Existem mercadorias imateriais?

No meio do caminho tinha a mercadoria.

Leonardo Gomes de Deus

Colocando o problema
Nos dias de hoje e nas elaborações mais recentes, em particular naquelas da academia, esqueceu-se até mesmo o que é uma mercadoria. Muito se fala das mercadorias imateriais. Assim, por exemplo, um professor seria produtor de uma mercadoria imaterial chamada “aula”, um médico produtor de uma mercadoria imaterial chamada “consulta”, o cantor da mercadoria “show” e assim sucessivamente. As confusões pressupostas nessas elaborações são múltiplas, vejamos alguns casos.

A situação mais comum é confundir a mercadoria com seu efeito útil, quer essa mercadoria seja uma força de trabalho ou um produto qualquer. Por exemplo, a venda da força de trabalho como mercadoria por um professor é confundida com o efeito útil da mercadoria vendida: o conhecimento e informações fornecidas. A venda da força de trabalho de um artista com o prazer estético que seu usufruto oferece (ou não). Mas também produtos como um CD, DVD são confundidos com seu efeito útil: as percepções audiovisuais. Em todos esses casos se confunde o valor de uso com valor. O valor, uma determinação social que as mercadorias possuem ao serem feitas a partir e para o mercado, com a satisfação individual e subjetiva que elas propiciam aqueles que a consomem. Ora, todo produto produz efeitos uteis – subjetivos e individuais – em seus respectivos consumidores, seja ele produzido sobre a forma mercadoria ou não. Tenha sido produzido hoje ou a três mil anos atrás. O que faz de um produto mercadoria não é sua determinação útil de produzir seja o que for em seus consumidores individuais, mas sua determinação social: a forma, o modo pelo qual são produzidos pela sociedade.

Confundir o efeito útil da mercadoria com a própria mercadoria é um erro de morte para se compreender a sociedade capitalista. Por exemplo, nos manuais vulgares de marxismo, costuma-se dizer que o cerne na exploração está no fato de o trabalhador trocar uma fração do tempo de trabalho por um salário. Tese indefensável. O trabalhador não vende seu trabalho, menos ainda o tempo de trabalho, ele vende a capacidade para trabalhar, a força de trabalho. O trabalho é seu efeito útil. É justamente dessa dissociação que surge todas mistificações da sociedade capitalista.

Um caso atual cujas elaborações beiram as raias do ridículo é, sem dúvida, o da informática. O fato de que um software ou um programa de computador não estar associado necessariamente a um único dispositivo físico, hardware, levou muitos a assombrosa constatação de que o software é imaterial. Esse caso é particularmente interessante porque espelha uma série de confusões concentradas. Em especial, as seguintes:

  1. Também nesse caso se confunde a mercadoria, o software, com seu efeito útil, seu uso ou execução. Principalmente pela percepção sensível produzida pelo software em uso ser muito diferente de sua configuração física, armazenada em um dispositivo de memória. Configuração essa inacessível diretamente aos sentidos, porém nem por isso imaterial. Transforma-se algo intangível em algo imaterial. Se for assim, teremos que assumir que os átomos, base das teorias materialistas desde a antiguidade, são imateriais.

  2. Se confunde a mercadoria, o software, com a articulação lógica abstrata que o constitui, como se esse não precisasse ser materialmente e fisicamente implementado por um programador.

  3. O fato do software poder ser replicado ilimitadamente em distintos dispositivos de memória faz com que muitos confundam seu direito ou possibilidade de uso com a sua propriedade. É como confundir o vender uma casa com seu aluguel. Vender uma mercadoria pelo seu valor, com alugá-la por meio de frações de valores que conferem apenas o direito de uso a um indivíduo, mantendo-se o mesmo proprietário.

Como se vê, é muito importante esclarecer a questão do que vem a ser uma mercadoria. Problema esse que, no nosso entender, está na base de boa parte dos equívocos nas análises sobre os traços específicos do capitalismo em nossos tempos, particularmente aquelas que tratam do tema do “trabalho imaterial”, do papel ocupado pelos serviços e assim por diante.

