O uso da informação como arma em um conflito não é coisa dos nossos tempos. Vem de longe, na verdade. A origem lendária da maratona, na Grécia antiga, é um bom exemplo da importância da informação nos conflitos. E se vale para antiguidade, mais vale para a contemporaneidade. Durante a Primeira Guerra Mundial o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, criou uma agência exclusivamente para tratar da propaganda de guerra para garantir o apoio da população estadunidense à participação do país na guerra. Ela foi chamada de Comitê de Informação Pública e durou de 1917 a 1919, contando com participação de importantes figuras como Walter Lippman e Edward Bernays.
Durante a Segunda Guerra os esforços para influenciar a opinião pública se repetiram. Entre 1942 e 1945, o governo dos Estados Unidos e as Forças Armadas fecharam um grande contrato com a Walt Disney. O acordo consistia em usar a grande produtora de desenhos para produção de algumas peças de propaganda de guerra. A Disney, que nessa época chegou a colocar quase todos seus funcionários em dedicação exclusiva para o governo, produziu animações anti-nazistas para soldados no front e também para a população civil nos Estados Unidos.
Ao todo, foram produzidas mais de cinquenta peças de propaganda abordando temas variados. Desde instruções para soldados e marinheiros, propaganda anti-germânica e anti-nipônica e peças de cunho moral. São dessa época curtas como Der Fuehrer’s Face (1942 – o famoso Pato Donald nazista); Razão e Emoção (1943); Educação para a Morte – Como se faz um nazista (1943), Commando Duck (1944) e o Chicken Little (1943). Esse último, aliás, ganhou uma nova versão recentemente, em 2005.
Então quer dizer que o Galinho Chicken Little é propaganda anti-nazista? Sim, é. E a história original tem muito a ver com o que passa o Brasil hoje (e o mundo). É uma história sobre a disseminação de boatos e notícias falsas.
A fazenda-nação
A história original conta a vida de uma pacata fazenda, protegida por suas cercas e pela arma do fazendeiro. É uma analogia para um estado-nação ocidental com suas fronteiras bem protegidas pelas forças armadas. Dentro dessa fazenda, vivem alguns grupos de aves que vão sendo apresentados com características e estereótipos de grupos sociais. Há o Sr. Galo (representando o burguês industrial), as galinhas (retratando as pessoas fofoqueiras), o círculo do Sr. Peru (os aristocratas e intelectuais), galinhas jovens e a “turma do abafa” (a juventude), os patos sempre bêbados (representando os pobres e desajustados) e, por fim, o pintinho ingênuo. “Um bom rapaz, de cabeça mole, é verdade. Mas um rapaz direito, um menino de família“.
Eis que então, surge o inimigo da fazenda: a raposa. Astuta que é, decide não pular a cerca nem se arriscar contra a arma do fazendeiro. Suas estratégia é outra. “Afinal, para quê comer uma se eu posso comer todas?“, questiona a antagonista. Seu plano é desestabilizar a ordem na fazenda para se aproveitar melhor da situação. Para isso, a raposa consulta um manual de “técnicas psicológicas”, ou seja, de propaganda de guerra. Do livro saem duas primeiras lições: [I] “Para influenciar as massas, dirija-se ao menos inteligente“; e [II] “Se tiver que contar uma mentira, conte uma grande“.
A raposa então, arranca um pedaço de um anúncio de Madame Izan, uma astróloga. Dirige-se ao galinho e lhe arremessa o pedaço de madeira em que está pintado uma estrela. Depois sussurra do outro lado da cerca: “O céu está caindo. Uma estrela caiu na sua cabeça. Tenha calma, não se assuste. Salve-se quem puder!”. O galinho ingênuo sai então apavorado anunciando por todo o galinheiro a tragédia vindoura. O caos se instala em todos os grupos sociais até que surge o Sr. Galo para acalmar a situação, explicando tratar-se apenas de uma estrela pintada em um pedaço de madeira.
