre Estado e sociedade civil – a não ser, certamente, no que se refere às reminiscências das formas políticas a serem superadas.

A oposição entre o público e o privado só pode existir no capitalismo, é dizer, nas sociedades em que há uma esfera privada mercantil tutelada por um poder público impessoal, um poder autenticamente de Estado. Esse Estado, diferentemente dos aparatos políticos pré-capitalistas, tem as suas fronteiras rigorosamente delimitadas em relação à sociedade e às classes existentes. É o exato contrário do que se tinha, por exemplo, no absolutismo, a forma política da feudalidade decadente na Europa. Sob o absolutismo, o aparelho político era caracterizado pela unidade entre o patrimônio da coroa e o patrimônio do monarca, pelo caráter patrimonial da própria coroa (os reinos poderiam ser transmitidos por sucessão hereditária como qualquer outro objeto pessoal), pelo papel da corte aristocrática na condução da política monárquica, pela venalidade dos cargos administrativos etc.

Uma vez estabelecida a linha divisória entre o público e o privado, o Estado pode finalmente demarcar a sua existência como forma histórica determinada. Isto exige que ele se ocupe da manutenção dessa fronteira o tanto quanto possível. Daí a previsão legal, própria da modernidade capitalista, de crimes contra a administração pública: trata-se de aplicar uma repressão penal em defesa da impessoalidade do Estado. Fora desses marcos capitalistas, esse tipo de criminalização não faria sentido. No absolutismo, por exemplo, a fruição de benefícios pessoais em função de uma posição privilegiada no aparato político era a regra (privilégios aristocráticos), de sorte que a própria ideia de corrupção, com seu conteúdo atual, não poderia ter lugar. O que havia, ao invés disso, era a previsão de crimes contra a coroa (traição, sedição, conspiração etc.), contra a majestade do rei (e não contra a figura do ente estatal).

O combate à corrupção promovido pelo Estado, entretanto, não é efetivamente uma tentativa de se efetivar uma imparcialidade real, material, mas apenas uma reação, por parte dos quadros do aparato, contra as iniciativas e práticas que “sequestram” as instituições estatais e seus recursos em proveito de um grupo muito restrito de capitalistas, geralmente menor do que uma fração burguesa. Esse “sequestro” é combatido pelo Estado não para extirpar as formas de influência dos capitalistas sobre os processos políticos (o que seria impossível, aliás), e sim para tolher os “excessos”, permitindo que a burguesia de conjunto possa usufruir, ainda que desigualmente, dos benefícios oferecidos pelo aparelho estatal.

Se o Estado admitisse que um pequeno grupo de burgueses se apropriasse dos seus órgãos e do seu patrimônio, ele não teria condições de defender os interesses da burguesia de conjunto, nem de garantir a reprodução geral do capital num dado país. Pois para cumprir com esse papel, ele deve ser autônomo o suficiente para, mesmo permeado concretamente por interesses particulares, tomar certas atitudes em favor do interesse maior do capital, tais como: refrear as ações inconsequentes de indivíduos e agrupamentos burgueses determinados; adotar medidas benéficas à acumulação capitalista que possam afetar negativamente, num primeiro momento, determinados segmentos empresariais; mediar conflitos interburgueses de maneira controlada e segura, evitando que uma burguesia dividida leve o seu país ao caos completo; e um longo etc.

Não se pode esquecer que a compleição social do capitalismo, precisamente por ser mercantil, é também competitiva. A concorrência é uma lei inextirpável nas formações sociais capitalistas. Tal característica realça a presença do antagonismo e das disputas entre as frações da classe burguesa e mesmo entre seus membros. Incumbe ao Estado, e a nenhuma outra instância social, a tarefa de organizar esses conflitos, de ser uma arena em que todos os burgueses possam se sentir à vontade para travar o seu “bom combate”, mesmo que sejam derrotados – muito embora os burgueses não se enquadrem na melhor definição de “bons perdedores”. Seja como for, a imparcialidade formal do Estado deve estar respaldada por um mínimo de lastro real no tocante à diversidade interna da classe capitalista. Se o Estado, na prática, é objeto de posse de determinado segmento burguês, ele perde a sua função de arena segura, e o antagonismo existente tende a se desenrolar por vias mais perigosas, mais imprevisíveis e instáveis.

