Os multitudinários protestos antirracistas iniciados dia 05/06 nos Estados Unidos, por ocasião da morte de George Floyd, ganharam a atenção e o apoio em vários países. Floyd, 46 anos, negro, era ex-segurança. Uma cena grotesca em que o agente da polícia Derek Chauvin pressionou o joelho contra seu pescoço por vários minutos, sufocando-o mesmo depois de ele ter parado de se mexer. O policial pousava com as mãos no bolso. “I can’t breathe” (“Não consigo respirar”), foram suas últimas palavras. A palavra de ordem Vida Negras Importam! motivou mobilizações de Los Angeles a Nova York, de Minneapolis às portas da Casa Branca, em Washington. Até o seu sepultamento, os protestos mantinham sua intensidade, mesmo diante da brutal repressão e do temor à pandemia da Covid-19.

Muitos casos de violência policial já causaram revoltas no país. Neste texto lembraremos do levante de Los Angeles de 1992. Na primavera de 199, um motorista negro, Rodney King, foi brutalmente espancado por policiais. Meses depois, os acusados foram inocentados num processo escandaloso. A cidade explodiu em um grande levante que resultou numa das maiores irrupções revolucionárias do povo Negro ocorridas na história do país. Os crimes contra Floyd e King representam dois pontos altos do conflito após os anos de luta pelos direitos civis.

O racismo continua sendo um dos grandes problemas da sociedade norte-americana, ligada profundamente à escravidão e à crise econômica e social atual. Existe uma total incapacidade de o imperialismo solucionar o problema da discriminação racial. Um maior exemplo foi a Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, um dos maiores eventos multilaterais das últimas décadas, realizados para discutir o racismo e procurar soluções. O evento se tornou uma tremenda decepção, depois de os Estados Unidos recusarem suas tímidas resoluções. Sem os levantes revolucionários Negros, nem mesmo os direitos civis ou as mudanças formais contra o racismo teriam ocorrido naquele país.

Discriminação, exploração e direitos civis

Para Shawki (2017), a segregação racial não era lei no Norte, mas estava presente em quase todos os aspectos das suas vidas. Aqueles Negros que fugiam do Sul terminavam sendo forçados a morar em grandes guetos urbanos. As escolas Negras eram inferiores e segregadas. Seus empregos eram os piores e mais mal pagos, numa realidade em que os trabalhos mais especializados eram destinados aos brancos. Os Negros eram submetidos à autoridade dos brancos, especialmente ao assédio da polícia.

Os séculos sofridos de segregação fazem com que, em muitas cidades, negros e brancos continuem separados; não frequentem as mesmas escolas, lojas, espaços de lazer e os mesmos serviços básicos. Desde o plano New Deal, anos 1930, foram impostas duras regras para liberação de financiamento da habitação. De forma que evitaram que Negros vivessem em certas áreas também via pactos raciais restritivos (1948) nos contratos. Mesmo durante a prosperidade americana, na qual a casa própria foi símbolo maior, famílias Negras eram discriminadas arbitrária e rotineiramente. Áreas onde na época moravam as chamadas minorias, eram negócios “arriscados” para os brancos. Devido à explosão do processo de urbanização e industrialização das grandes cidades americanas. Surgem os projetos que abrigavam os trabalhadores exclusivamente como o conjunto Jordan Downs, na área de Watts, em Los Angeles, construído na década de 1940, para abrigar os trabalhadores imigrantes, predominantemente para as fábricas e apoio ao esforço de guerra. A imigração para a Califórnia buscava escapar da segregação, predominante no Sul. Por isso, o problema da moradia é bastante simbólico para os Negros e as Negras americanas, através da qual ocorre uma severa segregação.

Em quase todas as grandes cidades do país existem esses projetos, que se tornaram moradias de maioria negra, no caso do Jordan Downs, tornou-se 100% Negro. Tendo a classe média abandonado muitos desses espaços, eles passaram a ser habitados majoritariamente por pessoas de baixa renda. Nos anos 1980 – como consequência das mazelas sociais – o tráfico de drogas, a marginalidade, especialmente os enfrentamentos de gangues rivais, afetaram esses locais, que nunca deixaram de ser alvos das operações polícias permanentes.