Entre os marxistas essas querelas comumente implicam em elaborações que minimizam o papel das atividades produtoras de mercadorias na sociedade capitalista de hoje, em especial a classe operária. Em alguns casos mais extremos, redundam na conclusão de que vivemos uma outra época histórica, marcada pelo predomínio do imaterial, do subjetivo, do indivíduo, apartado de qualquer base social objetiva. É nesse caminho, por exemplo, que Zygmunt Bauman denomina o mundo de hoje como uma Sociedade de Consumidores (BAUMAN, 2008, p.38). E daí conclui que a modernidade atual é líquida, leve, fluida e mais dinâmica que a modernidade ‘sólida’ que a precedeu.

A categoria Mercadoria em Marx
Em verdade, tais formulações já eram conhecidas por Marx e a elas reservava profunda ironia e, para dizer a verdade, sequer as considerava dignas de serem levadas a sério. Vejamos uma das passagens em que Marx comenta sobre os produtores das supostas mercadorias “imateriais”:

Segundo Storch, o médico produz saúde (mas também doença); professores e escritores, as luzes (mas também o obscurantismo); poetas, pintores etc., bom gosto (mas também mau gosto); os moralistas etc., os costumes; os padres, o culto; o trabalho dos soberanos, a segurança etc. (pp. 347 a 350). Por igual poder-se-ia dizer que a doença produz os médicos; a ignorância, professores e escritores; o mau gosto, poetas e pintores; a devassidão, moralistas; a superstição, padres; e a insegurança geral, soberanos. (MARX,1980, p. 269)

Nos cadernos preparatórios para O Capital de 1861-1863 vemos uma passagem análoga:

Um filósofo produz ideias, um poeta, poemas, um pastor, sermões, um professor, compêndios etc. Um criminoso produz crimes. Considerando-se mais de perto a ligação deste último ramo de produção com os limites da sociedade, então se abandonam muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas crimes, mas também direito criminal e, com isso, também o professor que profere cursos sobre direito criminal e, além disso, o inevitável compêndio com o qual esse mesmo professor lança suas conferências como “mercadoria” no mercado geral. Com isso, ocorre aumento da riqueza nacional, prescindindo todo prazer privado que o manuscrito do compêndio proporcionou ao seu próprio autor […]. (MARX, 2010, p. 355).

E Marx prossegue com sua ironia por duas páginas mais, colocando o criminoso como um dos trabalhadores mais produtivos da sociedade. Esta é a maneira como o autor de O Capital trata os adeptos do “trabalho imaterial”. Observem que, apesar do tom jocoso, todo conjunto de consequências “produzidas” pela ação do criminoso, apenas a produção do compêndio de direito criminal será tratado como aumentando a riqueza nacional. Observe ainda que o termo mercadoria, aplicado às aulas que o professor de direito criminal oferece, aparece, ironicamente, entre aspas. Afinal, a força de trabalho de um professor de qualquer matéria, engenharia ou teologia, é uma mercadoria, mas sua atividade não produz mercadoria alguma, não importa a utilidade que possa ter para a sociedade. Vejamos a questão em seus pormenores.

Marx inicia O Capital afirmando que a “riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias”. Ora, sendo a mercadoria a forma elementar da riqueza, a exposição principia por ela, em uma famosa passagem que diz:

A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel], isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção. (grifo nosso) (MARX, 2013, p. 113)

É um grande enigma que muitos autores tenham visto nesse parágrafo inicial de O Capital a justificativa de que as mercadorias possam ser materiais e também “imateriais”, dado que as necessidades que ela satisfaz podem se originar do “estômago ou da imaginação” ou, segundo outras traduções, “da fantasia” ou “do espírito”. Não é tanto uma questão de interpretação, mas de gramática. Não é as mercadorias que podem ser “fantasia”, “imaginação” ou “espírito”, mas as necessidades que elas satisfazem. Assim, uma televisão, um livro, um DVD, um videogame etc., satisfazem o espírito e não o estômago. A passagem afirma o contrário, que a mercadoria, forma elementar da riqueza, é uma coisa, um objeto externo. Enquanto objeto externo ela não pode ser um conjunto de valores e conhecimentos internos aos indivíduos, mas se encontra fora deles, como algo que transcende os indivíduos e suas respectivas capacidades, apenas se ligando a eles exteriormente.

