Obs: O presente texto é a primeira parte de um artigo polêmico de Fred Moseley com outros estudiosos de O Capital de Marx, em particular, Riccardo Bellofiore, Geert Reuten, Christopher J. Arthur e Nicky Taylor. No presente texto, Moseley se refere à artigos apresentados por esses autores em congresso realizado na cidade de Omaha. Agradecemos a Fred Moseley que gentilmente autorizou a tradução e publicação do artigo pelo blog Teoria&Revolução.

Geert [Reuten] sugeriu em seu artigo de Omaha que, no Capítulo 1 do Volume 1 do Capital , há um “salto” na lógica expositiva de Marx na passagem das Seções 1 e 2 para a Seção 3, e que esse salto pode não ser notado pelo leitor se a Seção 3 for lida “com as lentes do trabalho-corporificado” das Seções 1 e 2 (pp. 11- 12). Geert não especifica a natureza precisa desse “salto”, mas sugere ser produto de uma mudança fundamental no tipo de método lógico empregado e na teoria básica de valor, de uma teoria do valor-trabalho para uma teoria da forma-valor. Em outros lugares, Geert argumentou que existem “dois caminhos” distintos nos textos de Marx – um caracterizado pelo trabalho corporificado e outro da forma do valor.

Da mesma forma, Nicky [Taylor] argumentou em outro artigo que existem “ambiguidades notórias” no Capítulo 1, e que essas ambiguidades são “fundamentalmente intratáveis”.

Da mesma forma, Riccardo [Bellofiore] argumentou em sua apresentação na Omaha que existem “contradições” na teoria de Marx nos textos relacionados à sua teoria do valor. Em algumas passagens, Marx diz que o valor é determinado na produção, mas em outras passagens, ele diz que o valor é determinado na troca.

Chris [Arthur] também comentou (na discussão da apresentação de Riccardo sobre se o valor é criado na produção ou na troca) que Marx estava “confuso” sobre esta questão, e essa é a razão das passagens contraditórias.

No entanto, discordo dessas avaliações negativas da coerência lógica da teoria de Marx valor, e do Capítulo 1 em particular. Acredito que o Capítulo 1 é um exemplo notável de lógica, rigor e coerência. O Capítulo 1 não é ambíguo, mas sim claro e consistente. Não há salto entre as Seções 1 e 2 e Seção 3, mas sim uma conexão lógica estrita entre estas Seções do Capítulo 1. Não há confusão nas diversas passagens de Marx, ao contrário, ficou claro que o valor é criado na produção e realizado na troca . Sob a hipótese de que não exista nenhum problema de realização (pressuposto dominante de Marx no curso dos três volumes), o valor realizado na troca é igual ao valor criado na produção. Somente assim, a grandeza do valor é determinada na produção em função da quantidade de trabalho abstrato requerido para produzir as mercadorias. Eu não vejo nenhuma confusão ou ambiguidades ou contradições sobre esta questão nos textos de Marx.

No que se segue, vou primeiro resumir minha interpretação da lógica de Marx no Capítulo 1 e apresentar evidências textuais substanciais para apoiar tal interpretação. Somente então vou considerar as duas passagens do Capítulo 1 apresentadas no artigo de Nicky para apoiar sua interpretação da “ambiguidades” nos textos de Marx (existem apenas duas passagens desse tipo apresentadas no artigo de Nicky). Em seguida, vou considerar várias páginas da Crítica da Economia Política que Chris citou na correspondência subsequente para apoiar a sua interpretação de que Marx estava “confuso” sobre essa questão fundamental.

Seção 1
Todos nós parecemos concordar que na Seção 1, Marx derivou o trabalho abstrato como a “substância” do valor, a propriedade comum das mercadorias que determina seus valores de troca. O trabalho abstrato é claramente definidas nas Seções 1 e 2 em unidades de tempo de trabalho, “independentemente de sua forma de manifestação “como valor de troca ou dinheiro. O subtítulo da Seção 1 é “ Substância de Valor, Grandeza do Valor” (grifos F.M.).

Marx resumiu sua derivação do trabalho abstrato como a substância do valor na seguinte passagem chave:

Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Deles não restou mais do que uma mesma objetividade fantasmagórica, uma simples geleia [Gallerte] de trabalho humano indiferenciado, i.e., de dispêndio de força de trabalho humana, sem consideração pela forma de seu dispêndio. Essas coisas representam apenas o fato de que em sua produção foi despendida força de trabalho humana, foi acumulado trabalho humano. Como cristais dessa substância social que lhes é comum, elas são valores – valores de mercadorias. (grifos F.M.)