A segregação formal e informal, linchamento e violência policial, a discriminação no emprego, na educação e nos serviços públicos, a falta de direitos políticos e a pobreza extrema são fatores que caracterizaram a vida de negros nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, mesmo na conhecida Era de Ouro Americana. Sem desfrutar do progresso econômico e social, foram impelidos a construírem grandes movimentos sociais, o mais conhecido foi o “movimento por direitos civis” (CARNAl, et al, 2007). Muitas organizações políticas Negras atuaram na primeira metade do século XX, mas foram nos anos 1950 e 1960 que incentivaram o estouro das mobilizações de massa.

O Movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos foi um dos maiores e mais conhecidos movimento social pela igualdade racial, ocorrido entre o final dos anos 1950 e durante a década de 1960. Visava conseguir reformas para abolir a discriminação e a segregação racial no país. Com ele, a luta racial assumiu formas organização e de mobilização de massa, muito embora a população Negra representasse a minoria da população. Segundo Shawki (2017), esse movimento foi fruto das transformações pela qual passou a sociedade americana com o processo de urbanização e da experiência da população Negra durante a Segunda Guerra Mundial. A urbanização da população Negra transformou seu caráter e aumentou sua confiança, tanto no Sul como no Norte, para enfrentar o racismo. A inserção na indústria e, ao mesmo tempo, nos sindicatos foi fundamental.

Conforme os autores, o final dos anos de 1960 parecia mais seduzir pelas possibilidades imaginadas frente aos ideais de liberdade e progresso do discurso oficial americano do que efetivamente pelas ações concretas que não conduziam para à inclusão econômica e social da classe trabalhadora Negra do país. A palavra liberdade era definida de forma genérica, representando igualdade, poder, reconhecimento, direitos e oportunidades. Esse movimento projetou líderes como o Martin Luther King, da Geórgia, que fundou a Conferência de Liderança Cristã, em 1957, para coordenar e avançar a luta por direitos, baseada na “desobediência civil”.

Segundo ainda os autores, nos anos 1950, a decisão da Suprema Corte, fruto dessas lutas, foi contrária à discriminação em escolas e universidades públicas e aos movimentos anticoloniais na África. Os universitários negros sentiram-se estimulados a agir de norte a sul do país, criando organismos para coordenar as lutas, a exemplo do Comitê Sulista de Coordenação Não Violenta (SNCC, sigla em inglês). De forma crescente, diferentes táticas uniam negros e brancos na luta pelos direitos civis, como o direito ao voto, à educação e pelo fim da segregação.

Um conjunto de organizações com programas limitados do ponto de vistas da luta de classes, eram empurrado para as ações diretas. Isso fez surge Malcom X e o Partido dos Panteras Negras, com doutrinas e propostas de ações mais radicalizadas com avanços importantes no plano político-ideológico. O movimento socialista participou e exerceu significativa influência nos rumos desse processo de organização da luta pelos direitos civis.

As mobilizações atingiram seu ápice em 1963, entre os meses de junho e agosto, quando o Departamento de Justiça documentou mais de 1.412 manifestações distintas. Em uma semana de junho daquele ano, mais de 15 mil americanos foram presos por conta de protestos em 186 cidades. Em agosto, uma passeata conhecida como Marcha de Washington levou até a capital 200 mil manifestantes para ouvir Luther King em seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”. Estes protestos culminaram com “Verão da Liberdade” em 1964, quando universitários brancos e negros do Norte viajaram para o Sul a fim de ajudar os Negros de lá a tirarem o título eleitoral. Os protestos passaram a ser reprimidos violentamente, suas cenas causaram comoção e resultaram numa ampla adesão de pessoas brancas à causa antirracista.