O que move, assim, os quadros do aparato estatal na luta contra a corrupção, para além de expectativas pessoais de promoção e destaque, é a razão de Estado, o impulso que coloca a sobrevivência do aparato em sua autêntica funcionalidade como um objetivo urgente e indeclinável. Não se trata, então, de colocar o Estado à disposição de todos os cidadãos (por mais que, individualmente, certos agentes públicos possam ser guiados por essa ideologia), de devolvê-lo ao povo, ao bem comum, e sim de restabelecer uma situação de equilíbrio mínimo entre as forças capitalistas que competem entre si, e que encontram no acesso direto ao poder público um ponto estratégico (e “desleal”, segundo a lógica do mercado) de vantagem competitiva. Em poucas palavras, os agentes engajados contra o que o capitalismo considera corrupção (já que há diversas interações legalmente admitidas entre o público e o privado) são apenas a personificação dos esforços da forma política estatal para reafirmar suas premissas contra os “abusos” que podem descaracterizá-la.

Colocando-se dessa maneira, percebe-se que a corrupção, na perspectiva dos capitalistas envolvidos, é uma espécie de “trapaça” no jogo competitivo, pois ela consiste no uso privado de um aparelho que deveria tutelar a concorrência. A equidistância estatal perante os capitais é substituída pela venalidade e pela parcialidade indisfarçável, desfigurando a proposta encerrada no conceito de Estado. É claro que sempre há uma margem admitida de corrupção, e que se poderia entender como inevitável no capitalismo, já que as interações entre o empresariado e o poder público são constantes em virtude das atribuições administrativas e jurisdicionais do Estado. O que a ordem do capital não pode conceber é a exacerbação da atividade corrupta, quer dizer, a sua elevação até as últimas consequências.

Contraditoriamente, porém, cada capitalista individual não mede esforços para obter vantagens particulares perante o Estado, e com o mesmo estímulo que o leva a tentar burlar individualmente a legislação trabalhista. Tanto os encargos trabalhistas quanto as regras de defesa da imparcialidade estatal correspondem a exigências objetivas à ordem social capitalista como um todo, o que não impede que representem, simultaneamente, um obstáculo a ser transposto por cada capital em sua sede desmesurada de lucro. Ora, essa circunstância se agrava na época monopolista, em que determinados capitais individuais assumem proporções suficientes para ocupar espaços públicos em detrimento dos rivais menores. E ao se acrescentar, nesse quadro da época monopolista, a crescente participação do Estado na economia, é possível entender como as interações constantes entre o poder público e o poder privado criam zonas cinzentas dentro do próprio aparelho estatal, nas quais operam quadros que transitam constantemente entre uma esfera e outra. Essa constatação aparece em Ralph Miliband1 e, de forma precoce (e brilhante), já em Evgeni Pachukanis, que identifica a formação de funcionários públicos dedicados aos círculos de negócios e à organização das finanças num entrelaçamento com tarefas políticas2.

Corrupção e sistema político
Em acréscimo, é preciso considerar um elemento complicador, a saber, o sistema político. Este consiste no quadro geral de disputas e compromissos entre os partidos da ordem, é dizer, entre as agremiações partidárias que atuam no sentido de reproduzir o regime político vigente, jogando as regras do jogo e reiterando, de diferentes maneiras, as funções do Estado. Trata-se, de fato, de um complicador, já que os partidos que compõem o sistema político, apesar de serem representantes de frações de classe ou de outros segmentos organizados (como burocracias sindicais, setores ditos de “classe média”, lideranças religiosas etc.), possuem também os seus próprios interesses, é dizer, também apresentam uma agenda política própria, e que nem sempre converge de imediato com as aspirações dos grupos representados.