Esta conclusão – de que todas as mercadorias contêm quantidades definidas de trabalho humano objetivado – é, então, a premissa fundamental para o resto dos três volumes de O Capital, e em particular, para Seção 3 do Capítulo 1, como veremos abaixo.

No parágrafo seguinte, Marx previu sua derivação posterior do dinheiro como a forma necessária de aparência da substância de valor (trabalho abstrato objetivado) na Seção 3, do seguinte modo:

A continuação da investigação nos levará de volta ao valor de troca como o modo necessário de expressão ou forma de manifestação do valor, mas este tem de ser, por ora, considerado independentemente dessa forma. (grifos F.M.)

Podemos ver que a Seção 3 é uma continuação lógica das Seções 1 e 2 (“a continuação da investigação nos levará de volta… ”). Nas Seções 1 e 2, o trabalho abstrato é derivado da substância do valor, e na Seção 3, o valor de troca (ou dinheiro) é derivado como a forma necessária de manifestação[aparecimento] desta substância de valor (trabalho abstrato objetivado).

Próximo do final da Seção 1, há um resumo similar do que foi argumentado até o momento, além de uma pré-visualização da Seção 3 sobre a forma de manifestar da substância de valor (trabalho abstrato).

Conhecemos, agora, a substância do valor. Ela é o trabalho. Conhecemos sua medida de grandeza. Ela é o tempo de trabalho. Resta analisar sua forma, que fixa o valor precisamente como valor de troca. Antes, porém, é preciso desenvolver com mais precisão as determinações já encontradas. (grifos no original)

Seção 2
A Seção 2 do Capítulo 1 prossegue no intuito de “desenvolver com mais precisão as determinações já encontradas”. As características que Marx já havia encontrado são, obviamente, o trabalho abstrato como “substância de valor” e tempo de trabalho como “magnitude[grandeza] de valor”. Estas características são desenvolvidas na Seção 2, intitulada “O duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias”. Esse “caráter dual” é, evidentemente, o trabalho concreto e o trabalho abstrato. O trabalho abstrato é desenvolvido, tanto na sua dimensão qualitativa enquanto trabalho homogêneo e em sua dimensão quantitativa enquanto a quantidade de tempo de trabalho.

Seção 3
Agora chegamos à importantíssima Seção 3. Eu argumento que não há “salto” na lógica de exposição de Marx na passagem das Seções 1 e 2 para a Seção 3. Em vez disso, a lógica na Seção 3 é uma continuação da lógica das Seções 1 e 2. Já vimos que Marx explicitamente observou na Seção 1 essa continuidade lógica entre as Seções 1 e 2 e a Seção 3. Como previsto na Seção 1, a Seção 3 deriva o dinheiro como a forma necessária de manifestação da substância do valor (trabalho abstrato), que, por sua vez, foi derivado nas Seções 1 e 2.

O ponto-chave a enfatizar é que, ao longo da Seção 3, as mercadorias são consideradas como possuidoras de uma propriedade comum de valor, isto é, o trabalho abstrato objetivado (a “substância de valor”), em quantidades definidas [determinadas], como derivado nas Seções 1 e 2. Essa é a pressuposição básica da derivação de Marx da necessidade de dinheiro na Seção 3. Esta é a conexão lógica direta entre as Seções 1 e 2 e Seção 3. Assim, a Seção 3 não é sobre a determinação da quantidade de trabalho abstrato objetivado contido nas mercadorias (por meio de uma troca ou outra). Afinal, a quantidade de trabalho abstrato objetivado contido em uma mercadorias permanece desconhecida até que sua magnitude[grandeza] seja determinada na Seção 3. Em vez disso, o trabalho abstrato contido nas mercadorias é pressuposto na Seção 3, como derivado na Seção 1, com o objetivo de derivar o dinheiro como forma necessária de manifestação deste trabalho abstrato. Esta é a estrutura básica da lógica de Marx em Capítulo 1.

Muitas passagens da Seção 3 serão apresentadas abaixo nas quais Marx declarou explicitamente o caminho acima indicado.