A partir das conquistas civis, as pautas avançaram rumo ao fim da discriminação econômica e da pobreza, temas que passaram a ocupar parte importante da perspectiva do movimento. Campanhas locais feitas por sindicatos conseguiram a implantação de alguns programas de ação afirmativa em empresas. Finalmente, os abusos mais extremos de discriminação formal pareciam estar dissolvidos. Mas os ganhos ficaram restritos aos programas sociais e aos programas de “ação afirmativa” implementados pelo governo entre 1965 em 1975, principalmente as cotas raciais.

A legislação formal tinha seus limites, pois a miséria econômica continuou, a insatisfação com a política de cooptação/repressão e a influência de correntes políticas esquerdistas deram origem à segunda fase do movimento negro. O discurso político passou a criticar não somente a discriminação, mas também a exploração econômica e a política internacional norte-americana para o Vietnã, Coreia do Norte e Camboja. As lideranças radicalizaram e avançam para a definição da transformação social em termos econômicos, combatendo a pobreza, principalmente, o que levou ao assassinato de Luther King. Morto em 1968, na cidades de Memphis (Tennessee) ao lado do Mississip, onde prestava seu apoio aos trabalhadores Negros dos serviços de limpeza em greve. Foram dias de explosões e as chamas aqueceram os arredores da Casa Branca.

Para Andrews (1985), a segregação foi suprimida legalmente, o sufrágio foi estendido ao povo negro (Ato dos Direitos de Voto de 1965) e os governos instituíram programas de “igualdade de oportunidades” e “ação afirmativa” para combater o racismo. Os programas de oportunidades iguais possibilitaram a uma nova geração de afro-americanos o acesso às universidades, tornando-os assim parte dos profissionais liberais de classe média. Para esta jovem e crescente elite negra (talvez 15 a 20% da população Negra), o sonho americano parecia se realizar.

O movimento pelos direitos civis possibilitou a muitos negros benefícios com o bom econômico, ingressando na cultura consumista, fizeram do status uma obsessão e do hábito da estimulação um modo de vida. Famílias passavam a enviar seus filhos para as universidades das elites em busca de emprego bem remurados. As classes médias Negras se constituíram na paz de espírito e no prazer do corpo através da cultura consumista, pela primeira vez (WEST, 1994). Todavia, se a nova classe média Negra se beneficiava das oportunidades, o mesmo não acontecia com a maioria, cuja renda nacional mostrou-se imutável entre 1960 e 1980, permanecendo em níveis mínimos.

Graças aos grandes processos de mobilização, aconteceram mudanças significativas na sociedade norte-americana. As limitações destas mudanças, porém, possibilitam que o racismo continue presente de forma cada vez mais cruel. Negros e Negras continuaram vivendo sob a segregação social, econômica e política.

O levante Negro de Los Angeles (1992)

O assassinato de Floyd nos faz relembrar o caso Rodney King quase 30 anos depois. Vários documentários abordaram a revolta antirracista de 1992, retratando que Los Ângeles ficou a ferro e fogo naqueles seis dias de protestos. Entre os principais vídeos estão “LA 92” e “Um crime americano”. As montanhas de São Gabriel testemunharam a dimensão da rebelião racial daqueles dias violentos na cidade, também conhecido como “A cidade sob o fogo”.

A fúria contra a segregação vem de longas datas por parte classe trabalhadora Negra da cidade, injustiçada pelo tratamento discriminatório por parte da polícia, da população branca e pelas dificuldades de acesso aos serviços básicos. Esta situação fez explodir em 11 de agosto de 1965, dia que ficou conhecido como “Os Tumultos de Watts”, um levante que se alastrou por cerca de 130 km na região sul, também motivado pela violência policial (1). O prenúncio estava feito.

