Esta ofensiva continua, embora certamente seu auge tenha ocorrido na última década do século XX. A ideia do “fim do socialismo” causou estragos. Incontáveis organizações que se reivindicavam “de esquerda” e milhares de militantes revolucionários em todo o mundo degeneraram-se programática e politicamente, e alguns até moralmente. O “vendaval oportunista”, lamentavelmente, também atingiu partidos revolucionários que se reivindicavam trotskistas1.
Em poucos anos, tanto os princípios revolucionários quanto décadas de aprendizagem histórica da classe operária e do socialismo científico pareciam desmoronar-se. Tudo ficou “questionado”: a existência da “luta de classes”; a possibilidade de derrotar o imperialismo; não somente a possibilidade, mas também a necessidade de tomar o poder e destruir o Estado burguês pela via insurrecional; a validade da construção de partidos nacionais e de uma Internacional de tipo leninista, etc.
A maior parte da esquerda passou a assumir como “programa máximo” a tarefa de “radicalizar a democracia” por meio da “conquista de espaços” nos parlamentos e gabinetes capitalistas, tendo como missão “recuperar as instituições para o povo”.
Em meio a toda esta confusão ideológica, um dos questionamentos mais discutido nos meios marxistas – ou ex-marxistas – foi o papel do proletariado industrial como sujeito socialda revolução socialista, que, por sua vez, está ligado à questão dos sujeitos políticos.
Durante as duas últimas décadas, as teorias ou, melhor dito, a visão reformista e “pós-moderna” do mundo foi penetrando continuamente nas universidades e na própria “esquerda”, onde atualmente predomina. Milhares de ONGs e legiões de “intelectuais”, muitos deles ditos “progressistas” e até “marxistas”, assumem a tarefa de “demonstrar” a suposta “desaparição física” do proletariado industrial2, ou ao menos se esforçam para mostrar a centralidade de “novos sujeitos” nos processos políticos atuais.
Nesse sentido, a teoria da “cidadania global” teve muito eco na primeira década do século XXI. Igualmente, a palavra de ordem da direção do Fórum Social Mundial, “Outro mundo é possível”, mesmo sem derrotar o imperialismo e criticando somente o “neoliberalismo selvagem”, era quase um lugar comum na esquerda3.
O cenário político europeu é, possivelmente, a principal vitrine dessas teorias. Os imensos processos de protesto social contra os planos de austeridade protagonizados por jovens desempregados, precarizados e outros setores assalariados reacenderam a polêmica.
A intelectualidade pós-moderna respondeu a esses processos muito progressivos impulsionando a formação e o fortalecimento de novos aparatos eleitorais que, ao propor programas reformistas e mover-se completamente por dentro da institucionalidade burguesa, atuam como freio dessas mobilizações. Este é o caso do Syriza na Grécia e do Podemos no Estado Espanhol.
Foram poucos os partidos na esquerda que, nadando contra a corrente do senso comum, reconheceram o sinal progressivo das mobilizações, mas, ao mesmo tempo, alertaram quanto ao perigo mortal de confundi-las com o caráter reacionário desses novos partidos reformistas. O debate, evidentemente, continua aberto. Mas a traição descarada do Syriza na Grécia é um fato implacável na hora de dirimi-lo.
Se o Syriza, o Podemos ou o Bloco de Esquerda português eram os “novos sujeitos políticos”, autoproclamados representantes genuínos da “nova política”, o eclético dicionário pós-moderno também adicionou “novos” conceitos para proclamar os “novos sujeitos sociais”: “indignados”; “precariado”; “as pessoas”, etc.
Nenhuma definição é casual na política. Toda esta terminologia está a serviço de uma missão político-ideológica muito concreta: negar a existência de classes sociais e da luta entre elas. Em essência, a contradição principal da sociedade capitalista não seria mais a luta mortal entre a burguesia e o proletariado, mas entre “a casta” e “as pessoas”; entre os “mercados” e os “cidadãos decentes”.
