Modernidade e pós-modernismo: continuidade ou ruptura?

Nos últimos tempos se tem feito muito alarde em torno do termo pós-moderno. As interpretações vão desde aqueles pensadores que veem no mundo após a segunda grande guerra, ou pelo menos desde o maio francês, uma nova forma de organização social, um novo período histórico, comumente designado de sociedade pós-industrial ou de pós-modernidade, até àqueles que veem no pós-modernismo uma mera corrente literária fora de moda. Em outras palavras, a questão gira em torno de se existe ou não uma ruptura entre o mundo contemporâneo e o que se convencionou chamar de modernidade.

Vários aspectos situados no escopo puramente teórico podem ser enumerados para justificar tal ruptura. A começar pela crítica da objetividade do discurso, iniciada nos primórdios da modernidade e elevada a sua mais alta expressão nos dias atuais. Segundo essa acepção, o discurso teórico não se refere às relações e coisas reais, mas a si mesmo. Tornado autônomo e um mero predicado subjetivo dos indivíduos, todo discurso se transmuta em representação ou, por vezes, em mera invenção daquele que o enuncia, aquém de qualquer universalidade e objetividade. No curso do século XX e na esteira dessa autonomização do discurso, toda e qualquer reflexão teórica de caráter histórico é igualmente negada, e noções como de sujeito histórico ou progresso histórico são relegadas à um passado moderno de ambições totalizantes e, enquanto tal, totalitárias. Por fim, a ruptura mais característica das concepções pós-modernas propriamente ditas é a crítica da razão. Em detrimento de toda elaboração voltada para compreensão racional da sociedade como um todo ou mesmo alguns de seus aspectos, se acentua a dimensão puramente subjetiva dos indivíduos como suas paixões, impulsos, prazeres, pulsões, identidades e assim por diante.

Salta aos olhos que todos estes aspectos que caracterizam a chamada “razão” pós-moderna, ainda que aqui sumariamente elencadas, se centram no indivíduo isolado a despeito de tudo o mais que se coloque em seu caminho. Ocorre que a preponderância do indivíduo sobre o social e mesmo sua pretensa autonomização, longe de ser uma tendência recente, é justamente o que distingue a modernidade europeia de todos períodos precedentes. Não sem razão, é da emergência da noção de indivíduo isolado na modernidade que nossa investigação principia. Somente assim, pensamos, pode-se estabelecer o real lugar do pós-modernismo em nossa sociedade atual. O que ele de fato expressa de novo e em que medida é apenas um novo discurso que procura justificar o mesmo.

Modernidade: alicerce do pós-modernismo
No mundo moderno, na esteira do desenvolvimento da sociedade burguesa, desenvolveu-se, pela primeira vez na história da humanidade, uma acepção de homem assentada na primazia do indivíduo sobre a sociedade. Os filósofos gregos e medievais, por exemplo, em geral, teorizavam sobre o gênero humano: “o que é o homem”, no geral, ainda que, para esses filósofos, os escravos fossem considerados aquém do gênero humano como um mero animal falante. Desse modo, mesmo no mundo grego em que primeiro se verifica um maior desenvolvimento do indivíduo e sua respectiva individualidade, os laços comunitários entre eles se mostram tão sólidos e diretamente perceptíveis que distante estamos da época em que os indivíduos pensam a si próprios como seres autônomos e portadores de uma substância singular.

É somente na modernidade que a concepção de indivíduo em sua nudez e autonomia irá se desenvolver plenamente. Tal tendência, que já aparece em filósofos modernos como Descartes e Kant, desemboca, em autores que se convencionou chamar contratualistas, em concepções de sociedade fundadas no indivíduo isolado. Estes sustentam a existência de um estado de natureza que constitui a condição natural do indivíduo no mundo, sendo a sociedade uma construção posterior somente possível em função de um contrato social, seja ele estabelecido pela força, seja pelo pacto consentido entre as partes. O indivíduo passa a ter primazia ontológica, cronológica e epistemológica sobre a sociedade.

