O presente artigo tem por objetivo apresentar dois aspectos fundamentais do pensamento de Karl Marx: a revolução mundial e a possibilidade de tomada do poder pela classe trabalhadora. Além disso, procuramos refletir sobre a existência de uma teoria das etapas da revolução na elaboração de Marx. Para tal, tomamos os artigos desenvolvidos pelo autor nos anos de 1848-1849, que compõe o jornal A Nova Gazeta Renana (NGR). Destacamos, em particular, o fato de que a analise de Marx não se detêm nos limites nacionais dos eventos em questão, enfocando o seu caráter universal sem perder de vista as especificidades de cada nação imersa no processo. Para tanto, optamos por fazer emergir a própria elaboração de Marx para colocar em destaque um período tão importante de sua elaboração
O movimento revolucionário desenvolvido entre os anos de 1848 e 1849 é o ponto culminante de um longo processo de gestação de novas relações sociais. Essa nova forma de sociedade não é característica de um país em particular, mas de todo um continente, que caminha rumo à novas formas de dominação e exploração. Essa universalidade perpassa a análise de Marx no que diz respeito aos processos em curso e é um elemento central para a compreensão do posicionamento do autor alemão. Isso porque os eventos instaurados na Europa possuem tamanho interconexão entre si que isolá-los significa apreendê-los em sua forma parcial e unilateral.
Apesar de centrar sua análise em dois países, França e Alemanha, Marx apreende a dinâmica da revolução europeia por identificar que a transformação social não pode acontecer no mero âmbito nacional se essa pretende superar o capital e atingir a emancipação da classe trabalhadora. E o caráter universal dessa revolução faz com que as análises especificas de Marx reflitam as relações no campo mais geral entre as nações. A França e a Alemanha expressam o contraponto desse movimento: enquanto uma reflete a contemporaneidade dos eventos, a outra é a expressão do antigo.
Na França, o embate entre proletariado e burguesia se efetiva pela primeira vez. A classe trabalhadora compreende quem é o agente de sua exploração e, justamente por isso, a possibilidade de sua real emancipação apresenta-se concretamente na realidade. E, ao se desenvolverem esses elementos, não apenas sua libertação, enquanto classe nacional, se coloca como alternativa, mas se abre também a possibilidade de emancipação de toda a Europa.
A libertação da Europa, seja a insurreição das nacionalidades oprimidas por sua independência, seja a derrubada do absolutismo feudal, é condicionada pela insurreição vitoriosa da classe trabalhadora francesa. Mas toda transformação social francesa choca-se necessariamente contra a burguesia inglesa, contra o domínio industrial e comercial da Grã-Bretanha. Toda reforma social parcial na França, e no continente europeu em geral, é e permanece, por mais que pretenda ser definitiva, um vazio voto piedoso. E a velha Inglaterra só será derrubada por uma guerra mundial, único evento que pode oferecer ao partido cartista, o partido organizado dos trabalhadores ingleses, as condições para uma insurreição bem-sucedida contra seu poderoso opressor. (MARX, 2010, p. 368)
A possibilidade de tal impacto da revolução francesa na Inglaterra, e na Europa, se deve a alguns fatores presentes na realidade naquele momento, um deles é o próprio caráter da sociabilidade capitalista. Em seu desenvolvimento, ela exige a ampliação de seus domínios, a constituição de um mercado que abarque o conjunto das nacionalidades como processo necessário para seu desenvolvimento. No século XIX, a Inglaterra é um império cuja influência se faz notar nos demais continentes. Outro fator está relacionado ao próprio desenvolvimento histórico. Em um dado momento o surgimento do capital na Europa é um marco que impulsiona essa forma societária para diversos países europeus e não europeus e, com isso, qualquer possibilidade de ruptura e transformação que se abre no interior dessa mesma organização social tende a se expandir. Neste caso, a possibilidade de ruptura posta pela França avança para além de suas fronteiras.
A apreensão deste movimento histórico possibilita a Marx compreender à fundo a dinâmica da revolução, concebendo o papel que a classe trabalhadora de cada nação cumpre no interior dos processos em curso. No entanto, pode-se questionar: se os embates não são simplesmente nacionais, porque a Alemanha tem um papel tão preponderante nas análises encetadas por Marx? Justamente pelo fato de ser o ponto oposto ao desenvolvimento francês além de o nosso jornal, como é evidente, ser editado em solo alemão.
Se a França está na ponta do desenvolvimento histórico, a Alemanha está aquém de sua época por possuir uma burguesia débil, incapaz de levar adiante as ações que culminam em sua dominação. Levando-se em consideração as especificidades das relações sociais na Alemanha, como afirmar a universalização dos processos históricos no interior do continente europeu? Talvez, esta resposta seja uma das maiores conquistas teóricas de Marx a partir de suas análises, que se iniciam em 1848 e culminam em 1850, em textos como Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas.