No entanto, de fato, esse é apenas o modo como as mercadorias aparecem. Fossem elas determinadas unicamente pela sua materialidade e pela satisfação das necessidades humanas seriam mercadorias, inclusive, aqueles objetos de algum modo úteis que encontramos prontos para o consumo na natureza. Ou aqueles que um camponês produz para o próprio consumo ou de sua família. Para ser mercadoria não é suficiente, também, o fato de ser um produto do trabalho humano. Fosse esse o caso, ela não seria a forma elementar da riqueza capitalista, mas de toda e qualquer forma de sociedade. Antes disso, para “se tornar mercadoria, é preciso que o produto, por meio da troca, seja transferido a outrem, a quem vai servir como valor de uso” (MARX, 2013, p. 119).

Este é o conceito mais preciso e determinado de mercadoria presente em um adendo de Engels ao primeiro livro de O Capital. Não basta ser uma coisa material, antes disso, a mercadoria é unidade de valor de uso e valor e, enquanto tal, um valor de uso social, ou seja, por meio da troca no mercado, ela é um valor de uso para outro que aquele que a produziu. A mercadoria é, assim, especificada frente aos produtos do trabalho no geral como uma forma social particular destes. Em suma, Marx supera a forma unilateral e abstrata em que a mercadoria foi inicialmente considerada. Não porque seu aspecto de objeto externo foi suprimido, mas porque, além de um produto do trabalho e, enquanto tal, valor de uso, ela é também valor, isto é, uma relação social, não uma simples coisa, mas uma relação social que se efetiva em e através de coisas.

Por isso Marx diz ser a mercadoria uma coisa “sensível-suprassensível”, ou como prefere a tradução da Abril Cultural, uma coisa “física metafísica”. Afinal, quando “é valor de uso, nela[a mercadoria] não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano.” (MARX, 2013, p. 146). Já quanto ao seu valor, uma mercadoria é expressão de uma relação social que lhe atribui um valor a partir da equiparação do conjunto das mercadorias no mercado.

Uma mercadoria mesa, por exemplo, não se constitui unicamente por suas propriedades materiais e úteis, “ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível” (MARX, 2013, p. 146). Isto é assim porque sua determinação de valor não é palpável nem acessível aos sentidos, não por ser algo imaterial, mas por conter uma propriedade social, posta por uma dada forma de relação entre as pessoas, que parece ser algo que a mercadoria tem por natureza. Podemos virar e revirar a mercadoria-mesa como quiser e não encontraremos seu valor. Para tal, a análise deve se dirigir ao “caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias” (MARX, 2013, p. 148). Daí seu aspecto enigmático, obscuro, nas palavras de Marx, quase teológico e metafísico. Sejamos mais diretos. Marx diz que uma mercadoria é algo sensível-suprassensível não é pelo fato de poderem ser “imateriais”, mas por possuírem uma propriedade que não é perceptível pelos sentidos, a propriedade social de ser valor, ou mais precisamente, pelo fato do valor ser “apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2013, p. 147).

Numerosas passagens poderiam ser mencionadas nesse sentido, isto é, apesar de não se definir pelo mero atributo de ser material, a mercadoria pressupõe estas coisas materiais e sensíveis como suporte de suas propriedades sociais. Por exemplo, ainda no Livro Primeiro de O Capital, Marx faz a seguinte citação de Jean-Batiste Say: “Não é a matéria que forma o capital, mas o valor dessas matérias” (MARX, 2013, p. 229). Outra citação, particularmente interessante, tendo em vista nossos propósitos, se encontra nas Teorias de Mais-valia, onde se diz: “Mercadoria – no que a distingue da própria força de trabalho – é coisa que se contrapõe materialmente ao ser humano, de certa utilidade, e onde se fixa, se materializa quantidade determinada de trabalho”(MARX, 1974, p. 143). Como se vê, mercadoria é uma “coisa que se contrapõe materialmente ao ser humano”. Exceto a força de trabalho. As mercadorias são, portanto, de dois tipos:

  1. Objetivas: Coisas, objetos externos sensíveis que servem de valor de uso para outros por meio da troca. Isto é, unidade de valor de uso e valor. Uma coisa social ou uma relação social que possui estas coisas materiais, os produtos do trabalho, como suporte.

