Nosso objetivo com o presente artigo é aprofundar o debate sobre a relação entre capitalismo e racismo numa perspectiva de materialismo histórico-dialético. Na esteira da produção teórica já existente, queremos pensar em novos passos a serem dados no estudo do vínculo entre capitalismo e racismo, explorando categorias que, a nosso ver, permanecem sub-utilizadas. Esperamos, assim, apontar para caminhos promissores do ponto de vista da elaboração e da compreensão sobre o tema, e queremos fazê-lo pensando a formação social brasileira, isto é, contemplando algumas das suas peculiaridades históricas.

O problema das opressões
O marxismo deve investigar com mais afinco o problema das opressões, compreendendo a opressão como uma categoria social específica, distinta da exploração e da dominação. Com efeito, o fenômeno de que tratamos não se confunde nem com a apropriação do excedente econômico sob a forma de mais-valia e nem com a subjugação política organizada pelo Estado. Não temos condições aqui de ir mais a fundo na questão; porém, o exame do racismo exige que trabalhemos com uma definição provisória de opressão.

Podemos identificar a opressão como um fenômeno com duas faces: uma delas é o agravamento da exploração e da dominação contra setores específicos do proletariado – e nisto ela consiste num recorte de raça, gênero ou identidade de gênero no interior dos expedientes de exploração e dominação. A outra face é a manifestação cultural da opressão nos costumes, na estética, no recinto familiar e por outras formas do modo de vida – numa dimensão que se combina com a primeira, mas que também atinge, ainda que de modo mais suave, outras classes além do proletariado.

Percebendo estas duas faces, encontramos as balizas para o debate sobre as opressões e nos deparamos com a sua amplitude, quer dizer, com o fato de que a opressão é algo que vai muito além da fenomenologia da consciência. Com o racismo, não é diferente.

O racismo como realidade transversal
Uma prática comum na reflexão marxista acerca das opressões é tentar situá-las em certo “nível” da realidade: na estrutura ou na superestrutura. Comumente, opta-se pela segunda, ou ainda, no universo das consciências. Porém, esta nos parece uma abordagem um pouco empobrecedora. Às vezes, imagina-se que o mundo real está efetivamente cindido em níveis, como se fosse uma edificação. Toma-se a metáfora de Marx ao pé da letra, e isto é um erro. Marx não pretendeu que as instâncias da vida estivessem encerradas em instâncias separadas, apenas procurou identificar o sentido mais geral das determinações históricas dentro de uma totalidade, atribuindo proeminência ao modo como se produz a vida material.

Nunca é demais enfatizar a importância da categoria da totalidade no marxismo, e ela será bastante útil para compreendermos as opressões em geral e o racismo em particular: o racismo, tal como o machismo e a homofobia, não estão adstritos a um “departamento” do mundo real; as opressões, em verdade, perpassam toda a sociedade, e nos mais diversos aspectos. Há que se falar, portanto, numa transversalidade da opressão racial.

Tomemos o racismo no Brasil. Ele se manifesta em todas as esferas da vida: na economia, ele aparece na menor participação da população negra na renda nacional e na fruição dos direitos sociais (emprego, educação, saúde, moradia etc.); na política, ele está presente no índice maior de violência policial contra negros e no recorte racial presente na ideologia disciplinadora do trabalho assalariado, muito presente no debate sobre a redução da maioridade penal; na cultura, ele está arraigado nos estereótipos racistas, na depreciação estética das feições africanas, no desprezo pelos cultos de origem africana etc.

Assim sendo, não faz sentido tentar encaixar o racismo em um único aspecto da existência social. Nós o encontraremos na estrutura econômica, na arena jurídico-política e nas formas de consciência. A questão que se coloca é como vislumbrá-lo nos marcos do modo de produção dominante, ou seja, como entender sua conexão com as formações sociais capitalistas. O racismo é uma forma histórica que, apesar de impregnar todos os aspectos da sociedade burguesa, atrela-se a determinações do modo de produção capitalista, estando consagrado como um elemento da vida material. Na história do Brasil, isto adquire proporções vultosas, como veremos a seguir.

O racismo como realidade material e concreta no capitalismo brasileiro
O senso comum progressista flerta com uma leitura idealista do mundo ao imaginar que o racismo se resume a uma praga a ser extirpada da cabeça das pessoas. Ignora aquilo que o marxismo já desvendou há muito tempo: que as formas de consciência não têm vida própria, que elas manifestam as forças vivas da materialidade. A conclusão, para uma crítica marxista do racismo, é evidente: não são as ideias racistas que fundam a opressão racial; ao contrário, é a opressão racial operante na vida material que formula ideias racistas, que produz uma consciência em maior ou menor medida condizente com as desigualdades e violências que caracterizam a situação do negro.