Desapontada, a raposa volta a consultar seu manual. A próxima lição é: [III] “Destrua a confiança do povo nos seus chefes“. A antagonista começa uma peregrinação por todos os grupos de aves da fazenda. De acordo com cada grupo, adequa sua personagem, falando-lhes como se fosse um deles. Para as galinhas, fala como se fosse uma galinha, aos patos como se fosse um pato e assim vai. E para cada grupo há também um boato específico, variando em sua forma, mas constante em seu conteúdo, questionando a capacidade do Sr. Galo de comandar o galinheiro. Às galinhas alerta que caso esteja errado, o Sr. Galo as conduziria todas à morte; aos perus, questiona sua capacidade de discernimento, inspirando-os a decidirem por si mesmos em nome de sua própria liberdade; aos patos, diz que o Sr. Galo não passa de um alcóolatra e não pode chefiar. O boato vai de boca em boca minando a moral do Sr. Galo.
A quarta lição que a raposa tira de seu manual é: [IV] “por meio da bajulação, o insignificante se convencerá das suas qualidades de chefe“. É o coroamento da estratégia da raposa. Instigando o galinho ingênuo, entorpecido em sua loucura sobre o desabamento do céu, e estando o Sr. Galor desmoralizado, se estabelece um conflito pela liderança da fazenda. A raposa então instrui o galinho a conduzir uma fuga da fazenda para uma caverna, onde estariam todos salvos da tragédia. Em meio ao caos e ao desespero difundido por toda a fazenda, as aves seguem o plano do galinho ingênuo, instrumentalizado pela raposa.
Na caverna, a raposa acaba por devorar todas as aves e, segurando seu manual de “técnicas psicológicas”, sentencia: “Quem acredita em boatos, acaba assim!”.
Propaganda sobre propaganda
A intenção original dos produtores era retratar a raposa de maneira similar à Hitler e seu livro Minha Luta (Mein Kampf), mas por conta da obviedade a ideia foi abandonada. As técnicas aplicadas pela raposa, no entanto, não são exclusividade da experiência totalitária nazista. Como é de se imaginar, o desenho retrata as coisas de forma caricata – afinal, trata-se em si mesmo de uma peça de propaganda. Mas o desenho não é apenas descontração, é também instrução. E no que diz respeito aos princípios enunciados pela raposa pode-se tranquilamente afirmar que está de acordo com o que apontam diversos estudos sobre a propaganda política em seu sentido amplo, como os de Gustave Le Bon, Serge Tchakhotine, Edward Bernays, Lippman, Jean-Marie Domenach e outros.
Alguns princípios podem ser notados na animação. O mais comum e fácil de se identificar é o princípio da simplificação. Toda doutrina política ou religiosa, no decorrer do seu desenvolvimento, esforça-se para produzir uma série de documentos-sínteses que poupe os doutrinados das extensas explicações e de debates filosóficos. Funcionam como uma espécie de obra introdutória e de popularização da doutrina. Aqui entram os panfletos, slogans, palavras-de-ordem e principalmente os manifestos. Esse esforço de sínteses é uma necessidade prévia de toda forma de propaganda. Parte do processo de simplificação também implica na hiper-simplificação da realidade, reduzindo todas suas contradições a uma batalha entre o bem e o mal, ou até mesmo atribuindo a um único inimigo a fonte de todos os problemas do mundo.
A esse princípio soma-se o da ampliação e desfiguração. Trata-se no processo de divulgação seletiva de informações, valorizando as favoráveis e minimizando as desfavoráveis. Em tempos de redes sociais na internet, esse processo ganhou especial significância. Apoiadores de determinada causa parecem consumir apenas aqueles veículos que confirmem seu ponto de vista, tidos como neutros, justos e corretos. Aos veículos que apresentam outro ponto de vista, cabe-lhes a pecha de notícias falsas (“fake news”), enviesamento ideológico etc. Do ponto de vista da psicologia social, pesam aqui processos como o do viés de confirmação e da dissonância cognitiva que, em síntese, podem ser definidos como a tendência comportamental para buscar aquilo que afirme nossas crenças já pré-estabelecidas e pela refutação do que pode se chocar com isso. Cabe aqui também, no processo de ampliação e desfiguração, a caricatura feita dos inimigos e mesmo dos heróis, retratados como imunes às contradições.