Los Angeles, nos anos de 1990, era a segunda cidade maior dos Estados Unidos. Contava com cerca de 4 milhões de habitantes. Era destino de férias de muita gente endinheirada e também cenário de muitos filmes policiais de Hollywood que ganharam as telas das TVs. O prefeito era um negro, Sr. Tom Bradley. Sua polícia era racista e corrupta e tinha como alvo das batidas policiais os Negros dos bairros empobrecidos.(3)

Em 3 de março de 1991, o negro Rodney Glen King, dirigindo seu taxi numa velocidade acima da permitida, foi perseguido e detido pela polícia. Mas não foi uma simples detenção, já que o suspeito começou a ser agredido brutalmente. Os policiais espancaram King ao invés de conduzi-lo para a delegacia. Enquanto estava ao chão e indefeso, levou inúmeros golpes de porrete e armas de choque dos policiais. Seu globo ocular se deslocou no crânio e teve muitos hematomas e fraturas. A principal acusação era a de que trafegava em alta velocidade. O crime de racismo ficou evidente e foi gravado em vídeo por George Holliday, que se tornou testemunha do caso. Muitas revistas e jornais publicaram artigos sobre o Caso Rodney King. O caso se enquadrava em abuso de autoridade e racismo por parte dos policiais.

Em 29 de abril de 1992, os quatro policiais foram julgados, mas inocentados pela justiça americana que alegou falta de provas. Este resultado do processo causou espanto. O júri que absolveu os policiais racistas era formado por 10 brancos, 1 negro e 1 asiático. Havia uma grande expectativa da comunidade Negra de Los Angeles da condenação dos policiais. O descaso da justiça gerou uma indignação geral. As manifestações começaram desde os bairros da zona sul da cidade, com presença expressiva de Afrodescendentes. A situação fugiu do controle. Foi uma noite dos infernos contra o racismo na Cidade dos Anjos.

Foram seis dias de sublevação em toda área da South Los Angeles. A banda americana Sublime, na música “29 de Abril de 1992”, retrata o chamado de um policial que buscava reforços no começo dos protestos: “Não sei se você consegue. Mas você consegue entrar em contato com o dono da Ons. Se escreve O-N-S, Junior Market. O endereço é 1934, Rua Anehein East. Todas as janelas estão quebradas, e está parecendo uma boca-livre. E o dono deveria pelo menos aparecer aqui. Pra ver se ele consegue salvar o seu negócio, isso se ele quiser.”

Sinalizadores foram utilizados para convocar as manifestações que acontecem em diferentes pontos da cidade. Saques em lojas e supermercados de forma generalizados, 900 incêndios, 2 mil feridos, 58 mortos, 12 mil presos e prejuízo de cerca de 717 milhões de dólares. O chefe da polícia renunciou ao final dos protestos. Quase todas as forças repressivas do Estado americano foram acionadas contra o levante. Um efetivo de 4.000 soldados patrulharam as ruas da cidade até que os protestos cessaram.

A rebelião de Los Angeles de 1992 impôs outro destino ao caso de Rodney King. No novo julgamento, dois dos quatro policiais racistas que espancaram King acabaram condenados. Em 1994, este foi indenizado em uma ação civil contra a cidade de Los Angeles. O Departamento de Polícia de cidade passou por uma série de reformas nos seus protocolos de abordagem e na sua organização, a fim de assegurar o respeito à diversidade e à participação da sociedade civil na segurança da cidade.

A insurreição forçaria a polícia a rever uma série de práticas que haviam lhe rendido a fama de ser uma das mais racistas e violentas forças de segurança dos Estados Unidos. Esta história foi retratada no livro do Joe Domanick, “Azul: a ruína e a redenção da Polícia de Los Angeles”. A intervenção na polícia da cidade teve, entre outros, os objetivos de reduzir o uso da força, criar mecanismos para punir abusos e melhorar sua relação com os moradores dos bairros habitacionais. A corporação passou a enfocar um modelo de policiamento comunitário, estabelecendo aproximação com líderes locais e ativistas sociais.

O racismo é antes de tudo, uma forma terrível de apropriação do trabalho humano. Como observou Callinicos (1993), a grande rebelião de Los Angeles de abril de 1992 – cujos ecos se sentiram em cidades tão distintas como San Francisco, Las Vegas e Atlanta – mostrou como raça e classe juntas têm o potencial de romper a estrutura da sociedade norte-americana.