Está claro, pois, que o racismo é mais do que uma ideologia, embora ele o seja também – e veremos em breve as implicações desta definição. Por ora, enfatizaremos o racismo enquanto uma realidade material, o que nos coloca, imediatamente, o problema da sua ligação com o capitalismo. Isto exige uma análise que combine o plano lógico-categorial com o plano histórico, e que ajudará na interpretação sobre a origem do racismo.

O capitalismo é um modo de produção baseado na transformação da força de trabalho numa mercadoria, no consumo produtivo desta mercadoria para a realização da mais-valia e na reprodução perpétua deste movimento, de modo a se perfazer a acumulação de capital. Tal modo de produção foi historicamente formado na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, tendo se expandido daquele país para o resto do mundo numa velocidade feroz. E tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista lógico, a produção capitalista pressupõe a concentração de dinheiro e meios de produção nas mãos da classe capitalista, de um lado, e a despossessão dos meios de produção por parte dos trabalhadores, de outro. No capitalismo, a classe explorada só pode ser o proletariado, portador da força de trabalho como artigo de comércio. A relação de capital pressupõe o proletário e afasta a figura do escravo, que é objeto das trocas, e não um participante do mercado de trabalho.

Como se sabe, a escravidão é indispensável para se entender a origem do racismo no Brasil[1]. Mas é preciso amadurecer o entendimento sobre o elo histórico entre a escravidão e o capitalismo, bem como sobre os meios de perpetuação da opressão racial. Uma vez que o capital, por definição, afasta a escravidão, tem-se que este método de exploração de mão de obra só pode fazer parte de uma era pré-capitalista, ou ainda, de um período histórico de transição, mas que de modo algum é identificável com o capitalismo. Não há modo de produção capitalista sem a relação capital-trabalho, sem a extorsão de mais-valia.

Neste sentido, Marx localiza a escravidão como um expediente de acumulação primitiva, como um antecedente histórico que ajudou a criar as condições necessárias ao desenvolvimento do capitalismo, concentrando riquezas num polo e preparando a proletarização de outro polo. A transformação da África num campo de caça de mão de obra escrava, diz Marx em O capital, foi um dos requisitos para a posterior acumulação capitalista.

Por conta da escravidão, abateu-se a máxima opressão contra o negro, que era efetivamente tratado como uma coisa ou como um animal. Concebido como uma comunidade de bestas de carga, o povo negro foi socialmente rebaixado a uma posição sub-humana, sendo que, a partir desta situação material, foram elaboradas as justificativas teológicas em favor da escravidão. Em paralelo, o imaginário popular assimilou, à sua maneira, o aviltamento dos escravos nos traços culturais que remetem ao racismo. É uma forma de fetichismo: assim como se imagina que determinados meios de produção seriam capital por si mesmos, independentemente das relações sociais em que se inserem, forjou-se uma noção de que o negro teria uma vocação para posições inferiores, próprias de escravos. Daí a brutalidade do racismo, pois os escravos são, desde a antiguidade, considerados como instrumentos falantes, ou como bens semoventes, analogamente aos animais. Não à toa, a herança escravista associou as características físicas e culturais dos povos negros à bestialidade.

Enquanto perdurou a escravidão – e isto é de extrema importância –, o Brasil foi uma formação social pré-capitalista, ainda que integrado a um mercado mundial capitalista centrado na Inglaterra. Ao longo dos séculos XVI a XVIII e na maior parte do século XIX, o Brasil serviu como uma plataforma de acumulação primitiva, como fator externo de impulsão do desenvolvimento capitalista na Europa, ainda que sob a mediação atrasada e mercantilista de Portugal.