É indispensável apelar à teoria marxista em tempos de confusão ideológica. Para entender o presente, é fundamental retomar o estudo sério da vasta experiência histórica de nossa classe. Também é indispensável o estudo do pensamento e das lições que os mestres do marxismo extraíram dos distintos processos políticos que presenciaram ou nos quais atuaram diretamente.
Nestas linhas não falaremos particularmente de Marx, Engels, Lenin ou Trotsky. Falaremos de Nahuel Moreno, a quem consideramos o mais lúcido e consequente dirigente trotskista do segundo pós-guerra4.
Referimo-nos, especificamente, à visão do fundador da LIT-QI sobre o tema que apresentamos acima: o papel da classe operária na revolução e a relação do partido revolucionário com o proletariado.
Consideramos importante abordar o assunto deste ângulo. Nahuel Moreno teve o mérito e a “ousadia” necessária de assinalar que o prognóstico realizado por Trotsky nas Teses da Revolução Permanente – não na Teoria –, de que a revolução socialista nos países atrasados só poderia ocorrer se fosse encabeçada pelo proletariado industrial e dirigida por um partido revolucionário, não se verificou na realidade:
As Teses afirmam categoricamente que apenas a classe operária, acaudilhada por um partido comunista revolucionário, pode levar a cabo a revolução democrático-burguesa e a expropriação da burguesia por meio da revolução socialista. Isso se revelou um equívoco. É necessário reconhecê-lo. O próprio Programa de Transição modifica levemente, com sua improvável variante teórica, as categóricas afirmações das Teses. Deve-se reconhecer que partidos pequeno-burgueses (entre eles os stalinistas), obrigados pelas circunstâncias, viram-se obrigados a romper com a burguesia e com o imperialismo para levar a cabo a revolução democrática e o começo da revolução socialista, expropriando a burguesia e inaugurando assim novos Estados operários burocratizados […] A teoria da revolução permanente é muito mais ampla que as Teses escritas por Trotsky no final da década de vinte; é a teoria da revolução socialista internacional que combina distintas tarefas, etapas e tipos de revoluções rumo à revolução mundial5.
De fato, as revoluções que expropriaram a burguesia na segunda metade do século XX não confirmaram o prognóstico das Teses escritas por Trotsky. O papel de “sujeito social” coube ao campesinato e às massas populares; o de “sujeito político” correspondeu a partidos stalinistas ou mesmo a “partidos-exércitos” com direções pequeno-burguesas e burocráticas.
Uma combinação excepcional de fatores objetivos ocorrida na ex-Iugoslávia, China, Cuba ou Vietnam obrigou e “empurrou” essas direções não operárias a ultrapassarem seus próprios limites de classe e a expropriarem a burguesia em seus próprios Estados nacionais, originando assim Estados operários burocráticos desde seu nascimento.
Esses fatos negavam a essência da Teoria da Revolução Permanente? Nahuel Moreno opinava que não. Sua conclusão foi oposta: as revoluções do segundo pós-guerra haviam mostrado não só o acerto, mas toda a força desta teoria: “A realidade foi mais trotskista e mais permanente que a previsão do próprio Trotsky e dos trotskistas”6.
A correção que Moreno fez das Teses, a partir da simples constatação de como essas revoluções aconteceram, resultou e resulta fundamental. Evitou que os trotskistas ortodoxos, ao confundirem mecanicamente o caráter “objetivo” com o “subjetivo”, o “conteúdo” com a “forma” do processo, cometessem dois erros simétricos:
Este erro impressionista foi constante na maioria da direção do conhecido Secretariado Internacional da Quarta Internacional (sendo Michel Pablo e Ernest Mandel seus principais dirigentes), no posterior Secretariado Unificado (Ernest Mandel e Lívio Maitan) e na direção do SWP norte-americano, a partir da segunda metade da década de 1970, encabeçada por Jack Barnes. Moreno explicava assim a posição deste último:
Segundo Barnes, as revoluções [do pós-guerra, que ele define como] de outubro são atualmente mil vezes superiores [à de 1917], e seus dirigentes são mil vezes superiores a Lenin e Trotsky, que eram escritores, masturbadores teóricos, literatos, imbecis, etc., que acertaram uma revolução na Rússia. Em troca, [dirigentes como Castro] são os maiores internacionalistas do mundo, porque fazem a revolução em todos os lugares e, além disso, têm a teoria justa […]. Essa é a essência da posição de Barnes7.