Um outro princípio comum é o da orquestração que pode ser entendido como a constância de temas. Isso não deve ser confundido com a repetição, massiva e massante, entediosa. Uma boa campanha orquestrada consegue manter um mesmo argumento de fundo adequando-o aos diferentes públicos receptores. No caso da fazenda-nação, a raposa ardilosamente distribui diferentes boatos entre os diferentes grupos. Todos esses argumentos, entretanto, têm um mesmo argumento de fundo que se mantém: o Sr. Galo não está apto para comandar a fazenda. Se é por despreparo, por alcoolismo, ou prepotência, isso varia com o grupo que recebe a mensagem, com o cuidado de que para cada qual se use o argumento mais convincente para aquele grupo.
Um quarto princípio é o da transfusão. Nunca na história, pelo menos entre os estudiosos sérios, se acreditou que a propaganda pudesse inculcar alguma coisa na cabeça das massas. A propaganda nunca teve esse poder. A propaganda age, isso sim, sempre sobre um substrato existente. Pessoas trazem consigo crenças, convicções, medos, sonhos e ideais. Culturas nacionais também possuem seus ideais, seus mitos fundadores. A arte do propagandista consiste em saber conciliar a conjuntura política-econômica com esses elementos para apoiar a construção de sua propaganda e ideologia. Como diz Domenach, “a propaganda exerce sempre o papel de parteira, mesmo se divulga monstruosidades”. Ou seja, não é a propaganda que cria os absurdos que vemos, ela apenas os instrumentaliza e os põe a seu serviço. O preconceito, o ódio, a violência, o misticismo e a falsificação já estão na sociedade.
Esses são quatro dos cinco princípios elencados por Jean-Marie Domenach, intelectual de esquerda católica francesa, em seu livro A propaganda política, de 1950. Essa tipologia, entretanto, é meramente analítica e não existe na realidade de maneira pura. O processo de simplificação da realidade se mistura ao de ampliação e desfiguração, como na caricatura dos inimigos; que por sua vez são reafirmados e realimentados pela orquestração, estando todos ao mesmo tempo se baseando no princípio da transfusão, e por aí vai. A propaganda só pode ser entendida como um todo, sem que se abstraia suas determinações sócio-históricas.
A campanha de Bolsonaro
Jair Messias não inventou a roda. Para ser justo, se há uma novidade no cenário brasileiro é o uso massivo das redes sociais – especialmente o WhatsApp – como um meio paralelo à imprensa tradicional. No mais, todavia, não fez mais do que já foi descrito. Em verdade, sua campanha se assemelha em muito com a da raposa. Primeiro porque soube, via novas tecnologias, alcançar os estratos mais baixos da sociedade e os rincões mais afastados. Nos locais onde vivem os “rapazes direitos” e os “apolíticos”, onde geralmente a grande imprensa chega, mas sempre como algo que vem de fora. Diferentemente, via WhastApp, Bolsonaro chegou na figura do vizinho e do colega, mesmo nesses locais mais distantes. Ademais, sua campanha se apoiou em uma hiper-redução da realidade (princípio da simplificação), descrevendo a disputa como uma simples batalha entre bem e mal que se fez perfeitamente entendível pelos mais ignorantes, como foi o caso das crianças. Isso em muito contribuiu para a polarização das opiniões durante a corrida presidencial. Obviamente contou com inteligência militar e logística estrangeira. O que significa, portanto, que mente ao dizer que foi tudo meramente apoio espontâneo (que não descartamos, mas que tampouco foi a essência da campanha, principalmente em suas fases iniciais).
E por falar em mentira, Bolsonaro mentiu, e muito. A frase usada no episódio da Disney – [II] “Se tiver que contar uma mentira, conte uma grande” – é comumente atribuída à Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, embora nunca se tenha provado isso. Fato é que a mentira sempre foi usada em situações de conflito e a campanha de Bolsonaro o fez com maestria, no melhor do princípio da orquestração, como mencionamos acima. Para cada grupo social, pesquisas de opinião prévias e também o roubo de dados de redes sociais, ajudaram a indicar qual mentira despertaria o maior ódio dos inimigos. Tal como a raposa mentindo para cada grupo de aves. Isso explica a enxurrada de notícias falsas e a disseminação sistemática de boatos.