Sabemos que os capitalistas individuais e as frações capitalistas, na medida de sua capacidade de influência (poder econômico acima de tudo), avançam sobre a aparelhagem de Estado para obter todo o proveito que lhes for possível. Como regra, porém, esse assédio sobre as instâncias do poder público exige a mediação do sistema político e, particularmente, da figura do partido político – e isso é ainda mais nítido na democracia liberal, que não é senão o regime da normalidade política capitalista. Do mesmo modo que a burguesia confia as principais funções de gestão empresarial a uma camada assalariada de especialistas em administração, pode-se dizer que ela fez o mesmo para o trato com as esferas do Estado. E ela o fez não por inventividade gratuita de sua parte, ou por capricho, e sim porque a representação parlamentar, para ser efetiva, depende de uma coluna de quadros, de políticos profissionais, que se especialize na vida parlamentar e ministerial. Não à toa, as tendências oportunistas e conciliatórias surgidas no movimento operário necessariamente tiveram que se expressar sob a forma partidária, no sentido de que a sua integração ao regime só poderia ser completa por meio de um instrumento organizativo integralmente dedicado ao trânsito pelas esferas representativas de poder.

Por outro lado, as agremiações partidárias, ao se inserirem no sistema político, desenvolvem as suas próprias pretensões, tornando-se forças políticas relativamente autônomas. E mesmo dentro delas, surgem alas e facções que, por vezes, alcançam um sentido suprapartidário, tal como se vê nas bancadas parlamentares. Mesmo sendo formas necessárias, os partidos, em certas ocasiões, funcionam apenas como pontos de apoio (legendas legalizadas) para grupos políticos mais consistentes, e que transcendem, na sua materialidade, as demarcações partidárias.

Os partidos políticos, para adquirirem força material (e política), precisam de inserção em pontos-chave do aparato estatal. Isto vale, obviamente, para os partidos da ordem, cujo objetivo é galgar posições de poder no Estado e tirar vantagens do jogo do sistema político. Para tanto, os partidos se apóiam em quadros políticos que almejam pretensões de poder institucional, e que, movidos por tais aspirações, muitas vezes aglutinam alas partidárias em torno de si. A capacidade de aglutinação interna desses quadros passa tanto pelo seu alinhamento nas disputas políticas quanto pelos recursos materiais de que dispõem para amealhar seguidores (concessão de cargos de confiança no Estado, uso de influência para o fornecimento indireto de cargos, posse de meios de chantagem etc.)

Ao galgarem posições de poder, os partidos criam uma rede de relações políticas que são em grande medida conduzidas por critérios de pessoalidade referentes aos quadros partidários. Essa pessoalidade, própria do fisiologismo, é dependente da forma política partidária, que é, em princípio, uma forma impessoal. Erige-se, assim, uma contradição entre o elemento pessoal do fisiologismo e a impessoalidade do Estado e dos partidos, um conflito entre tendências antagônicas entre a forma estatal e o sistema político, essa constelação de agremiações partidárias.

Esse conflito pode se apresentar como um choque, ainda que temporário, entre os representantes que personificam cada tendência. Desse modo, os representantes envolvidos em funções de Estado e em incumbências jurídicas pendem para o lado da impessoalidade do Estado, para a dominação burguesa em seu formato “típico”, conforme a cartilha estática da legalidade. Já as lideranças do sistema político e os quadros das instâncias de negócios entre o poder público e as empresas pendem para a dinâmica do jogo político, para os interesses fisiológicos e para a volubilidade dos governos e gabinetes parlamentares. Por óbvio, há exceções: pode-se sempre encontrar juristas investidos de funções estatais engajados na vida político-parlamentar do país, bem como políticos profissionais com perfil legalista (muito embora tal categoria seja muito mais rara, uma vez que a dinâmica político-parlamentar impõe o pragmatismo e o “utilitarismo” no trato com a legalidade).