Pelo alcance e propagação de suas respectivas teses, se reveste de particular interesse para os nossos propósitos a concepção de John Locke. Para este, o homem era por natureza livre e proprietário, tanto de si mesmo como de seu respectivo trabalho. Sendo a terra comum a todos os homens e uma dádiva de Deus, a propriedade privada emerge como um direito natural do homem, por meio da qual este havia assegurado a vida, a liberdade e os bens por meio do trabalho. A violação desse estado de natureza, isto é, da propriedade, por meio de guerras, invasões e inconvenientes de todo tipo, levaram os homens a estabelecerem um pacto social, instaurando uma sociedade política ou civil – com um corpo político único, uma legislação própria, o controle e monopólio do uso da força – tendo em vista a garantia de seus direitos naturais. Baseado nessa mesma primazia do individuo isolado, mas com distintas acepções de seu estado de natureza, desenvolveram-se as concepções contratualistas-naturalistas de Rousseau, Hobbes dentre outros.

Longe de constituir um momento solitário de um longo itinerário de reflexão sobre o homem, a acepção do indivíduo como ponto de partida da história, e dotado de uma natureza própria, tornar-se-á largamente hegemônica desde então, permeando o utilitarismo, o empirismo moderno, a Economia Política nascente e, em diversos sentidos, as principais correntes de pensamento contemporâneas.

Não sem razão, Marx denominou tais concepções de robinsonadas. Tal designação tem sua origem no romance Robinson Crusoé de Daniel Defoe. Este narra a saga de um náufrago que por décadas sobreviveu isolado em uma ilha tropical e cujas habilidades irão figurar como símbolo do triunfo do individualismo, exemplo que será explicitamente retomado por Adam Smith. Frente a esse quadro, Marx enfatiza que o “caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII” (MARX, 2011, p. 39) com os respectivos estados de natureza que lhe servem de fundamento. Põe em relevo que no “contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza independentes, não está fundado em tal naturalismo” (MARX, 2011, p. 39), antes disso, está fundada na sociedade burguesa baseada na livre concorrência em que “o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado” (MARX, 2011, p. 39).

Esse estado de natureza originário, advogado pelos pensadores contratualistas, nada mais seria do que “a aparência, apenas a aparência estética das pequenas e grandes robinsonadas” (MARX, 2011, p. 39).  Assenta-se, desse modo, na ilusão de que “indivíduo natural, conforme sua representação da natureza humana, não se origina na história, mas é posto pela natureza” (MARX, 2011, p. 40). Em outras palavras, os pensadores modernos tomaram o indivíduo, tal como se apresentam na sociedade burguesa, como a expressão atemporal e a-histórica da natureza humana. Desde então, é lugar comum procurar compreender a sociedade a partir dos indivíduos, e não mais os indivíduos a partir das sociedades no interior das quais estes se autoconstituem.

Essa aparência é possível em função da generalização do trabalho assalariado, que permite aos indivíduos se verem como livres e independentes de todos os demais. Nas formas sociais não capitalistas, os indivíduos estão umbilicalmente ligados aos meios de trabalho e às demais pessoas que integram sua comunidade e, nesse contexto, a acepção de um indivíduo isolado é impossível. O camponês está preso ao seu lote de terra assim como o artesão aos seus instrumentos de trabalho e ao sistema corporativo. Ao mesmo tempo, as relações de exploração se expressam na forma de dominação direta entre pessoas. O escravo é propriedade de um senhor, o servo se liga diretamente a um nobre. Em suma, o surgimento do capitalismo pressupõe um longo processo histórico que dissolveu os laços imediatos e diretos do indivíduo com sua comunidade e com os meios de produção, pondo-o como um indivíduo-trabalhador em sua nudez, cuja personalidade passa a ser expressa unicamente em função de suas capacidades subjetivas. Agora, o indivíduo é, por exemplo, um médico, um torneiro mecânico, um professor, um empresário independente do pertencimento a uma dada comunidade e independente da posse ou propriedade de qualquer meio de produção determinado.