De acordo com o argumento de Marx na Seção 3, a necessidade do dinheiro surge do fato de que o quantidade de trabalho abstrato objetivado contido nas mercadorias não é diretamente observável como tal, isto é, em termos de tempo de trabalho. Como Marx colocou na Seção 1 (como vimos), o valor das mercadorias têm uma “objetividade fantasmagórica“. Portanto, a questão abordada na Seção 3 é o seguinte: como é que as quantidades presumidas de trabalho abstrato contidas nas mercadorias (como derivado nas Seções 1 e 2) adquirem uma forma objetiva (socialmente reconhecível) de manifestação? Em outras palavras, como as quantidades presumidas de trabalho abstrato são objetivamente expressas? A seção 3 não é sobre a criação , ou a determinação, das quantidades de trabalho abstrato (por meio da troca ou não). Pelo contrário, as mercadorias são consideradas como tendo quantidades definidas de trabalho abstrato objetivado, como derivado nas Seções 1 e 2. A seção 3 é sobre a expressão, ou a forma da aparência, do trabalho abstrato que já se presume existir. Este é o tema que Marx prometeu retornar duas vezes na Seção 1, como vimos acima. A “continuação da investigação”, de fato, levou Marx de volta ao valor de troca, como “o modo necessário de expressão ou forma de manifestação do valor”, ou seja, do trabalho abstrato objetivado contido nas mercadorias.

A resposta geral de Marx na Seção 3 a esta questão, de como quantidades não observáveis de trabalho obtém uma forma objetiva de manifestação, é que a quantidade de trabalho abstrato contido em qualquer mercadoria é objetivamente expressa em termos da quantidade de alguma outra mercadoria (e, finalmente, a mercadoria dinheiro ) que é igualado com o produto em causa porque contém a mesma quantidade de trabalho abstrato.

A derivação do dinheiro feita por Marx na Seção 3 a partir do trabalho abstrato derivado na Seção 1 é transparente em todos os seus detalhes. As características específicas do trabalho abstrato como desenvolvido Seções 1 e 2 – qualidade homogênea e quantidades definidas – determinam as características da forma de manifestação do valor, ou dinheiro, derivada na Seção 3. A forma simples do valor é “insuficiente” e a forma expandida do valor é “defeituosa” precisamente porque essas formas de valor não expressam adequadamente essas características do trabalho abstrato, a substância do valor (qualidade homogênea e quantidades definidas).

Talvez a evidência textual mais clara de que a Seção 3 presume que as mercadorias contêm quantidades de trabalho abstrato está na subsecção (a.2.ii) sobre a determinação quantitativa da forma simples de valor. Nesta subseção, Marx enfatizou que o trabalho abstrato contido na mercadoria deve ser expresso, não apenas qualitativamente (isto é, como o mesmo tipo de trabalho), mas também quantitativamente, ou seja, como quantidades definidas desse trabalho humano igual. O trabalho abstrato é uma quantidade e, portanto, sua forma objetiva de manifestação também deve ser uma quantidade.

Nesta subseção, é evidente e explicitamente assumido que “dada quantidade de mercadoria contém uma quantidade determinada[definida] de trabalho humano”. A igualdade de linho e casacos “pressupõe a presença” de “tanta substância de valor” ou “a mesma quantidade de tempo de trabalho” nas duas mercadorias. A questão que esta subseção aborda é como a expressão quantitativa do valor do linho se altera, se houver uma alteração no tempo de trabalho necessário para a produção do linho ou do casaco (ou ambos). Nos quatro casos discutidos, a pressuposição é “uma quantidade definida de trabalho humano” contida tanto no linho como no casaco. As quantidades pressupostas de trabalho humano mudam de caso para caso, e os efeitos destas mudanças do tempo de trabalho – na expressão quantitativa do valor do linho em termos de casacos – são investigados. A direção da causalidade na lógica expositiva de Marx claramente vai do tempo de trabalho na produção para os valores de troca na troca. Não há indício de causalidade reversa, dos valores de troca aos tempos de trabalho, nem da co-determinação mútua entre os tempos de trabalho e valores de troca. Por favor, notem bem.