Rápidas considerações sobre o caso concreto da Operação Lava Jato
Agora que estamos de posse de elementos conceituais marxistas mais elaborados, podemos nos pronunciar sobre a crise política no Brasil e a Operação Lava Jato sem incorrer no rastejante impressionismo de uma esquerda sempre em busca de pretextos para justificar seus posicionamentos campistas.

Ao levarmos em consideração todas as características que explicamos, a saber, as formas impessoais do Estado em contraste com os elementos de pessoalidade do sistema político e da interação entre o domínio público e os capitais privados, nota-se que as análises que interpretam a Operação Lava Jato como uma conspiração internacional chegam a ser infantis, ou quiçá preguiçosas, eis que deixam de lado a complexidade interna do jogo político e da aparelhagem estatal.

Não é necessário apelar a poderes ocultos e externos para se explicar o que se passa no Brasil. É muito mais plausível (e dialético) examinar o problema a partir das contradições internas colocadas: uma colisão entre duas tendências distintas, embora igualmente capitalistas. De um lado, órgãos como o Judiciário e a Polícia Federal encarnam a propensão de autonomia e impessoalidade do Estado, engajando-se para que ele esteja à disposição não apenas das empreiteiras, mas de todos os capitalistas. De outro, os partidos da ordem, que construíram o sistema político brasileiro a partir de suas interações com um clube seleto de capitais monopolistas via Executivo e Legislativo.

Essas tendências, sendo antagônicas, estão sempre em choque, mas desta vez a contradição assumiu uma dimensão explosiva em função de um novo (e aberrante) desequilíbrio que se instaurou no interior do Estado, ou melhor, a um equilíbrio mais efetivo e, por conta disso, disfuncional. A regra de ouro da democracia liberal é a preponderância do parlamento sobre os outros poderes. Com a crise política, a posição de poder das casas legislativas sofreu um duro abalo (sendo que a Câmara dos Deputados foi mais abalada do que o Senado). Nessa divisão de poderes, o enfraquecimento do parlamento deu ensejo a um correlato fortalecimento do Judiciário e da Polícia Federal (a instituição do poder executivo que, ao contrário da presidência e dos ministérios, conseguiu escapar, até agora, dos escândalos). Isso permite que essas instituições consigam agir com uma margem de manobra maior do que o habitual, o que só faz agravar a turbulência política do país.

É assim que se deve entender a indignação de Lula e companhia em face da “República de Curitiba”, assim como as teorias que projetam o juiz Sérgio Moro como uma figura de poder extraordinário: um quadro orgânico das elites, um agente da CIA, um presidenciável dissimulado etc. Todo esse exagero ridículo se deve ao assombro diante de uma situação estranha à rotina da democracia liberal. Em condições de normalidade, um juiz de primeira instância jamais conseguiria causar “estragos” significativos no cenário político, jamais ousaria afrontar-se com figurões do Executivo e do Legislativo – e mesmo que o fizesse, seria reformado por instâncias superiores do Judiciário. Moro não é um juiz dotado de poderes suprainstitucionais. É apenas um agente de nível intermediário do aparato estatal que age livremente, relativamente imune às pressões políticas dos demais poderes, e que se ampara no instante de prestígio de que desfruta o poder judiciário. Se ele tem pretensões carreiristas pessoais, é irrelevante por enquanto, pois o que conta é a relação objetiva entre a esfera judicial e as demais esferas. É nessa relação que qualquer quadro estatal se apoia.

As leituras que enxergam no juiz Sérgio Moro uma espécie de direção da classe capitalista, ou que lhe atribuem o poder individual de corroer o sistema político brasileiro com o único objetivo de atingir Lula – deixando-o por último como um requinte de crueldade –, são, pois, dignas de escárnio. Quem sabe, no entanto, elas não possam produzir algum efeito prático? Caso Moro descubra o que tanto se especula a seu respeito, talvez ele se convença de que, de fato, pode desempenhar o papel de salvador da República!