A gestação da sociabilidade capitalista se processa na Europa há alguns séculos e justamente naquele momento histórico, ela assume características universais, as quais não havia mais possibilidade de retroceder. A Alemanha, mesmo se encontrando aquém no processo de desenvolvimento das relações burguesas, está imersa nesse processo e em seu interior as relações sociais se modificam, impossibilitando a permanência da dominação feudal. E são essas novas relações sociais que permitem sua própria superação, a relação capital-trabalho gera, na própria realidade, um antagonismo que só é passível de superação via revolução. Além disso, se constitui um novo agente revolucionário – a classe trabalhadora. Se até o século XVIII a burguesia é a força catalizadora e propulsora da revolução, com a consolidação de novas relações esse papel é do proletariado, e as jornadas de junho são a prova desse novo protagonismo. Mesmo na Alemanha, retardatária no processo de consolidação do capital, a classe trabalhadora se coloca à frente, ainda que a burguesia não faça valer o seu protagonismo. Isso porque, além de sua inaptidão, não pode mais efetivar uma revolução democrática, dado que significa a possibilidade de uma revolução dos trabalhadores. “A parte comercial e industrial da burguesia se lança nos braços da contrarrevolução por medo da revolução. Como se a contrarrevolução não fosse apenas a abertura da revolução.” (MARX, 2010, p. 395)
A forma societária capitalista possibilita a organização da classe trabalhadora enquanto classe e consequentemente possibilita o embate rumo à emancipação, uma vez que em nenhuma outra forma de sociedade se obteve tamanhas conquistas democráticas que permitem a livre organização e a livre expressão. Além do mais, a sociedade capitalista desenvolve bases nas quais é possível se erguer uma nova sociabilidade. Mas cumprir as tarefas democráticas, extirpar os resquícios feudais não são mais tarefas da burguesia, uma vez que esta não pode mais cumprir tais ações, pois, a consolidação do proletariado como agente de transformação impede a burguesia de tomar para si o protagonismo revolucionário. A pressão pela transformação social, pela emancipação proveniente dos trabalhadores, a paralisa e faz recuar, já que um processo revolucionário que se estabelece é a brecha para sua própria derrocada. Assim, cabe aos trabalhadores assumir o papel histórico e conduzir às conquistas democráticas:
A burguesia prussiana não era como a burguesia francesa de 1789, a classe que, diante dos representantes da antiga sociedade, da monarquia e da nobreza, encarnava toda a moderna sociedade. (…) sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de ideias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia em nenhum sentido, plagiadora em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si mesma, sem fé no povo, sem missão histórico-mundial – um ancião maldito que se via condenado a dirigir e a desviar, em seu próprio interesse decrépito, as primeiras manifestações da juventude de um povo robusto (…)(MARX, 2010, p. 325).
Por mais que a burguesia alemã não tenha realizado uma revolução que concretize seus interesses enquanto classe, ela não mais possui um projeto de transformação social que abarque toda sociedade, uma vez que seus interesses não aparecem mais como os interesses de toda sociedade. Sua missão, que se coloca como uma missão universal nos demais processos, naquele momento se restringe apenas a seu próprio interesse enquanto classe. E essa transformação acontece, justamente, pelo desenvolvimento da classe trabalhadora. Os interesses de ambas são inconciliáveis, tornando-se impossível que os seus, em particular, apresentem-se como interesses universais. A abertura de um processo revolucionário ameaça a burguesia por dois lados; de um lado a possibilidade da derrota para a aristocracia feudal, por outro para os trabalhadores. Porém, a derrota para o proletariado significa o fim de sua dominação enquanto classe, assim a burguesia não mais se apresenta como classe revolucionária, procurando resguardar seu poder. E, nessa mudança, o proletariado assume a “missão histórico-mundial” ao lutar pela sua emancipação.
A concepção de revolução social-republicana é desenvolvida por Marx justamente para corroborar sua análise sobre a revolução europeia. Se em 1848 novas relações são estabelecidas e o proletariado torna-se a nova força revolucionaria no interior da sociabilidade capitalista, a revolução burguesa não é mais possível, a história, em seu desenvolvimento, encerra tal possibilidade para a própria burguesia.