Mais ainda, ao contrário de todas formas de sociedades precedentes, na sociedade capitalista a totalidade dos vínculos reais entre pessoas são mediados pela troca e a verdadeira natureza das relações sociais são obscurecidas. Antes de tudo, porque na “esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho”, aparece como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (MARX, 2013, p. 250). Em primeiro lugar, é o reino da Liberdade, pois compradores e vendedores se defrontam enquanto pessoas livres que, mediante o consentimento mútuo, estabelecem um contrato. Em segundo lugar, é o reino da Igualdade, “pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente” (MARX, 2013, p. 250-251). Em terceiro lugar, é o reino da Propriedade, “pois cada um dispõe apenas do que é seu” (MARX, 2013, p. 251). E por fim, Bentham, teórico do utilitarismo por excelência, pois a “única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados” (MARX, 2013, p. 251).

Como podemos perceber, a esfera da circulação de mercadorias, enquanto uma esfera em que “tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos”, fundamenta grande parte das concepções e ideologias burguesas que nos são tão familiares. Enquanto universo da liberdade e da igualdade, a política não aparece mais como o exercício do poder fundado diretamente pela força e legitimada nos privilégios herdados de uma descendência heroica ou nobre, mas como o acordo comum entre os cidadãos fundado no diálogo, no discurso, na comunicação. O “cristianismo com seu culto do homem abstrato é a forma de religião mais apropriada especialmente em seu desenvolvimento burguês, como o protestantismo, deísmo etc.” (MARX, 2013, p. 154) e se dissolvem as religiões assentadas no culto da comunidade, da descendência e da natureza. A ética utilitarista dos fins se sobrepõe à ética kantiana-aristotélica dos princípios e das virtudes universais. E por último, como concepção de mundo, emerge a parábola do liberalismo:

E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, a utilidade comum, do interesse geral. (MARX, 2013, p. 251)

Como se vê, o pós-modernismo encontra seu fundamento histórico nas próprias relações sociais capitalistas, na ilusão do indivíduo isolado que não dependente de mais ninguém a não ser de si mesmo. Na ilusão de que sua liberdade é afirmada na exata medida que o papel do outro é negado. Nosso período histórico, antes de expressar uma ruptura com a modernidade, antes de expressar uma nova forma de organização social dita pós-industrial, se mostra, muito mais, como a radicalização e aprofundamento da modernidade. A dita pós-modernidade é a modernidade elevada a sua mais alta expressão.

Pós-modernismo como ideologia
Extrair daí que o culto do indivíduo isolado atualmente existente, com suas múltiplas formas de representação e identidade, nada mais seria que a repetição das concepções ideológicas típicas do liberalismo clássico e da modernidade, nos parece é um erro grave. No século XIX, e mesmo na primeira metade do século XX, os múltiplos discursos teóricos-ideológicos que dão primazia ao indivíduo são, ao mesmo tempo, um discurso universal sobre a sociedade, seu progresso e seu futuro. Historicamente, tais concepções, longe de apontarem para o fim da história, expressam a luta consciente contra os privilégios de uma nobreza em decadência, mas ainda poderosa. Distantes estamos de uma concepção de mundo que, além de afirmar a noção indivíduo isolado, nega a partir disso a própria noção de sociedade, a possibilidade de conhecê-la, refugiando-se nas representações, discursos e identidades subjetivas que o indivíduo possui em sua relação consigo mesmo. Nesse sentido, por exemplo, o individualismo presente em Adam Smith e, de modo geral, no liberalismo, muito embora se assente, como anteriormente indicamos, nas mesmas ilusões provenientes da forma de organização social capitalista, em suas robinsonadas, possuem diferenças específicas bastante expressivas. Para que a questão se torne clara, cabe alguns comentários sobre o liberalismo smithiano.