Aliás, é impossível não notar como amplos setores da esquerda compartilham da mesma maneira de pensar a política (ainda que com objetivos distintos) com os seus antagonistas de direita. Enquanto os ditos “coxinhas” idolatram Moro como herói nacional, nossa esquerda entra de cabeça nesse fetiche, mesmo que com sinal trocado: o tal juiz segue no centro da interpretação sobre a Lava Jato, mas com uma diferença valorativa: ao invés de ser o herói do filme, ele é o vilão principal. Como se irmanam metodologicamente esses campos antagonistas! Como se igualam em sua miséria teórica!

Sérgio Moro é, fundamentalmente, um espetáculo midiático. Outros juízes têm julgado casos envolvendo políticos corruptos sem a mesma cobertura de imprensa, embora de um modo igualmente dissonante das aspirações de estabilidade do regime. É um fenômeno maior, mais amplo. Isso só ocorre, insista-se, porque o Judiciário e parte do Executivo estão se aproveitando da debilidade conjuntural do Legislativo, do seu desgaste para além do comum. É esse desgaste que explica a vulnerabilidade do sistema político, a sua incapacidade de articulação com as altas esferas do poder judiciário para disciplinas a atuação “irresponsável” de agentes de primeira instância. É como uma orquestra cujo maestro está desmoralizado a tal ponto que já não consegue convencer os músicos a seguirem suas instruções.

Qual é, portanto, o papel objetivo cumprido pela Operação Lava Jato? O seu efeito corrosivo sobre o sistema político é inegável. De certo modo, ela decapitou os principais partidos, comprometendo seriamente suas aspirações eleitorais. A incerteza é enorme. Seria esse o plano do imperialismo para o Brasil? Os EUA, que passam por sua principal crise política interna das últimas décadas e por conflitos diplomáticos importantes com a Rússia, estariam empenhados em dinamitar o cenário político brasileiro, destruindo, inclusive, a direção do PSDB? Parece-nos pouco crível.

Por óbvio, seria um grave erro confiar a luta contra a corrupção ao Judiciário e à Polícia Federal. Tais instituições, enquanto pilares da ordem capitalista, não podem depurá-la das suas práticas imanentes, dentre as quais podemos indicar o intercâmbio espúrio entre a esfera pública e a esfera privada, conforme demonstramos anteriormente. O capitalismo precisa afirmar essa divisão e, ao mesmo tempo, deve contorná-la. Ele está fadado a produzir corrupção (seja materialmente, seja como delimitação jurídica) e a combatê-la dentro de estreitos limites.

Não cabe aos revolucionários celebrar a Lava Jato, mas tampouco é correto lamentar pelos políticos atingidos por ela, porque a desorganização dos “de cima” fomentada pela ação descontrolada de policiais, juízes e promotores é do nosso interesse – pouco importa quem cause esse desarranjo. Podemos perfeitamente nos comprazer com o desmoronamento parcial do sistema político, com esse apodrecimento documentado e divulgado diariamente. A falência desse sistema não é o “fim da política”, como imaginam os reformistas amedrontados e os intelectuais acomodados; ela é o fermento necessário para a ação das massas contra o Estado e contra a ordem capitalista. Saibamos saborear esse momento de crise nas alturas do poder: é preciso aproveitá-lo para incendiar a indignação do proletariado.


Notas

1 MILIBAND, R. El Estado en la sociedad capitalista. Traducción de Francisco González Aramburu. Distrito Federal (Ciudad de México): Siglo Veintiuno, 1970.

2 PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Tradução de Lucas Simone (coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia). São Paulo: Sundermann, 2017, p. 310-311. Essa elaboração está contida no texto “O aparato de Estado soviético na luta contra o burocratismo”, inédito em português.