É curioso perceber que o movimento alemão gera a possibilidade de compreensão da universalidade da revolução do operariado que se inicia na França, mas, que na Alemanha se consolida devido ao atraso interno desse país. A traição da burguesia para com o campesinato e a pequena burguesia, justamente por não agir revolucionariamente, os lança para junto do proletariado, reforçando o novo movimento insurrecional que se abre, colocando os interesses dos trabalhadores como os interesses das demais classes. Nesse momento, são os operários que podem levar adiante as tarefas republicanas.
Os pequeno-burgueses e camponeses, e especialmente o proletariado, poderiam encontrar uma forma de estado melhor do que a república democrática para a representação de seus interesses? Não são exatamente estas classes as mais radicais, as mais democráticas de toda a sociedade? Não é exatamente o proletariado a específica classe vermelha? (MARX, 2010, p. 395)
É importante perceber que no interior da NGR, Marx não faz uma distinção entre República Democrática e República Vermelha. Ao longo do jornal, defende a República Vermelha como a alternativa dos trabalhadores e no final, de forma emblemática afirma que a República Social é o espírito do jornal “ e a alma da Revolução de Junho não era a alma de nosso jornal?” Apesar da especificidade do caso alemão, a concepção de governo dos trabalhadores também se aplica a esta realidade, pois, apesar de implementar medidas características de um governo burguês, estas estão a serviço da emancipação da classe e não dissociadas de seus interesses particulares e logo, de toda a sociedade, assim como na República Vermelha francesa ou de qualquer país no qual os trabalhadores realizem uma revolução.
Portanto, é evidente para qualquer leitor atento, que para Marx não existe uma relação necessária no desenvolvimento das formas societárias existentes no interior da Europa. Por percorrer seu objeto de análise, faz aflorar suas determinações próprias captando seu movimento próprio. A conclusão, neste caso, é que não existe qualquer indício que nos conduz à conclusão de que é necessário o desenvolvimento da sociabilidade burguesa para que ocorra a tomada do poder por parte dos trabalhadores. Neste sentido, o caso alemão é sintomático. A ascensão do proletariado ao poder não requer, obrigatoriamente, uma revolução burguesa precedente, muito menos o desenvolvimento da sociedade capitalista por parte destes. A possibilidade de supressão do capitalismo se abre pelo próprio desenvolvimento das relações internas do caso em questão e não por se tratar de uma etapa inerente ao desenvolvimento humano.
Mas isso não significa dizer que Marx não reconheça a importância do desenvolvimento capitalista no interior das relações entre classes. Mesmo que não exista qualquer prescrição da efetivação da revolução burguesa para se iniciar o processo de emancipação dos trabalhadores e consequente emancipação social, é na sociedade capitalista que essa possibilidade se apresenta enquanto tal uma vez que essa forma societária gera um antagonismo inconciliável entre classes, pois é um dado constitutivo de seu desenvolvimento.
E mais, ao compreender o caráter distintivo de uma dada sociabilidade, apreende as características que podem ou não favorecer aos trabalhadores. Ora, o capitalismo se constitui de tal maneira que produz condições para a emancipação dos trabalhadores, e além disso, condições para sustentar essa nova forma societária, para que ela não fracasse em sua gestação.
Logo, em nenhum momento nos é apresentada uma concepção unilateral de progresso no interior do desenvolvimento humano. Para encontrar essa noção em Marx, inclusive, é necessário encontrar também uma hierarquização das formas sociais, um télos que nos conduza de uma à outra forma societária até a atualização na atual sociedade, e tal compreensão não é passível de detecção em suas linhas. O reconhecimento da existência de uma transformação social e a eleição de uma dada característica como superior provém do posicionamento de nosso autor que explicitamente defende a emancipação da classe trabalhadora.
Assim, fica patente que a percepção de Marx acerca dos limites da revolução burguesa, além dos apontamentos realizados sobre a sociedade capitalista, partem da compreensão dos fatores constitutivos das relações específicas desta formação histórico-social, sem que haja qualquer indicio da presença de uma teoria do progresso histórico, assentada em uma filosofia das etapas históricas, como muitos já supuseram até hoje.
Bibliografia:
MARX, Karl. A Nova Gazeta Renana. Trad. Lívia Cotrim, São Paulo: Educ, 2010.
______. & ENGELS, F. Collected Works, volumes 7 a 9 (NGR), Moscou: Progress Pubblishers, 1977.
______. & ENGELS, F. La Nouvelle Gazette Rhénane. Tomos I a III, Paris: Éditions Sociales, 1963-71
______. & ENGELS, F. Nueva Gazeta Renana. Trad. León Mames. Barcelona: Grupo Editorial Grijalbo, 1979.
______. & ENGELS, F. Sobre la revolución de 1848-1849: Articulos de “Neue. Rheinische Zeitung”. Moscou: Editorial Progresso, 1981.