  2. Subjetivas: A força de trabalho.

Com isso, nossa exposição marcha rumo a outro tipo específico de mercadoria presente na sociedade capitalista: a força de trabalho.

A mercadoria força de trabalho
Como se sabe, o modo capitalista de produção pressupõe o desenvolvimento e a generalização de uma mercadoria em particular: a força de trabalho. Isto significa que o individuo que trabalha não está mais ligado diretamente a uma comunidade, como nas sociedades primitivas, nem ligado diretamente a um senhor e a terra, como é o caso da servidão, nem é ele próprio mercadoria, como na escravidão; mas vende no mercado sua capacidade para um dado tipo de atividade ou trabalho. A força de trabalho é uma mercadoria porque satisfaz as duas determinações que constituem a sua natureza social: possuí um valor de uso, o trabalho, e, enquanto algo existente para a troca, possui, também, um valor, medido pelo tempo socialmente necessário para reproduzir a força de trabalho enquanto tal. Em resumo, “a mercadoria se patenteia trabalho pretérito, objetivado e que, por isso, se não aparece na forma de uma coisa, só pode aparecer na forma da própria força de trabalho” (MARX, 1974, p. 151).

Embora a força de trabalho tenha como suportes materiais os indivíduos dela portadores, ela mesma é uma mera potência para realização de algo, mera capacidade para efetivar um tipo determinado de trabalho. Sendo assim, por que naquela definição inicial Marx caracterizara a mercadoria como um “objeto externo”, uma coisa exterior aos indivíduos, se a força de trabalho é exatamente aquilo que os indivíduos possuem em si mesmos, algo subjetivo, e, enquanto tal, não materializada em algo externo?

Acontece que, apesar de ser mercadoria, a força de trabalho não é uma forma elementar da riqueza e não constitui a imensa coleção de mercadorias que configura a riqueza do modo de produção capitalista. Embora seja valor e, enquanto tal, corresponda a soma global de valores da sociedade, ela não valoriza imediatamente o capital, nem corresponde a riqueza que este tem como base. Em primeiro lugar porque a força de trabalho jamais é propriedade do capital, mas do trabalhador que a vende. O capitalista paga o valor da força de trabalho para receber, como em toda troca de mercadorias, apenas seu valor de uso. É o valor de uso da força de trabalho, isto é, o trabalho, que produz riqueza e valor, inclusive o mais-valor que o capitalista se apropria de modo a acumular capital. É o consumo da força de trabalho que produz riqueza, tanto para o capitalista, quanto a parte que aflui ao trabalhador na forma de salário. Daí o caráter absolutamente especifico da mercadoria força de trabalho, que pode até ser uma riqueza para o indivíduo dela possuidor, mas não para capital.

Portanto, no que diz respeito ao consumo da força de trabalho e seu papel mais geral na sociedade capitalista, ela pode se dividir em dois tipos: atividades produtoras de mercadoria e atividades não produtoras de mercadoria. No primeiro caso, se cria valor. No segundo caso, na medida em que os meios de produção são consumidos no processo de trabalho sem que esse redunde em uma mercadoria, apenas se consome os valores existentes. No primeiro caso temos criação de mais-valia. Já no segundo, temos transferência de valor que pode ou não ser, em seguida, apropriado na forma da mais-valia, mas não sua criação. Longe de ser um mero detalhe, a diferença entre atividades que produzem ou não mercadoria é abissal. Em qualquer um dos casos, pode se virar e revirar como se queira, jamais se encontrará uma mercadoria imaterial.


Referências

MARX, KARL. O Capital – Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.

MARX, KARL. Teorias da Mais Valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v. 1.

MARX, KARL. Teorias da Mais Valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. v. 2.

MARX, KARL. Para a crítica da economia política. Manuscrito de 1861-1863 (cadernos. I a V). Terceiro Capítulo – O capital em geral. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

Gustavo Machado

Editor do blog Teoria e Revolução.