(b) A determinidade quantitativa da forma de valor …

Essa dada quantidade de mercadoria contém uma quantidade determinada de trabalho humano. A forma de valor tem, portanto, de expressar não só valor em geral, mas valor quantitativamente determinado, ou grandeza de valor … A equação “20 braças de linho = 1 casaco, ou: 20 braças de linho valem 1 casaco” pressupõe que 1 casaco contém tanta substância de valor quanto 20 braças de linho; que, portanto, ambas as quantidades de mercadorias custam o mesmo trabalho, ou a mesma quantidade de tempo de trabalho. Mas o tempo de trabalho necessário para a produção de 20 braças de linho ou 1 casaco muda com cada alteração na força produtiva da tecelagem ou da alfaiataria. A influência de tais mudanças na expressão relativa da grandeza de valor tem, por isso, de ser investi- gada mais de perto.

  1. … Se o tempo de trabalho necessário à produção do linho dobra …

  2. … Se dobra o tempo de trabalho necessário à produção do casaco – por exemplo, em consequência de circunstâncias desfavoráveis …

  3. As quantidades de trabalho necessárias à produção de linho e casaco podem variar ao mesmo tempo …

  4. Os tempos de trabalho necessários à produção do linho e do casaco, respectivamente, e, com isso, seus valores, po- dem variar simultaneamente, na mesma direção … (grifos de F.M.)

Algumas páginas depois, Marx resumiu sua análise da forma simples de valor nas seguintes passagem, que afirmam claramente que os valores de troca das mercadorias “surgem dos” (ou seja, são determinado pelos) valores das mercadorias, e não o contrário (a “ilusão” dos mercantilistas e os “mensageiros modernos do livre comércio”).

Nossa análise demonstrou que a forma de valor ou a expressão de valor da mercadoria surge da natureza do valor das mercadorias, e não, ao contrário, que o valor e a grandeza de valor sejam derivados de sua expressão como valor de troca. Esse é, no entanto, o delírio tanto dos mercantilistas … quanto de seus antípodas, os modernos caixeiros-viajente do livre-câmbio, como Bastiat e consortes. (grifos de F.M.)

Similarmente, na Primeira Edição de O Capital, Marx concluiu sua derivação da necessidade de dinheiro na Seção 3, enfatizando o mesmo ponto (“decisivamente importante”), em uma linguagem mais hegeliana:

O que foi decisivamente importante foi descobrir a conexão interior necessária entre a forma de valor, substância do valor e valor-quantidade , ou seja, expressar conceitualmente a prova de que a forma de valor surge a partir do conceito de valor. (grifos em itálico no original).

Em outras palavras, a “forma de valor” é derivada da “substância do valor” e o “valor-quantidade”, é presumido, como derivado na Seção 1. A substância de valor não é derivada da forma de valor.

Para citar mais uma passagem, no início do Capítulo 3, Seção 1, sobre a função do dinheiro como medida do valor, Marx recapitulou sua derivação do dinheiro como a forma necessária de manifestação do trabalho abstrato, apresentado anteriormente na Seção 3 do Capítulo 1, com a seguinte afirmação:

As mercadorias não se tornam comensuráveis por meio do dinheiro. Ao contrário, é pelo fato de todas as mercadorias, como valores, serem trabalho humano objetivado e, assim, serem, por si mesmas, comensuráveis entre si, que elas podem medir conjuntamente seus valores na mesma mercadoria específica e, desse modo, convertê-la em sua medida conjunta de valor, isto é, em dinheiro. O dinheiro, como medida de valor, é a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor das mercadorias: o tempo de trabalho. (grifos de F.M.)

[…]

Assim, penso que há evidências textuais muito fortes para apoiar a interpretação de que a Seção 3 do Capítulo 1 pressupõe que as mercadorias contenham quantidades definidas[determinadas] de trabalho abstrato, como derivado na Seção 1 e, em seguida, na Seção 3, obtém-se o dinheiro como a forma necessária de manifestação dessas quantidades de trabalho abstrato pressupostas. Esta é a conexão lógica entre as Seções 1 e 2 e Seção 3. A seção 3 é uma continuação lógica das Seções 1 e 2.

Em contraste com a afirmação de Geert, não há “salto” no método lógico de Marx na Seção 3. A Seção 3 deve ser lida com os “com as lentes do tempo de trabalho” das Seções 1 e 2. Os tempos de trabalho são presumidos na Seção 3, a fim de derivar a necessidade de dinheiro.

A propósito, penso que a derivação de Marx da necessidade do dinheiro de sua teoria básica do valor da Seção 3 do Capítulo 1 é uma conquista única e muito importante na história da teoria econômica. Nenhuma outra teoria econômica foi capaz de fazer isso antes ou depois; nem a teoria neoclássica, nem teoria de Sraffian.