Em 1965, o reconhecido intelectual George Novack, um dos teóricos do SWP, chegou ao ponto de comparar Lenin e Trotsky a Fidel Castro8.
Moreno, ao contrário dessas visões mecânicas, ofereceu uma visão materialista e dialética dos fenômenos políticos do segundo pós-guerra, que não confundiu o caráter das revoluções (tremendamente progressivas) com o caráter de suas direções (contrarrevolucionárias).
Ao mesmo tempo que reconhecia nesses processos grandes revoluções e novos Estados operários que deviam ser defendidos, não incorreu no erro de “embelezar” as direções pequeno-burguesas ou apresentá-las como “revolucionárias”, nem sequer “progressivas”:“As direções burocráticas [que fizeram essas revoluções] são completamente contrarrevolucionárias e sem qualquer ‘dupla natureza’”9.
Segundo Moreno, devido a seu caráter de classe, esses dirigentes seriam inexoravelmente incapazes de enfrentar consequentemente o imperialismo e, muito menos, de implantar um regime de democracia operária. Como haviam aderido à concepção do “socialismo em um só país” e assumido todos os métodos stalinistas, desde o primeiro dia essas direções pequeno-burguesas abalaram os alicerces desses Estados operários até tornarem-se conscientemente restauracionistas e transformarem aquelas enormes conquistas em seu contrário, isto é, conduzir esses Estados operários burocráticos à restauração do capitalismo10, como terminou ocorrendo.
Apesar da clareza de seus escritos, o fato de haver constatado e extraído essas lições sobre a dinâmica entre o sujeito social e o sujeito político nas revoluções do pós-guerra fez com que algumas correntes que se reivindicam do “trotskismo ortodoxo”, como o PTS e o Novo MAS argentinos, acusassem Moreno e sua corrente – não sem uma boa dose de má-fé – de um suposto “abandono” da confiança no potencial revolucionário da classe operária.
Além disso, partidos que mantêm um curso oportunista e têm uma clara estratégia eleitoral, como o MST argentino ou o MES brasileiro, agora ligados ao Secretariado Unificado (SU), capitulam aos “novos sujeitos” tanto sociais quanto políticos (Syriza, Podemos, etc.), sem por isso deixarem de reivindicar-se “morenistas”.
É importante, então, assinalar alguns aspectos, mesmo que ligeiramente, da história da relação que a corrente morenista manteve com a classe operária.
Os primeiros anos: o GOM e a Villa Pobladora No início da década de 1940, o trotskismo argentino era composto por uma série de pequenos grupos dispersos. Sua atividade política limitava-se a intermináveis reuniões carregadas de discussões acadêmicas sobre os mais diversos temas.
O “centro” daquele trotskismo pequeno-burguês, muito boêmio e contemplativo, eram os tradicionais cafés de Buenos Aires. Nahuel Moreno caracterizou esse ambiente estéril dizendo: “entre os anos de 1940 e 1943, o trotskismo era uma festa“11.
Nesse contexto, Moreno e outros jovens fundaram o Grupo Operário Marxista (GOM) em 1943. O núcleo fundador nasceu na Villa Crespo, um bairro de Buenos Aires.
Nesse mesmo ano, Nahuel Moreno havia escrito um documento intitulado “O Partido”, que seria o precursor da nova organização e no qual se configurou uma decisão que seria determinante para nossa corrente: os membros do GOM abandonariam “a festa” dos círculos intelectuais típicos do “trotskismo de café” para ligar-se estreitamente à classe operária.
Nesse texto está escrito: “Mas o urgente, o imediato, tanto hoje quanto ontem, é: nos aproximarmos da vanguarda proletária e rechaçar como oportunista toda tentativa de nos desviar desta linha. Mesmo que se apresente como uma tarefa impossível“12.