Cabe aqui um relevante parêntese. Afirmar que o Brasil não foi capitalista na época colonial não implica, de modo algum, que tenha sido feudal, como pretenderam os stalinistas do antigo PCB. A tese de um modo de produção escravista colonial subordinado ao modo de produção capitalista na Europa, e que foi proposta por Jacob Gorender (1978), nos parece bastante acertada. O próprio Caio Prado Junior (2006) contesta a ideia de um capitalismo no período colonial brasileiro, já que, sob o regime da escravatura, não se desenvolve a produção autenticamente capitalista. No mais, deve-se ressaltar que a noção de um “capitalismo comercial” não é propriamente marxista, mas sim braudeliana, e que Marx, no livro III de O capital, expressamente rejeitou a possibilidade de um modo de produção capitalista baseado no comércio e desprovido do ciclo industrial capitalista. O capital comercial e o capital usurário, para Marx, são meras formas “antediluvianas” do capital, estando aquém, portanto, da sociedade burguesa. Na mencionada obra, lê-se que “o capital mercantil – e o comércio – é mais antigo que o modo capitalista de produção”, e que “é, na realidade, do ponto de vista histórico, o modo independente de existência mais antigo do capital” (p. 435). De chofre se percebe a impossibilidade teórica de se igualar capital e capitalismo (enquanto modo de produção).

Marx explica que o capital mercantil apenas agencia o movimento do dinheiro e da mercadoria, mas o faz sem guardar relação com o modo de produção. Enriquecendo por meio do lucro comercial, pela venda da mercadoria acima do seu preço original, o capital mercantil da Antiguidade, da Idade Média e mesmo da Renascença lidava com produtos provenientes de formas de produção completamente distintas. Restringindo-se à circulação, não alterava a forma social pela qual os bens com os quais lidava eram produzidos. No capitalismo, ao contrário, a circulação não só está imediatamente conectada à produção como se subordina a ela. A hipertrofia do capital no comércio em detrimento da produção, assim, é fator que afasta a caracterização de um modo capitalista de produção[2]. Marx (2008, p. 439) o prova com o exemplo das cidades-estados italianas e das nações comerciais como a Holanda, afirmando que “a lei segundo a qual o desenvolvimento do capital mercantil está na razão inversa do grau de desenvolvimento da produção capitalista patenteia-se melhor na história do tráfico praticado pelos venezianos, genoveses, holandeses etc.”. O lucro vinha menos da produção local e mais da intermediação pelo comércio, de sorte que “o capital mercantil aparece aí puro, separado dos extremos, os ramos de produção que enlaça”.

Neste sentido, pode-se dizer que o capital comercial que operava no Brasil colônia apenas intermediava uma forma pré-capitalista de produção (escravista) na sua relação com a metrópole e, de modo indireto, com o incipiente mercado mundial. A produção capitalista propriamente dita logrou amadurecer em terras brasileiras, assim, somente com o fim da escravidão. Foi o momento de formação de um proletariado brasileiro. No entanto, a nascente indústria capitalista brasileira abasteceu-se não com os escravos libertos, e sim com força de trabalho de origem européia, tanto de proletários vindos da Europa como de colonos já estabelecidos que foram proletarizados. Os negros libertos foram alijados da inclusão produtiva no século XIX e assim permaneceram até os anos 1930, tendo uma participação acessória e intermitente no processo produtivo; eram encarados como vadios e inaptos para o trabalho, conforme relata a obra Trabalho e vadiagem, de Lucio Kowarick (1994).

Percebe-se, então, que a derrocada da produção escravista tornou os negros “livres”, mas livres em sentido capitalista, ou seja, desembaraçados de constrições pré-capitalistas e disponíveis para participar do mercado na qualidade de vendedores de força de trabalho. Contudo, o exercício desta liberdade mercantil deu-se tardiamente para o proletariado negro, que passou décadas ocupando a posição de um enorme exército industrial de reserva.

A cultura de desprezo forjada contra o negro no curso de séculos de escravidão colaborou imensamente para esta exclusão do mercado de trabalho. Para as classes dominantes brasileiras, o negro era apto apenas para o trabalho escravo, e não para o trabalho assalariado. A moderna produção capitalista exige um proletariado disciplinado para obrar nas fileiras da indústria, e a burguesia nacional esperava este perfil dos trabalhadores estrangeiros – ao que se somava, é claro, o projeto nacional de branqueamento[3] da população, e que representava a importação para o Brasil do pensamento racista e pseudocientífico europeu do século XIX.

Seja como for, a população negra foi, por força deste processo, sedimentada como a camada mais pauperizada do proletariado brasileiro. A indústria capitalista brasileira foi extremamente avarenta na contratação de negros, empurrando-os para as margens da produção industrial: o trabalho doméstico, os serviços no campo e as bases das forças armadas, onde se reproduzia a lógica do trabalho compulsório e das penas corporais. Foi somente depois das grandes greves operárias de 1917 e dos primeiros êxitos da organização operária no país que a burguesia brasileira recorreu às camadas negras do proletariado, buscando nelas uma alternativa mais barata e com menos tradição de luta sindical.