Para o público evangélico, disseram que seus adversários defendem o aborto, ou que blasfemam ícones sagrados (como a suposta camisa “Jesus é Travesti”). Para os conservadores, inventaram a educação sexual, “kit gay”, mamadeira erótica etc. Aos que tem medo do desemprego e da instabilidade, associaram os adversários à Venezuela, afundada na crise, supostamente tida como modelo político-econômico. Revanchismo jurídico, prisão de Sérgio Moro, médicos-guerrilheiros cubanos, vacinas infectadas letalmente etc., tudo isso foi dito.
Obviamente, a campanha de Bolsonaro não tirou isso de trás da orelha. Aqui vale o princípio da transfusão. O ódio às minorias, a violência, a intolerância, o preconceito, o messianismo, a fé cega, etc. Some-se a isso o irracionalismo de nossos tempos como o terraplanismo, o ressurgimento da astrologia, as teorias da conspiração etc. Isso tudo já existia antes na sociedade brasileira e serve de substrato para a campanha de ódio desencadeada. Não nos parece mera casualidade que no curta-metragem de 1943 a raposa quebre uma placa de uma astróloga para acertar o galinho ingênuo. O misticismo já está no mundo, transformá-lo em arma é uma questão de escolha.
Sobre esse substrato floresce também a desconfiança nas instituições. Ou como diz a animação: [III] “Destrua a confiança do povo nos seus chefes“. E aqui não falamos na desconfiança crítica, oriunda do reconhecimento do verdadeiro papel das instituições na sociedade de classes. Sobre o irracionalismo e o misticismo cresce a desconfiança acovardada, medrosa e preconceituosa, que em sua cegueira vê apenas a fuga para trás e nunca a superação das contradições. A campanha de Bolsonaro soube trabalhar com isso ao atribuir à toda grande imprensa o rótulo de mentirosa (princípio da ampliação e desfiguração), ao questionar a votação por urnas eletrônicas, a confiabilidade dos institutos de pesquisa, as decisões da justiça etc.
Obviamente, tal como a tipologia analítica de Domenach, as táticas de desinformação da campanha de Bolsonaro não se dividem explícitamente na realidade e só podem ser compreendidas complementarmente no movimento de sua totalidade
Bolsonaro, nosso galinho ingênuo
Como se vê, pela analogia que até aqui desenvolvemos, a campanha de Bolsonaro se assemelha bastante à estratégia da raposa. Isso significa que não há grandes novidades em seus princípios, há um tempo já conhecidos. O que há de novo, isso sim, é o uso das redes sociais como instrumento de coleta de dados, incrementando absurdamente a eficácia das pesquisas de opinião, e no seu uso como ambiente de difusão de conteúdo. Entretanto, o galinho ingênuo e a raposa não são protagonista e antagonista da história. Ambos se complementam na medida em que o galinho é o representante dos interesses da raposa dentro da fazenda e, portanto, um não pode ser entendido sem o outro. Não se pode compreender a proposta do galinho de fuga para a caverna sem entender os interesses da raposa em devorar todas as aves.
E aqui chegamos ao último ponto de nossa analogia, sobre o item [IV], que diz que “por meio da bajulação, o insignificante se convencerá das suas qualidades de chefe“. Ora, quem é o insignificante saído das sombras da política, na qual permaneceu por quase trinta anos sem nada fazer, e convertido ao posto de chefe, se não o próprio Jair Bolsonaro? Ou seja, embora a campanha eleitoral se aproxime da campanha da raposa, em nossa analogia Bolsonaro ocupa o papel de galinho ingênuo, instrumentalizado por interesses alheios.
Quem é então a raposa e quais são os seus interesses?, é uma pergunta que os anos de seu governo vão responder, mas para a qual temos um palpite: os latifundiários, os banqueiros, o mercado financeiro, o imperialismo e o capital estrangeiro. Essas são as raposas que instrumentalizam nosso galinho, “bom rapaz, mas de cabeça mole”. Mas essa é uma outra discussão política.