Boris Galub, um dos fundadores do grupo, referiu-se à importância desse documento:“[…]Quando captávamos alguém ou quando falávamos, ou quando tínhamos reuniões, sempre nos baseávamos nesse documento. É claro que também líamos Lenin e Trotsky. Mas para mim esse documento foi a base, o início de tudo”13.
Munidos desta orientação, os membros do GOM foram à Villa Crespo para tentar ligar-se à classe operária, integrar-se às suas lutas e até mesmo ao seu modo de vida.
Ainda em 1943, o grupo participou do principal ato do 1º de maio. Não eram mais de cinco militantes trotskistas marchando ao grito de “Quarta…Quarta!”. A juventude do Partido Socialista atacou-os a golpes. Moreno lembraria esse episódio com simpatia: contava a história do companheiro Faraldo, que relatava como um operário, ao ver aquela coluna que gritava “Quarta…Quarta!” passar, exclamou: “É verdade… sim, são quatro”14.
Entre 1943 e 1944, o grupo percorria fábricas, participava de lutas sindicais, visitava as casas dos operários, realizava colagem de cartazes, pintava paredes com palavras de ordem políticas, editava folhetos com textos clássicos –Cadernos Marxistas, Edições Outubro –, além de elaborar os interessantes “Boletins de discussão do GOM”.
Mas foi em abril de 1945, quando a greve do frigorífico Anglo-Ciabasa irrompeu, que a primeira oportunidade de dar um salto importante se apresentou. Os jovens trotskistas meteram-se de cheio na luta daquela que, com 12.000 operários, era uma das fábricas mais importantes do país. A participação decidida do grupo permitiu-lhes ganhar quase a totalidade do Comitê de Fábrica15. Moreno contava que, a partir dessa greve, “fizemos uma espécie de comuna em Avellaneda: desviamos o trânsito e ninguém podia circular sem uma carteirinha do sindicato”16.
É ilustrativo o relato de um ativista sindical da época, Ramón “El Chueco” Britos, para entender o processo de inserção desse pequeno grupo trotskista na classe operária:
Eu era um ativista ligado ao comitê de greve que os anarquistas dirigiam […] Então, um grupo de garotos aproximou-se dizendo que eram estudantes e que queriam ajudar. Assim conheci o GOM e companheiros como Moreno, Boris, Mauricio, Abrahamcito, Rita, Daniel, Rosita e outros… Vocês sabem que o operário é meio desconfiado. E nós os olhávamos com desconfiança. Mas eu os vi se moverem, empurrar, ajudar, fazer panfletos, falar e convencer. Sobretudo, eu os vi fazer uma coisa muito rara: consultar, pedir conselho e opinião. Escutei eles dizerem, como dizia Moreno, ‘o que você acha, Chuequito…? ’ Não vinham no papel de professores. E então ganharam nossa confiança. Nos deixaram muito mais que a solidariedade com a greve. Nos ensinaram o que devia ser um partido revolucionário, e mudaram a vida de muitos de nós. Eles, o grupo de garotos do GOM, também mudaram. Ter conhecido a classe operária os levou a se ligarem ainda mais. Foi assim que, logo depois, eu aluguei a casa de Villa Pobladora, onde Moreno e outros companheiros iriam viver17.
Naquela época, a Villa Pobladora era o principal centro operário e industrial da Argentina e um dos maiores da América Latina. O GOM, além de sua intervenção na greve e nos sindicatos dos frigoríficos, passou a dirigir metade da comissão de fábrica da SIAM, a maior metalúrgica do país naquele momento. Também havia orientado a fundação de vários sindicatos importantes, como a Federação da Carne e a Associação Operária Têxtil. Dirigiam, além disso, fábricas de tubulações de cimento, do couro, etc.
Sempre com o objetivo de criar laços com as fábricas, o GOM avançou também em sua inserção naquele bairro populoso, a tal ponto que Nahuel Moreno chegou a ser presidente do clube local “Corações Unidos”, onde se organizavam desde bailes até cursos e palestras sobre as revoluções francesa e russa.