Racismo, crise social e decepção em Durban

Os governos dos Estados Unidos combateram violentamente os movimentos Negros, com mais veemência os radicais, contudo também buscaram estratégias de integração destes ao sistema. Paulatinamente, as representações políticas dos Negros também foram sendo integradas ao consumo e aos partidos da ordem burguesa. Suas representações foram sendo integradas ao gerenciamento das políticas para minimizar as tensões em função do conflito racial e da miséria do povo afrodescendente. Shawki (2017), afirma que os setores da classe média e da pequena burguesia Negra, no fim das contas, foram os que mais se beneficiaram da radicalidade do movimento.

Wets (1994), vai no mesmo sentido ao afirmar que com as ações afirmativas e o projeto de empoderamento, gerou-se uma classe média e elite negra norte-americana distante da população Negra que passou a ser alvo de toda forma de violência, genocídio e encarceramento. A novas lideranças Negras atuavam com intermediária entre o mundo empresarial, os estabelecimentos políticos e os pobres confinados nos guetos.

A pobreza da população negra assim foi tratada não com distribuição de renda, empregos, melhores salários, moradias e lazer. Não se tratava de conceder a vida mas a sobrevida. Paralelo às ações compensatórias, dava-se a política de encarceramento em massa nos anos 1970 e 1980 (“Guerra às Drogas”) que acabaram por focalizar principalmente a juventude negra e suas famílias, como já vem denunciando há décadas a ativista antirracista Ângela Davis.

Há também uma grande diferença socioeconômica, oriunda da reprodução histórica da ordem imperialista norte-americana. Dados United States Sensus dos EUA, indicam que nos anos 1970, a taxa de pobreza entre negros era de 33,6%, e em 2012, de 35%. Entre os brancos também ocorreu um leve aumento ao longo desses 42 anos, de 10% para 13%, tendo a desigualdade entre ambos se mantido intacta. Esse padrão racial respinga no desemprego: desde 1972, quando teve início as estatísticas de diferenciação, a taxa entre os negros foi sempre 60% mais alta que a dos brancos. Em março de 2014, a taxa geral foi de 6,7, enquanto a dos brancos, de 5,8% e a dos negros, de 12,4%.

A Conferência Mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e intolerâncias correlatas, ocorrida na cidade de Durban, na África do Sul, no ano de 2001, foi um dos maiores eventos multilaterais das últimas décadas, realizados para discutir o problema do racismo e procurar soluções. O evento visava “avaliar o progresso obtido na luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e formas correlatas de intolerância, em especial com relação à Declaração Universal de Direitos Humanos, e abordar os obstáculos ao avanço neste campo e as possibilidades de superá-los.” Por isso, gerou grandes expectativas em todo o movimento negro internacional.

Em paralelo ocorreu um evento dos movimentos sociais pressionando para que se aprovassem resoluções para atacarem as questões sociais relacionadas aos diferentes tipos de racismos. Ao final da Conferência, uma grande decepção tomou conta dos seus participantes, pois nenhuma resolução que colocasse em risco os privilégios dos capitalistas foi aprovada, a exemplo do perdão da dívida externa da África do Sul.

O reconhecimento da escravidão e do tráfico de escravos como crimes contra a humanidade foi aprovado, mas sem a presença dos EUA, que junto com Israel se retirou da Conferência, alegando não concordar com os rumos da discussão sobre o Oriente Médio. O colonialismo ficou fora da definição de crime contra a humanidade. O texto afirma timidamente que o colonialismo levou ao racismo e causou sofrimento e que isso deve ser “lamentado e evitado”. O que saiu de mais “avançado” foi a indicação das políticas compensatórias para atacar problemas sociais fiscais. Estas posteriormente foram executadas pelos governos de muitos países sob o comando do Banco Mundial, com claro conteúdo de controle social. Foi um evento decepcionante, apesar das inúmeras declarações de boas intenções contidas nas mais de 200 resoluções do seu relatório final, a maioria abstratas, longe da solução dos problemas concretos.