A conclusão que se tira do percurso que fizemos é a seguinte: o racismo, enquanto produto direto da escravidão, antecede o modo de produção capitalista, mas ao mesmo tempo está inserido na sua gênese dentro do território brasileiro. Na sua formação, o capitalismo pátrio construiu um proletariado já atravessado por um contraste racial, constituindo os trabalhadores negros nos estratos mais baixos do conjunto do proletariado. Resta saber, na perspectiva da vida material, como se dá a continuidade da discriminação racial na dinâmica do capitalismo.

O racismo enraizado no modo de vida
O capitalismo se fez introduzir na história sob a bandeira do liberalismo. As revoluções burguesas invocaram a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, e assim foi feito nas constituições liberais e nos códigos civis. Esta igualdade formal corresponde à equivalência do mercado, onde todos os portadores de mercadoria são abstraídos como sujeitos de direito. Num contrato entre pessoas juridicamente iguais, o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista, que se apropria do excedente de valor criado por ela. A exploração capitalista exige e afirma a igualdade jurídica universal.

Não obstante, o direito burguês emergente conviveu por muito tempo com formas econômicas pré-capitalistas. A constituição liberal brasileira de 1824 cinicamente privava os negros da cidadania, já que os tomava como coisas ou animais, e não como pessoas em sentido jurídico. Mesmo nos EUA, país onde a produção capitalista dava passos de gigante, a Suprema Corte delimitava expressamente a desigualdade formal entre os indivíduos, chancelando a escravatura. Com o término desta, era de se esperar que a contradição entre a igualdade formal e a desigualdade material no plano das raças desaparecesse, mas não foi o que ocorreu. Negros e brancos foram submetidos a um mesmo sistema de exploração, mas a sociedade burguesa mostrou-se ainda mais atroz contra o proletariado negro do que contra o proletariado branco, e isto nas mais variadas dimensões da vida social.

O capitalismo brasileiro nasceu racista, é dizer, a clivagem racial está no seu “DNA” de certo modo: não na forma, onde impera a silhueta abstrata do sujeito de direito, mas no seu conteúdo histórico-concreto, muito embora a própria forma jurídica, não raro, curve-se ao conteúdo iníquo que ela abriga, promovendo medidas discriminatórias na aplicação da lei. De qualquer maneira, destaca-se a circunstância de que o capitalismo eliminou a produção escravista sem destruir o racismo, o qual havia sido estabelecido pelo regime econômico anterior. Como interpretar esta contradição?

Uma parte da resposta está no próprio regime de exploração. Detentor de uma força de trabalho depreciada, o proletariado negro fornece uma quantidade maior de mais-valia ao patronato na medida em que recebe salários inferiores. No mais, o racismo enfraquece a unidade da classe trabalhadora, prejudicando a sua organização e o seu moral para a luta. A exploração se abate sobre o negro de maneira mais atroz. Inclusive, constata-se que o precariado contemporâneo, majoritariamente negro, é o descendente histórico direto da camada negra tardiamente proletarizada, ou seja, é um exército de reserva reciclado pelo instrumental contemporâneo do neoliberalismo e da acumulação flexível. Há, então, um nexo de “conveniência” entre capitalismo e racismo. Todavia, opinamos que a percepção desta conveniência não esgota a análise do fenômeno, pois falta um estudo sobre o método pelo qual se transmitiu a opressão racial de um modo de produção a outro. E este método, sustentamos, é o modo de vida, um conceito usado por Trotsky e que oferece horizontes muito ricos de debate no tocante às opressões[4].

Trotsky (1979) concebia o modo de vida como o peso do passado nas tradições, nos hábitos, na linguagem, enfim, nas práticas da vida cotidiana. Na Rússia pós-revolucionária, ainda eram muito presentes os traços culturais do período pré-capitalista (entendo-se a cultura não como conjunto de pensamentos, de imagens cerebrinas, mas de práticas materiais), cabendo aos bolcheviques o papel de remar contra o atraso cultural do país. A grosseria nas atitudes, a linguagem vulgar, a falta de asseio, tudo isto, para Trotsky, era uma herança feudal ou semifeudal que o capitalismo russo havia deixado praticamente intocada.