A partir deste trabalho, o pequeno grupo de quatro ou cinco companheiros passou a uma centena. Em Villa Pobladora, fazendo cursos para os operários, relacionando-se com as famílias dos trabalhadores e destacando seus membros nos sindicatos operários, construíram um singular “bastião trotskista”, erigido em meio à onda peronista que inundou o país desde 1945.
Moreno relata:
Fomos nós que dissemos que os sindicatos peronistas deveriam ser o lugar preferencial do trabalho dos trotskistas. Soubemos entender esse fenômeno decisivo. E o fizemos sem capitular, porque denunciávamos o caráter totalitário e reacionário da burocracia sindical e o controle estatal exercido sobre os sindicatos. Este acerto, na minha opinião, é a página fundamental escrita por nosso grupo e a razão principal de sua existência até hoje: ter se ligado ao movimento operário18.
A importância deste acerto é histórica. Em um meio onde o “normal” era o diletantismo nos cafés de Buenos Aires, deixar tudo para ir trabalhar e militar nos frigoríficos e nos bairros operários não era nem fácil nem comum. Os poucos membros do GOM, muitos com menos de vinte anos de idade, poderiam muito bem ter tomado outro rumo, como estudar em uma universidade, algo que na Argentina daqueles anos era muito mais fácil de conseguir que em nossos dias.
Mas escolheram outro caminho, o mais difícil. Entenderam o mais importante: entenderam que sem se ligar à classe operária não existe trotskismo. Deram o primeiro e fundamental passo que se pode exigir de um revolucionário: ser parte da classe operária. Isso é assim porque o programa do trotskismo é o programa da classe operária mobilizada. Moreno sempre insistiu que a mobilização permanente da classe operária, democraticamente auto-organizada, é a razão de ser do verdadeiro trotskismo.
Evidentemente, nossa corrente cometeu erros entre 1944 e 1948. O próprio Moreno diria depois que sua corrente sofreu um desvio “nacional-trotskista” nesses anos: o POR (Partido Operário Revolucionário), sucessor do GOM, participou do movimento trotskista internacional pela primeira vez por ocasião do II Congresso da Quarta Internacional, realizado em 1948. Também existiu um desvio “obreirista”, pois o partido não considerava a atuação em outros setores, como no movimento estudantil. Este problema foi um exagero que depois foi corrigido, apesar de ter se originado no contexto de uma orientação geral correta: ligar-se ao “mundo” operário.
O concreto é que, depois da ida à Villa Pobladora, a corrente morenista jamais se separou da nossa classe. O morenismo ficaria associado para sempre à classe operária, ao trotskismo operário.
As diferenças com a direção pablista e mandelista Nesse sentido, a batalha em todos os terrenos para que a Quarta Internacional se ligasse à classe operária foi uma constante no chamado “movimento trotskista”.
Esta foi uma polêmica permanente com a direção de Pablo e Mandel que, devido a seu caráter pequeno-burguês e às pressões dos meios intelectuais europeus, não confiavam na força revolucionária da classe operária. Desse modo, terminavam capitulando aos principais “fenômenos”, a toda “nova vanguarda” e, coerentemente, a toda direção política burocrática, pequeno-burguesa e inclusive nacionalista burguesa que dirigisse algum processo de luta importante ou uma revolução.
Primeiro capitularam ao stalinismo, impressionados com o enorme prestígio que este adquiriu a partir da derrota do nazi-fascismo e da expropriação da burguesia no Leste europeu.
A justificativa teórica foi elaborada por Pablo e apoiada por Mandel. Basicamente, começavam anunciando a suposta iminência de uma “terceira guerra mundial” entre o imperialismo norte-americano e a URSS. Em meio a esse processo inevitável, Pablo sustentava que os partidos stalinistas fariam a revolução internacional para defender os Estados operários burocratizados, fonte de seus privilégios. A revisão era completa: os principais dirigentes da Quarta Internacional outorgavam um caráter revolucionário nada menos que ao aparato contrarrevolucionário mais poderoso da história.