Os EUA, coração do imperialismo, frente à uma profunda crise estrutural, não tem como colocar fim ao racismo e aos problemas dele decorrentes, principalmente sob o governo de Donald Trump. Sua política genocida e racista agravam os problemas estruturais. Nem mesmo sob as duas gestões do governo do democrata Barack Obama isto foi possível, pois ainda ficou essencialmente no campo das mudanças formais e das compensações.

A sociedade americana atualmente se encontra numa profunda crise. De um lado, o mal-estar crescendo a todo vapor, os movimentos sociais efervescentes, a exemplo do movimento Blak Live Matters. Do outro, o governo Trump, com medidas cada vez mais ultraliberais, sofrendo desgastes e lançando seu aparato repressor contra as lutas. O peso da crise econômica está sendo lançado sobre os ombros do povo Negro e hispânicos. Não temos precedentes para o movimento atual, impulsionado pela morte de Floyd e que atravessa o país mesmo em meio à pandemia global da Covid-19, contexto de profundo abalo sanitário e político para a sociedade estadunidense.

A morte de George Floyd nos traz lembranças da violência contra Rodney King, dos levantes de Watts no distrito de Watts, as lutas de Malcon X, de Luter king ou o caso do jovem negro Michel Brown, abordado de forma violenta e assassinado após dois minutos de abordagem em 2014, na cidade de Ferguson. E tantos outros atos de racismo que causaram revolta antirracista nos Estados Unidos. Rebeliões em tempos e espaços diferentes, mas conectadas, se encontram nos guetos da história de luta pela libertação.

As lutas pelas reformas ajudaram em muitas conquistas, embora as ações afirmativas tenham demonstrado seus limites. Mas foi sob o calor das grandes revoltas civis que o Estado norte-americano se sentiu pressionado a tomar medidas institucionais mais amplas e rápidas. A partir daí, legislações foram alteradas, departamentos de polícia locais passaram a adotar novas regras e protocolos, comissões de civis foram formadas para acompanhar o trabalho policial nas cidades, ao mesmo tempo em que mais negros foram recrutados para as instituições de segurança. Políticas voltadas para a melhoria das condições de vida das pessoas Negras carentes foram implantadas.


Notas:

1. Em agosto de 1965, a tensão entre brancos e negros atingiu um ponto crítico, resultando na revolta do conjunto habitacional Jordan Downs na área de Watts na cidade de Los Ângeles. A detenção por policiais brancos do jovem negro Marquette Frye, durante uma operação na estrada provoca motivou a população a sair às ruas, uma região de periferia com 100% de moradores pretos. Os distúrbios duraram seis dias e envolveram toda a região, culminando em 34 mortes, mais de 1.000 feridos e na destruição e dano de 600 edifícios. Este foi um ensaio geral para “A cidade sobre o fogo”.

2. Nada diferente do Departamento de Polícia de Minneapolis, que tem enfrentado décadas de denuncias em relação às brutalidades e discriminações contra os afro-americanos e também contra outras minorias, mesmo dentro da própria polícia. Apesar da promoção de seu primeiro chefe de polícia negro, Medaria Arradondo, em 2017, a situação pouco tinha mudado. Arradondo estava entre os cinco agentes negros que processaram o departamento de polícia por discriminação nas promoções, nos salários e na disciplina.

ANDREWS, Georg Reid. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Lua Nova vol.2 no.1 São Paulo jun. 1985.

CALLINICOS, Alex. Racismo e capitalismo. Edição digital de Marx21.net. https://marx21net.files.wordpress.com/2018/12/Racismo-e-capitalismo-PT.pdf

SHAWKI, Ahmed. Libertação negra e socialismo. São Paulo: Sundermann, 2017.

KARNAL, Leandro [et al.]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.

WEST, Cornel. Questão de raça. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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