Ora, a experiência histórica ensina que a Rússia não foi uma exceção. O capitalismo primeiro se ocupou de revolucionar o modo de produção nas sociedades para as quais se estendeu, aniquilando os entraves pré-capitalistas e reformulando a estrutura produtiva – inicialmente pela subsunção formal do trabalho ao capital, como nas manufaturas, e posteriormente com a subsunção real do trabalho ao capital, cujo principal expoente é a grande indústria. Nela, para Marx, está a chave do modo de produção especificamente capitalista. E apenas muito depois de tomar conta do aparato produtivo, enfim, foram verificados os primeiros impactos do capitalismo no modo de vida. O principal exemplo dado por Marx é o da erosão da família patriarcal tradicional a partir da proletarização da mulher – ainda que, como sabemos hoje, a obra de dissolução do patriarcado permaneça inconclusa.

E o que é a família senão um núcleo de tradições, hábitos, crenças, enfim, um ponto de apoio fundamental para a reprodução do modo de vida? Há outros, por óbvio, mas a família ocupa um espaço privilegiado, e Trotsky bem o colocou. No que tange o racismo, é de se notar que a organização familiar brasileira traz em si, no seu histórico, toda uma carga de reposição da opressão racial, principalmente no âmbito do trabalho doméstico – que é quase uma forma transicional, no Brasil, entre a escravatura e a condição proletária.

Chegamos, assim, à nossa proposta teórica: o modo de vida escravista foi assimilado pelo capitalismo, tal como ocorreu em todas as sucessões históricas, em todas as passagens de um modo de produção para outro, e foi um dos últimos elementos a ser modificado pela ordem burguesa, conservando, inclusive, grande parte do seu teor racista original. E da mesma forma que na Rússia pós-revolucionária de Trotsky, somente uma revolução socialista pode combater conscientemente os refugos reacionários da história, resolvendo as pendências civilizatórias que a burguesia deixou pelo caminho em sua travessia.

Entretanto, cumpre observar que o capitalismo produz também o seu próprio modo de vida, ele não se limita a tão somente desgastar os modos de vida arcaicos. Os novos costumes e práticas do cotidiano são caudatários do modo capitalista de produção, e eles se fundem com os antigos naquilo que não é de todo inconciliável, num processo mediado pelas formas ideológicas da sociedade burguesa.

O racismo como ideologia
O racismo existe igualmente como realidade ideológica, como um corolário ideológico necessário de relações sociais marcadas pela opressão racial. Isto, porém, exige o exame da ideologia na sua conceituação rigorosa, para muito além da vagueza contida na fórmula da “falsa consciência”.

Muito mais do que uma mentira bem contada, uma ideologia é uma forma de consciência oriunda, em última instância, do modo de produção existente, e que opera por meio de uma inversão do real, projetando uma aparência para ocultar uma essência. Em A ideologia alemã, Marx e Engels (2007) indicaram a existência de um mecanismo de inversão da realidade por meio da ideologia, como numa câmara escura, e que se deve ao próprio processo histórico de vida material.

Em seu funcionamento, a ideologia racista traduz a vida material de modo reverso, de ponta-cabeça: o que é histórico aparece como natural, o que rebaixa aparece como prestígio, o que segrega aparece como inclusão: é assim que se atribui ao negro uma predisposição a trabalhos manuais penosos; é assim que a “mulata”, em sua coisificação no carnaval, é celebrada como musa; é assim que a incorporação do negro nos porões da sociedade soa como democracia racial.

Há que se insistir no uso exato do termo ideologia. Ao representar o real de maneira invertida, a ideologia faz com que o desfecho de um processo histórico apareça como uma condição a priori. O negro já aviltado e degradado, produto de relações históricas, é formulado como o negro em si mesmo, em sua essência. Os indicadores sociais desfavoráveis aos negros aparecem como atestado de sua inferioridade, e não como a expressão de uma sociedade que os oprime, que os mutila em suas possibilidades. As mediações sociais se perdem, e o imaginário popular é envolvido pelas amarras ideológicas do que está imediatamente posto, do que está dado. Decorrem daí as representações distorcidas nos estereótipos que caracterizam (e oprimem) a negritude.