Coerentemente, propuseram a linha organizativa de que os partidos trotskistas da Quarta Internacional deviam “entrar” e se dissolver nos partidos stalinistas (pois estes iriam dirigir a revolução mundial), não para criticá-los, mas para “aconselhá-los” durante esse processo. O resultado foi desastroso. A Quarta dividiu-se pela primeira vez em 1953, quando um setor não admitiu essa revisão. O outro setor, que aplicou a linha do chamado “entrismo sui generis” durante 17 anos, desapareceu.
No campo político, essa teoria de Pablo e Mandel levou-os a opor-se às impressionantes mobilizações antiburocráticas que eram parte da revolução política contra as ditaduras dos partidos comunistas, realizadas pelos operários alemães em 1953. No entanto, a principal traição foi o apoio que a direção majoritária da Quarta Internacional deu ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) de Víctor Paz Estenssoro, um partido nacionalista burguês, durante a revolução boliviana de 1952.
Enquanto o trotskismo revisionista claudicava ora ao stalinismo, ora ao nacionalismo burguês; a Tito; a Mao; à direção castro-guevarista e sua orientação foquista para a América Latina; à vanguarda estudantil radicalizada surgida durante o Maio francês; ao eurocomunismo e ao sandinismo; a corrente orientada por Moreno, embora minoritária, orientou-se no sentido oposto e não economizou esforços para se inserir no movimento operário, em seus locais de trabalho, postulando-se sempre como uma alternativa de direção revolucionária para suas lutas.
Em 1984, Moreno explicava a uma nova camada de dirigentes partidários a força das pressões causadas pelas “modas” dos anos de 1960 e 1970, mil vezes mais poderosas que as atuais:
No início da década de 60, todo mundo lia Che Guevara e Frantz Fanon. Nós parecíamos loucos: éramos os únicos que dizíamos que a classe operária não é oligárquica e aristocrática. Eles diziam que é preciso fazer revoluções contra ela: “É necessário apoiar-se nos povos atrasados. A revolução vai do campo à cidade; dos países atrasados aos países adiantados. Deve-se varrer a classe operária: no início do século foi revolucionária, mas agora não, é aristocrática, é comprada com geladeiras, pelo conforto”. E nós dizíamos: “Não senhor” […]. Dissemos, então, “a classe operária vai se mobilizar”. E mobilizou-se. Em 1968, sete ou oito anos depois das polêmicas com Che Guevara. […] Em sete ou oito anos ficou demonstrado que tínhamos razão. Hoje ninguém mais fala disso. Já se esqueceram até do próprio Che Guevara: não é o ídolo de vocês. Nos anos 60, Che Guevara era um deus. Desfilava-se com seu retrato. Agora nem se fala dele. Toda sua teoria demonstrou-se falsa. Hoje em dia, ninguém lê Frantz Fanon tampouco, mas há vinte anos eu tinha que polemizar a fundo contra Frantz Fanon e Guevara em qualquer curso: a classe operária vai lutar, vai lutar. Nossa verdadeira razão de ser é a luta pela democracia operária19.
No início da década de 60, todo mundo lia Che Guevara e Frantz Fanon. Nós parecíamos loucos: éramos os únicos que dizíamos que a classe operária não é oligárquica e aristocrática. Eles diziam que é preciso fazer revoluções contra ela: “É necessário apoiar-se nos povos atrasados. A revolução vai do campo à cidade; dos países atrasados aos países adiantados. Deve-se varrer a classe operária: no início do século foi revolucionária, mas agora não, é aristocrática, é comprada com geladeiras, pelo conforto”. E nós dizíamos: “Não senhor” […].
Dissemos, então, “a classe operária vai se mobilizar”. E mobilizou-se. Em 1968, sete ou oito anos depois das polêmicas com Che Guevara. […] Em sete ou oito anos ficou demonstrado que tínhamos razão. Hoje ninguém mais fala disso. Já se esqueceram até do próprio Che Guevara: não é o ídolo de vocês. Nos anos 60, Che Guevara era um deus. Desfilava-se com seu retrato. Agora nem se fala dele. Toda sua teoria demonstrou-se falsa. Hoje em dia, ninguém lê Frantz Fanon tampouco, mas há vinte anos eu tinha que polemizar a fundo contra Frantz Fanon e Guevara em qualquer curso: a classe operária vai lutar, vai lutar. Nossa verdadeira razão de ser é a luta pela democracia operária19.
