Nos dias de hoje Marx é retratado na maior parte dos livros, artigos e documentários como um intelectual que, externamente a classe trabalhadora, procurava lhe dar lições. Lições essas alcançadas unicamente em função de sua mente brilhante. Alguns aspectos de seu pensamento são estudados nos cursos universitários e seu nome esta sempre presente na literatura que trata de temas específicos de ciências humanas: história, economia, sociologia e assim por diante. Agora, completados 200 anos de seu nascimento, nos meios políticos tradicionais, nas universidades, nos meios de comunicação de grande circulação muitos se levantam para saldar, ou criticar, o seu nome.

Se por algum motivo um indivíduo bem informado de pouco mais de 100 anos atrás fizesse uma viagem no tempo até os nossos dias, ficaria, certamente, espantado com o tamanho da audiência dada à Marx nesses meios. No começo do século XX, muitos anos após sua morte, seu pensamento não era estudado nos ambientes universitários, fora poucas vezes abordado pelos economistas e filósofos de então. Quase toda audiência de Marx se encontrava no interior das organizações operárias e socialistas europeias, principalmente na Social-Democracia Alemã e nos demais partidos da Internacional Socialista. Seu nome já era bastante conhecido, no entanto, era sempre associado ao movimento operário, socialista e radical. Sua teoria, ao contrário, era pouco estudada fora desses meios.

Dois foram os momentos que fizeram de Marx um nome reconhecido e famoso. Curiosamente, não se trata da publicação de O Capital nem de qualquer outra de suas elaborações, mas duas revoluções. A primeira delas foi a Comuna de Paris. Ainda que, nesse momento, Marx estivesse na Inglaterra e com graves problemas de saúde, foi ao seu nome que boa parte do mundo associou o levante francês. Essa associação não foi acidental. De fato, a Associação Internacional dos Trabalhadores, que cumpriu importante papel na Comuna, fora, desde o início, organizada e fomentada por Marx. Foi a ele que a AIT encomendou uma Declaração sobre a Comuna, publicada com o título de A Guerra Civil na França. Esse foi o primeiro texto de Marx com grande repercussão, vendendo mais de 18 mil cópias em três meses e sendo traduzido para a maior parte das línguas europeias. O segundo momento que elevou o nome de Marx no cenário internacional foi a Revolução Russa. Somente então seu nome passou a figurar em todos os meios. Esse percurso não foi uma fatalidade, como veremos a seguir.

Nascido em uma família de classe média e filho de um advogado empregado pela burocracia estatal do que hoje é a Alemanha, Marx ingressou no sistema universitário alemão e chegou a estudar em sua principal universidade: a Universidade de Berlim onde anos antes lecionara Hegel, um dos mais brilhantes filósofos alemães. Defendeu uma tese de doutorado sobre os filósofos materialistas gregos e aspirou uma carreira acadêmica, o que se mostrou impossível com a reação que se abateu em seu país a partir do ano de 1842. Desde então, Marx ingressou no que veio a ser sua atividade profissional no curso de toda vida: o jornalismo. Essa atividade mudou para sempre seu destino.

A partir de então, Marx entra em contato com a insurreição dos tecelões da Silésia, com o movimento operário francês, bem como com o movimento comunista alemão e parisiense. Baseado nessas experiências, bem como em muitas outras do passado, Marx rompe com sua concepção anterior, democrática de esquerda, passando a defender a vinculação entre o movimento comunista e a classe operária. Em sua concepção, o socialismo não viria de fora, produto de uma elaboração feita de antemão por um reformador ou teórico genial, mas, ao contrário, só poderia ser realizado se vinculado com o produto mais genuíno da sociedade capitalista em desenvolvimento: o proletariado. Como dirá na época: “a teoria se torna força material quando se apodera das massas”. Desde então, toda atividade de Marx esteve orientada para a organização da classe operária, não apenas sua atividade intelectual, mas também suas relações pessoais e sua atividade prática e organizativa. Como ele próprio dirá no escrito Senhor Vogt datado de 1960: “representamos sempre gratuitamente e com sacrifício dos nossos interesses privados, os interesses da classe operária” (MARX, 1976, p.71).

Uma obra orientada para a classe operária
Com essa nova orientação, toda obra de Marx que se seguiu, sobretudo os textos voltados para publicação, entre livros e artigos, tinham como interlocutores privilegiados a classe operária e suas lideranças. Podemos citar inúmeros exemplos nesse sentido. Um de seus primeiros textos sobre o funcionamento da sociedade capitalista, Trabalho Assalariado e Capital, foi uma série de conferências apresentadas na Associação dos Operários Alemães de Bruxelas reproduzida depois na Associação dos Trabalhadores de Colônia. Outro título publicado na mesma época, a Miséria da Filosofia, era uma crítica ao mais influente teórico do movimento comunista e operário francês: Proudhon. O Manifesto Comunista não era nada mais do que o programa da organização que Marx acabara de ingressar: a Liga dos Comunistas. Sobre esse escrito clássico, Marx dirá também no Senhor Vogt que “no Manifesto, destinado diretamente aos operários, lancei borda fora todos os sistemas, substituindo-os pela ‘inteligência crítica das condições do caminho e dos resultados gerais do verdadeiro movimento social’ ” (MARX, 1976, p.101).

Pouco tempo depois do Manifesto, Marx irá consumir boa parte de seu patrimônio financiando o jornal Nova Gazeta Renana durante as jornadas revolucionárias de 1848-49. Esse jornal chegou a ser um dos de maior circulação durante o período revolucionário, até sua proibição e a subsequente expulsão de Marx da cidade alemã de Colônia. A sede do jornal era uma espécie de quartel armado. “Nossa redação”, dirá Engels mais tarde, “dispunha de oito fuzis com baioneta e 250 cartuchos”, sendo “considerada pelos oficiais como uma fortaleza que não poderiam conquistar com um simples golpe de mão”. Tal jornal chegou a ter 6.000 assinaturas, enquanto o principal jornal de Colônia, a Gazeta de Colônia, não chegava às 9.000 assinaturas. Ainda segundo o juízo de Engels, “jamais um jornal alemão, antes ou depois, teve a força e a influência da Nova Gazeta Renana, nem soube, como esta, galvanizar as massas proletárias” (ENGELS, 1976, p.171-178). Em um dos artigos de despedida, após a sua censura, podemos ler: “Os redatores da Nova Gazeta Renana vos agradecem, na despedida, pela simpatia que lhes foi demonstrado. Sua última palavra será sempre e em todos os lugares: Emancipação da classe trabalhadora!” (MARX, 2010, p.581).

Esse periódico, por décadas, serviu de modelo e referência para o movimento operário em toda a Europa. Seu esquecimento é a prova mais contundente da tentativa de domesticar a obra de Marx no interior de aparatos institucionais. Tanto é assim que, comumente, a Nova Gazeta Renana é confundida com a Gazeta Renana, jornal que Marx editou 6 anos antes, quando ainda era uma espécie de democrata de esquerda. Para se ter uma ideia da repercussão da Nova Gazeta Renana sobre o movimento operário, Trotsky se referindo ao sucesso do periódico Natchalo que editara na Rússia, diz que: “Tenho para mim que nenhum outro jornal do último meio século, se aproximou tanto como o nosso de seu modelo clássico, a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana) de Marx (1848)” (grifo nosso) (TROTSKY; 1978, p. 159). Mencionamos ainda que foi baseado na leitura da Nova Gazeta Renana e nas análises de Marx da revolução alemã presentes nesse jornal, que Trotsky desenvolvera sua teoria da Revolução Permanente e Lênin sua teoria da Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato. Esse material, portanto, influíra diretamente na Revolução Russa, quase 70 anos depois de editado.

Uma vida para e entre a classe operária
Decidido a intervir de fato nos rumos do movimento operário, a atuação de Marx nesse meio esteve longe de ser tão somente literária. Entre os colaboradores de Marx, tanto nas organizações quanto nos jornais, encontramos vários operários cujos laços ele cultivou no curso de toda sua vida. Alguns exemplos são o relojoeiro Joseph Moll, o tipógrafo Karl Schapper, o sapateiro Heinrich Bauer, o alfaiate Jonh Eccarius dentre muitos outros. Longe de uma relação distante e passiva, esses ativistas serão colaboradores políticos e amigos pessoais de Marx por décadas. São deles vários dos artigos escritos na Nova Gazeta Renana, bem como documentos e manifestos publicados nos anos que se seguiram. Será entre eles que Marx irá compartilhar sua vida. Para mencionar apenas um episódio, em fins de 1850, Marx irá empenhar o último casaco de sua esposa Jenny, o único ainda não empenhado em toda sua casa naqueles dias, para pagar o tratamento de uma doença de Eccarius, operário membro da Associação Internacional dos Trabalhadores e, também, da Liga dos Comunistas.

Dentre os intelectuais e profissionais liberais que colaboraram continuamente com Marx, todos eles, voltaram suas atividades e dedicaram a maior parte de suas respectivas vidas ao trabalho no interior das associações operárias e ao vínculo com seus movimentos e lutas que a cada dia desenrolavam. Foram, ainda, em sua enorme maioria, provados nos processos revolucionários europeus de 1848. Um caso exemplar é Wilhelm Wolff, filho de agricultores e professor particular de matemática. Foi Wolff quem divulgou em todos estados alemães a repressão e significado da insurreição dos tecelões da Silésia, primeiro levante operário que Marx entrara diretamente em contato. Liderou milicias na revolução europeia de 1848 e se ligou, posteriormente, a inúmeros ativistas da classe operária inglesa. Não sem razão, em O Capital, que Marx dedicara toda sua vida a escrever, se inicia com as seguintes palavras: “Dedicado ao meu inesquecível amigo, o corajoso, leal e nobre vanguardeiro do proletariado: Wilhelm Wolff”.

Não foi, portanto, por casualidade que ao mesmo tempo que o nome de Marx desaparecia nos círculos intelectuais europeus, aflorava, cada vez mais, nos círculos e organizações operárias. Essa opção, evidentemente, teve seu preço. Marx perdeu sua cidadania e foi expulso junto com sua família de um país para o outro: Bélgica, Colônia, por dua vezes da França até que, por fim, passou a metade final de sua vida na Inglaterra como um apátrida. Sobreviveu, quase sempre, em situação de absoluta miséria, sendo socorrido várias vezes pelo amigo Friedrich Engels. Em um episódio particularmente marcante, com todos casacos empenhados, Marx e família organizavam “festivais” de dança doméstica para aliviar o frio.

Tal situação não se deu por falta de trabalho. Além da obra volumosa, entre manuscritos e livros, Marx teve uma atividade jornalística contínua, fonte de seus parcos recursos. Foi por 10 anos colaborador fixo do jornal norte americano New York Tribune, periódico que chegou a ter 200 mil assinaturas. Para esse periódico chegou a escrever quase 500 artigos. Mesmo no caso de colaborações como essa, cujo objetivo central era a sua sobrevivência material, Marx jamais abriu mão de suas concepções. Em carta enviada ao próprio Marx pelo editor chefe desse jornal, esse relata: “Devo acrescentar que em todos os seus artigos, chegados às minhas mãos, havia sempre o mais vivo interesse pelo bem do povo e o progresso da classe operária, e que com tal objetivo escreveu você muitíssimo” (MARX, 1976b, p.2012).

Não faltaram tentativas de cooptação. Seu gênio era conhecido nos altos círculos alemães desde sua juventude. Chegou a ser sondado em uma possível colaboração com o governo ditatorial de Bismarck na recém unificada Alemanha. Bismarck queria “pôr seus extraordinários talentos a serviço do povo alemão”. Marx não apenas negou todas investidas como as denunciou publicamente.

Toda vida de Marx, portanto, esteve orientada para a organização da classe operária como cerne da luta contra o modo de produção capitalista. É tendo em vista esse objetivo que sua obra foi escrita e suas metas imediatas realizadas ou derrotadas. Não sem razão, frustrada com a recepção inicial de O Capital, sua esposa e colaboradora militante Jenny Marx, escreveu: “Se os operários tivessem noção do sacrifício que foi necessário para completar esta obra, escrita apenas para eles e em seu interesse, eles talvez mostrassem um pouco mais de atenção” (MCLELLAN, 1990, p.376). Anos depois o próprio Marx declarava que a “acolhida que O capital rapidamente obteve em amplos círculos da classe trabalhadora alemã é a melhor recompensa de meu trabalho” (MARX, 2013, p.84).

Como se vê, Marx não apenas desenvolveu toda sua obra para e no interesse histórico da classe operária, como se vinculou organicamente a ela. Não foi por acaso, portanto, que seu nome se tornou universalmente conhecido a partir dos desdobramentos da luta de classes e, com maior repercussão, da Comuna de Paris e da Revolução Russa. Ainda que, nos dias de hoje, muitos queiram domesticar o seu nome e sua obra no interior de aparatos institucionais oficiais – políticos e acadêmicos – ele estará sempre internamente ligado a luta revolucionária do proletariado pela sua libertação. Nas palavra do próprio Marx em um dos últimos combates no interior da Social democracia alemã: “a libertação da classe operária tem de ser obra da própria classe operária. Não podemos, portanto, marchar juntos com pessoas que abertamente afirmam que os operários são demasiado incultos para se libertarem a si próprios e que só a partir de cima têm de ser libertados, por grandes e pequenos burgueses benfeitores” (MARX, 2010, p.279).

Obs: O presente artigo faz parte de uma série publicada no jornal Opinião Socialista. Apresentamos para o blog Teoria e Revolução uma versão ampliada do mesmo, com as respectivas referências bibliográficas.


Bibliografia

MARX, Karl. Nova Gazeta Renana. São Paulo. Educ, 2010.

MARX, Karl. Senhor Vogt (I) . Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1976.

MARX, Karl. Senhor Vogt (II) . Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1976b.

MARX, Karl. O Capital – Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.

MARX, Karl. Circular Letter to Bebel, Liebknecht, Bracke, and others; in Marx-Engels ‘Collected Works’, Volume 24, 2010. Um tradução para o português, de má qualidade, pode ser encontra em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1879/09/18.htm

MCLELLAN, David. Karl Marx: Vida e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990.

ENGELS, F. “Marx e a Nova Gazeta Renana”, in MARX, K. e ENGELS, F. Textos , vol 2. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.

TROTSKY, León. Minha Vida: Ensaio Autobiográfico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2ª Edição, 1978.