A síntese da ideologia racista no Brasil, com efeito, é o mito da democracia racial, como bem aponta o movimento negro em geral. Este mito, em nosso entendimento, deve ser visto como um complemento à ideologia liberal da cidadania, na medida em que preenche o vazio do homem jurídico abstrato com um colorido racial e identitário. Num país atravessado por uma cisão racial tão violenta como o Brasil, e onde os negros são a maioria da população, a ideia de uma democracia das raças é uma maneira de reforçar a negação do racismo contida na igualdade entre os cidadãos. Na formação social capitalista brasileira, o indivíduo é tido como cidadão (nem burguês, nem proletário) no plano jurídico-político e como “pessoa miscigenada” no plano cultural, como se as raças houvessem sido ultrapassadas na experiência brasileira, como se todas elas desaparecessem (e com elas o racismo) num único caldo de cultura nacional, próprio do Brasil. É uma expressão culturalista e ideologicamente racista (inversão da realidade) da igualdade formal apregoada pelo capitalismo, e com o requinte de estar adaptada a uma concretude nacional determinada.

Portanto, a ideologia da democracia racial espelha, finalmente, o modo de vida capitalista e sua maneira de contemplar o negro a partir da igualdade burguesa, uma igualdade que se dá a serviço da desigualdade real. Ela convive com as reminiscências escravistas e, de fato, não se propõe a eliminá-las de modo consequente. A unidade da ideologia racista combina a democracia racial com as excrescências do escravismo, correspondendo à concretude de uma formação social que, apesar de capitalista, carrega consigo, inevitavelmente, as cicatrizes da escravatura. Essa unidade consiste no sistema de representações completo na sociedade brasileira, no reconhecimento da insuficiência do nosso liberalismo de senzala (“ideias fora do lugar”, como diria Roberto Schwarz) e na sua sofisticação com a captura de imagem do negro enquanto cidadão. Seu efeito prático mais relevante é desarmar a camada negra do proletariado enquanto raça e também enquanto classe, tudo em nome de uma cidadania brasileira supostamente multicultural, multiétnica, em que a identidade nacional teria recepcionado, benevolamente, a contribuição da negritude.

Por último, cabe salientar que a ideologia racista pode ser disseminada por aparatos organizados (organizações racistas, imprensa, igrejas etc.) ou pela própria espontaneidade do modo de vida, pela soma espontânea das experiências individuais desorganizadas. Neste último caso, a sutileza é maior, e o racismo penetra sorrateiramente na vida das pessoas, inclusive de modo inconsciente. É o típico caso das mães que ensinam suas filhas de cabelo crespo que seu cabelo é “ruim”: o predomínio racista da estética branca e a depreciação da fisionomia negra, desde os tempos da escravidão, impõem-se no inconsciente, o que só demonstra a necessidade de uma colossal reconstrução socialista da sociedade e a urgência das tarefas da revolução negra.

Conclusão
Apresentamos aqui algumas reflexões que, longe de pretender revolucionar o estudo das relações entre capitalismo e racismo, apenas sugerem alguns horizontes que podem render bons frutos teóricos, e que oferecem possíveis complementos aos esforços de elaboração já existentes no marxismo. Conceitos como o de modo de vida e de ideologia, se bem examinados podem auxiliar na compreensão do racismo em particular e mesmo das opressões de modo geral. Mas tudo depende, por certo, de um amadurecimento desta via proposta.

 


Referências:

FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia, 1972.

GORENDER, J. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.

IANNI, O. Raça e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.

KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

MARX, K. O capital: crítica da economia política: l. III, v. V. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. Ática: São Paulo, 1988

PRADO JR., C. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.

TROTSKY, L. Questões do modo de vida: a época do “militantismo cultural” e as suas tarefas. Tradução de A. Castro. Lisboa: Antídoto, 1979.

 


Notas:

[1] Algumas obras clássicas que estudam o tema: Sociologia do negro brasileiro, de C. Moura (1988); Raça e classes sociais no Brasil, de O. Ianni (1987); O negro no mundo dos brancos, de F. Fernandes (1972).

[2] “O desenvolvimento autônomo e preponderante do capital como capital comercial significa que a produção não se subordina ao capital, que o capital, portanto, se desenvolve na base de uma forma social de produção a ele estranha e dele independente. O desenvolvimento autônomo do capital mercantil está, portanto, na razão inversa do desenvolvimento econômico geral da sociedade” (MARX, 2008, p. 438).

[3] Tal projeto exprime não somente a mentalidade de uma elite colonial, mas também o temor de uma revolução negra, tal como ocorreu no Haiti.

[4] Nossa hipótese é a de que o conceito de modo de vida, tal como empregado por Trotsky em Questões do modo de vida, pode permitir um salto de qualidade nos estudos marxistas sobre opressões, aplicando-se de maneira proveitosa, portanto, também para os temas do machismo e da homofobia. Falta-nos aqui, entretanto, o espaço para proceder com tal investigação.