Esta confiança e esta opção pelo movimento operário expressavam-se coerentemente no interior do partido. Moreno, ao discutir com a maioria do SU, explicava o peso dos operários na direção do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) argentino, em detrimento dos intelectuais e profissionais liberais:
[…] tomando os cem dirigentes mais importantes da seção francesa e da direção do PST, para cada 20 ou 30 doutores e professores na seção francesa, há um em nosso partido argentino. Concretamente, em nosso Comitê Central de 120 membros há apenas 3 membros com profissões liberais, havendo quase 100 profissionais do partido, dos quais 80% foram dirigentes do movimento operário. O Comitê Executivo, a máxima direção de nosso partido, com exceção de quatro companheiros, é em sua totalidade formado por militantes profissionais que foram importantes dirigentes do movimento operário. Finalmente, há uma tradição em nosso partido, que o vertiginoso crescimento atual nos impede de aplicar ao pé da letra, que estipula que ninguém pode chegar à direção sem ter cumprido dois anos de atividade destacada como militante profissional no seio do movimento operário20.
Moreno explicava o porquê dessa obsessão: “O trotskismo empalma com o proletariado e só com ele. (…) Seu programa é essencialmente operário. É o programa que a classe operária deve aplicar para conduzir todos os explorados do mundo. Por isso, o trotskismo acompanha ao proletariado como a sombra ao corpo”21.
Essa é a compreensão teórico-política que sempre orientou os militantes morenistas. Sua educação estava baseada na compreensão de que deviam estar sempre ao lado de nossa classe e forjar, a partir das lutas mais importantes, uma direção revolucionária em seu interior.
O partido ligou seu destino ao da classe operária desde o início. Moreno educou várias gerações de militantes na convicção de que, sem a participação protagonista da classe operária, toda revolução, inclusive as que conseguem expropriar a burguesia e romper com o imperialismo, está condenada ao isolamento e ao retrocesso.
Morenismo é sinônimo de obsessão por se ligar à classe operária Aferrando-se a esta concepção, os partidos nacionais foram sempre orientados a concentrar esforços e recursos para intervir no movimento operário.
A própria debilidade ou uma determinada situação da luta de classes e/ou do movimento sindical certamente fizeram com que, às vezes, fossem aplicadas outras táticas, como a construção, por certo período, no movimento estudantil, ou mesmo no campesinato. Mas isso sempre foi considerado “tático”, um movimento necessário para reduzir a distância entre o partido e o movimento operário.
Na história do morenismo, além do caso argentino e sua experiência na época do PST e do velho MAS, pode-se citar o exemplo dos jovens militantes colombianos que foram intervir nas concentrações operárias de seu país. Ou o caso do partido espanhol, quando concentrou suas forças em Getafe, um dos mais importantes centros industriais de Madri. Também fica a experiência do grupo de jovens, muitos deles oriundos do movimento estudantil, que, no fim da década de 1970 e alguns anos antes do surgimento do fenômeno Lula e do PT brasileiro, lançou-se com audácia para intervir no processo de lutas operárias do ABC paulista, o imenso complexo industrial de São Paulo. Ali participaram de sindicatos e dirigiram oposições contra a burocracia sindical, antes e durante o processo de fundação do PT e da CUT, central operária onde as teses defendidas pelos trotskistas da Convergência Socialista nunca tiveram uma influência menor que 10% dos delegados.
Uma lição de ferro: não existem atalhos Em nossos dias, existe uma fortíssima pressão para afastar os partidos revolucionários da classe operária e aproximá-los dos “novos” fenômenos sociais e políticos, enfim, das “modas” atuais. Há alguns anos existiu uma enorme pressão para tornar-se “chavista” e, agora, para apoiar politicamente o Syriza ou o Podemos.
Mas isso não tem nada de “novo”. Essencialmente, é a mesma pressão que sentiram – e à qual se curvaram – os antigos dirigentes do SU e do SWP, quando se “impressionavam” com Castro, Guevara ou com o sandinismo.