O pensamento de Adam Smith em nenhum sentido contrapõe o indivíduo à sociedade. Antes disso, está fundado em uma teoria geral da história e uma teoria geral da sociedade. A mão invisível de Smith não é guiada pela intencionalidade dos indivíduos puro e simples, pelo contrário, é resultante da articulação sistemática e total da sociedade, que, segundo seu modo de entender, expressava leis naturais. Nesse sentido, não se encontra, sequer de forma latente, em Smith, a concepção de que o indivíduo é tudo e a sociedade não é nada. Ele tampouco negou a existência das classes sociais e da luta de classes, reconhecendo, inclusive, que estas decorriam das relações de propriedade ligadas à terra e o capital. Apesar disso, diferentemente de David Ricardo, para Smith, a articulação total da sociedade sob bases liberais tende a estabelecer um equilíbrio e harmonia geral da sociedade em função do crescimento da produção de riquezas e, em consequência, do barateamento dos preços que propiciariam maior qualidade de vida ao conjunto dos indivíduos. Desse modo, para Smith, apenas se atinge as leis naturais que regem a vida dos indivíduos estudando a sociedade e a história (SMITH, 2006).

Em verdade, a acepção de indivíduo do liberalismo (não apenas de Smith, mas, se quisermos, da própria escola austríaca das primeiras décadas do século XX) pouca relação tem com o fenômeno pós-moderno em sua especificidade. No liberalismo, o indivíduo é cultuado em uma perspectiva econômica, enquanto proprietário privado que atua livremente no mercado, contraposto à intervenção estatal nesse domínio. Para justificar tal concepção, o liberalismo parte de uma análise universal, racional e total da sociedade. Prega a autonomia dos indivíduos no mercado em benefício da sociedade e em nenhuma hipótese nega a participação dos indivíduos em instituições, partidos, grupos tendo em vista a intervenção na esfera pública.

Embora o liberalismo não seja necessariamente contraditório diante do individualismo pós-moderno das últimas décadas, tampouco decorre dele. O liberalismo existe (com ou sem esse nome) há mais de dois séculos, mas somente nas últimas décadas verificamos a descrença absoluta em qualquer possibilidade de progresso, de revolução social, de emancipação do homem. O individualismo contemporâneo, a nosso ver, pós-moderno, é indiferente à realização política do liberalismo e se opõe a ele como concepção.

Esse aspecto torna-se muito nítido se refletirmos, por exemplo, o discurso oficial que procurou legitimar as recentes invasões do exército estadunidense no Afeganistão e no Iraque. Diversamente da guerra do Vietnã, tal empreitada não foi justificada, em primeiro plano, pela necessidade de universalizar os valores da democracia liberal, mas sob o temor da ameaça terrorista. A guerra do Iraque e Afeganistão, cujo esforço de guerra extrapolou os quadros fixos do exército, apenas ganharam apoio popular por meio do discurso da ameaça terrorista materializada nos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Tal ameaça, insistimos, não se apoia em nenhum projeto histórico universal explícito, menos ainda em um projeto meramente liberal, mas na ameaça às liberdades individuais.

Em suma, o pós-modernismo não expressa um novo período histórico, antes disso, trata-se de uma radicalização da modernidade. No entanto, contrapõe-se às ideologias típicas da modernidade, produzindo uma nova concepção ideológica com especial penetração nos setores da esquerda. O pós-modernismo tem por fundamento o abandono de toda e qualquer intervenção voltada para a transformação de uma forma de organização social tomada em sua totalidade, de todo e qualquer projeto de sociedade. Não sem razão, a organização em partidos políticos é posta em descrédito, assim como qualquer a atuação no curso da história com pretensões universais. Ao mesmo tempo, acentuam-se e se autonomizam os particularismos de todo o tipo, cujos objetivos jamais extrapolam a livre expressão individual, mantendo a mesma forma de organização social como pano de fundo. O caminho da construção do pós-modernismo coincide, nesse sentido, com o caminho da desconstrução do marxismo, seu verdadeiro alvo e razão de ser.

 


Referências

MARX, K. Grundrisse. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2011.

MARX, K. O Capital – Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 4a ed., 2006.

Gustavo Machado

Editor do blog Teoria e Revolução.