É a conhecida pressão para não “se isolar”, não “perder o trem da história” e, atuando assim, poder “romper com a marginalidade”.
Nesse sentido, Moreno deixou um imenso legado. Ninguém que conheça sua obra e sua trajetória pode dizer que ele não queria encontrar o “caminho das massas”. Mas essa batalha para se ligar aos processos vivos da luta de classes e para construir o partido e a Internacional nunca significou um afastamento dos princípios, do programa revolucionário ou da classe operária. Para “chegar às massas”, Moreno não se tornou peronista, castrista, guevarista, eurocomunista ou sandinista.
Isso não significa que Moreno fosse imune às pressões do movimento de massas e dos aparatos que o controlavam. Ele mesmo, tentando educar metodologicamente o partido, não se cansava de reconhecer publicamente seus erros e desvios, pois estava convencido de que essa era a única forma de encarar seriamente uma retificação. A história de nossa corrente é a história de seus erros, dizia. Para citar apenas um exemplo: nos primeiros anos da revolução cubana, Moreno chegou a expressar simpatia pelo fenômeno castrista e teve expectativas na evolução e na ação política da direção cubana. Depois corrigiu suas posições equivocadas e pôde extrair lições deste processo e caracterizar definitivamente seus dirigentes.
O “peculiar” em Nahuel Moreno, como nos grandes mestres do marxismo, não era algum tipo de garantia de “infalibilidade”, mas sua capacidade de autocriticar-se e corrigir suas opiniões, sempre tendo em mente aquilo que seria melhor para o movimento operário e o partido. Nesse sentido, o fato de ter podido superar essas pressões fez com que a confiança de Moreno na força criadora de nossa classe se reforçasse ainda mais à luz da experiência. Compreendeu que não existem “atalhos” até o poder, que sem a classe operária a ditadura revolucionária do proletariado não é possível, nem a estratégia da revolução mundial.
Esta lição, indispensável para nossos dias, ficou imortalizada pouco antes de sua morte em janeiro de 1987:
Não há forma de enganar o processo histórico e de classe […] Me refiro ao caráter de classe. Nós tentamos dirigir o proletariado, jamais nos afastamos dele. Isto não é declamatório, é uma política internacional de classe que decorre de uma análise teórica profunda. Nenhuma artimanha política resolve. De nada serve mentir, dizer ao campesinato que somos camponeses, com o objetivo de fazer uma revolução operária. Se a classe operária não nos segue, não chegamos a lugar algum. Nos burocratizamos, capitulamos ao campesinato. É inconcebível fazer a revolução proletária sem o proletariado […]. Ao longo de minha vida política, depois, por exemplo, de olhar com simpatia o regime que surgiu da Revolução Cubana, cheguei à conclusão de que é necessário continuar com a política revolucionária de classe, mesmo que postergue nossa chegada ao poder em vinte ou trinta anos, ou o que for. Nossa aspiração é que seja a classe operária que chegue verdadeiramente ao poder, por isso queremos dirigi-la22.
Não há forma de enganar o processo histórico e de classe […]
Me refiro ao caráter de classe. Nós tentamos dirigir o proletariado, jamais nos afastamos dele. Isto não é declamatório, é uma política internacional de classe que decorre de uma análise teórica profunda. Nenhuma artimanha política resolve. De nada serve mentir, dizer ao campesinato que somos camponeses, com o objetivo de fazer uma revolução operária. Se a classe operária não nos segue, não chegamos a lugar algum. Nos burocratizamos, capitulamos ao campesinato. É inconcebível fazer a revolução proletária sem o proletariado […].
Ao longo de minha vida política, depois, por exemplo, de olhar com simpatia o regime que surgiu da Revolução Cubana, cheguei à conclusão de que é necessário continuar com a política revolucionária de classe, mesmo que postergue nossa chegada ao poder em vinte ou trinta anos, ou o que for. Nossa aspiração é que seja a classe operária que chegue verdadeiramente ao poder, por isso queremos dirigi-la22.
Notas: