No debate político há termos que de tão ordinariamente empregados parecem ter significado óbvio, sem necessidade de maior reflexão sobre eles. Esquerda é um deles. Entre os movimentos de oposição ao presidente Michel Temer, todos se identificam como de esquerda. A direita está no governo. Contudo, a aparente simplicidade oculta questões bastantes profundas como se verá a seguir.
Alguns significados
Os termos direita e esquerda, como se sabe, qualificaram originalmente os lugares ocupados no parlamento pelos setores conservadores (a direita) e os setores mais revolucionários da burguesia e pequena-burguesia (a esquerda) da França revolucionária do final do século XVIII.
Essa definição bastante genérica obviamente ganhou novos conteúdos dados pela luta de classes e chegou ao vocabulário atual com a carga das grandes experiências políticas do século XX e XXI. Isso está refletido nas análises dos fenômenos sociais do período.
Eric Hobsbawm, por exemplo, fala de uma esquerda no pós-Segunda Guerra que incluía até humanitários liberais e social-democratas moderados((Hobsbawm, E. p. 424)) Também usa a variação esquerdista para qualificar certo tipo de golpes militares comuns na América Latina e no mundo islâmico. Na Europa haveria o exemplo de Portugal em 1974((Hobsbawm, E. p. 425)), na Revolução dos Cravos.
Por sua vez, Jacob Gorender propõe uma definição genérica:
“…esquerda [é] o conceito referencial de movimentos e ideias endereçados ao projeto de transformação social em benefício das classes oprimidas e exploradas. Os diferentes graus, caminhos e formas dessa transformação social pluralizam a esquerda e fazem dela um espectro de cores e matizes.”((Gorender, J. p. 07))
Vindo de outra tradição, Michael Löwy classifica todos os governos latino-americanos de frente popular recentes de esquerda. De um lado, haveria os social-liberais como o do PT no Brasil, e do outro, os antioligárquicos, antineoliberais e anti-imperialistas, como o venezuelano((Löwy, M. p. 62)).
Por fim, lembremos que em Lênin e Trotsky o uso dos conceitos em análise foi feito de forma bastante bem delimitada. Direita, esquerda e centro somente eram usados no contexto dos debates políticos internos ao partido((Zacarias, C. Ver referências.)). Ou pejorativamente, como no caso da variante esquerdismo. Em todo caso, diferentemente dos exemplos citados acima, não se tratava de qualificar as lutas entres duas forças sociais com projetos políticos antagônicos.
À exceção dos dirigentes bolcheviques, para os demais autores no espectro da esquerda a diferença fundamental são os meios para mudar dada realidade social, não os objetivos de longo prazo. Haveria esse denominador comum entre tradições políticas tão diversas quanto comunismo, liberais com preocupações sociais, anarquistas, setores nacionalistas das forças armadas.
O embate entre esquerda e direita não é a luta de proprietários contra os não-proprietários dos meios de produção. Mas sim o enfrentamento entre campos de valores: de um lado, tudo o que é considerado progressista, democrático burguês mais ou menos radical, simpático às liberdades individuais e coletivas, é igualado à esquerda. Tudo o que é conservador, retrógrado, determinado a manter a ordem, ligado à direita.
Unificar inimigos
Como se vê, a noção de esquerda se aproxima da de progresso. Sob esse ponto de vista bastante genérico, cabem programas que a princípio são conflitantes teórica e politicamente, mas que estariam unidos – e efetivamente se uniram em certas ocasiões na história – por algum projeto comum contra determinada ordem vigente. No Chile de Allende, por exemplo, o inimigo de Pinochet foi “a esquerda unida de socialistas, comunistas e outros progressistas – o que a tradição europeia (e aliás a chilena também) conhecia como ‘frente popular’ “((Hobsbawm, E. p. 429)).
Fica legitimada dessa maneira a unificação política entre classes irreconciliavelmente antagônicas. As frentes populares são por excelência os grandes exemplos históricos de unidade da esquerda com um projeto de poder em comum, no qual se unem direções de frações da classe trabalhadora e da burguesia.
No Brasil não foi diferente. Na verdade é um dos eixos mais persistentes entre as organizações dos trabalhadores e setores médios auto-identificadas com a esquerda. O exemplo mais acabado disso é o Partido dos Trabalhadores e seu socialismo nunca muito bem definido((“A plasticidade barroca do discurso petista sobre socialismo não era produto só de nossas tradições políticas de circunlóquios. O que separava o PT da Social-Democracia não era uma prática política, e sim uma ideologia. O PT recusava-se a conceber o socialismo como produto da evolução econômica do capitalismo ou a aceitar a ideia de Bernstein de que a finalidade era nada e o movimento era tudo. No entanto, o Primeiro Congresso fez uma declaração de respeito às instituições ao afirmar que ‘Democracia, para nós, é meio e fim’. Bem, a frase era de Bernstein”. SECCO, L. p.173.)). Mas o PT e a o reformismo brasileiro contemporâneo em geral não inovam nisso, sendo herdeiros de uma tradição que nasceu com o antigo PCB.
Campos, estratégia e luta de classes
Esquerda é, portanto, um campo político. Não necessariamente de classe como vimos. Esse campismo é parte importante da história dos movimentos operários e dos trabalhadores.
Segundo Nahuel Moreno, se origina contemporaneamente na teoria menchevique da revolução russa. Na luta anti-czarista do proletariado, seria admitido o apoio do partido cadete, representante político da burguesia liberal. Mais do que isso: os primeiros deveriam se subordinar à direção dos segundos, a quem caberia cumprir as tarefas democráticas da transformação social naquele país.
Mas o campismo ganhou inúmeras roupagens posteriores, com Stálin, Mao Tsé-Tung, Michel Pablo e Pierre Lambert. Ou seja, esta concepção atravessou a fronteira do stalinismo, influenciando setores importantes do próprio trotskismo.
No lugar dos campos mencheviques, Moreno propõe adotar o aparato conceitual tradicional de luta entre burgueses e proletários. Retomando o ponto de vista leninista e trotskista nos debates sobre a Revolução Russa, fala de dois campos liderados por cada uma das classes fundamentais. “Um desses campos é o contra-revolucionário, integrado pelo czarismo, os latifundiários toda a burguesia, incluídos os setores liberais ‘anticzaristas’. O outro, revolucionário, é integrado pela classe operária, os camponeses e todos os explorados”((Moreno, N. p. 06)).
Vale notar que a construção deste campo revolucionário na Rússia foi descrito por Lênin não como a unidade entre grupos políticos, mas acima de tudo com unir os setores de classe citados por Moreno.
Essa relação, ao contrário do que se poderia supor, não foi pré-condição para a tomada do poder pelos bolcheviques. Em uma das descrições que faz deste processo, o líder bolchevique explica que na realidade o assalto ao Estado promovido pela classe operária é que teria sido condição para atrair o apoio massivo dos camponeses((Lênin, V.I. Texto referido ao final.)).
A razão é simples: somente com o aparato estatal na mão, o partido e a classe poderiam tomar medidas que provassem na prática aos demais explorados e oprimidos que valia a pena abandonar as ilusões em qualquer alternativa burguesa. É sob esse ponto de vista que Lênin explica, por exemplo, a medida de impacto do novo governo ao nacionalizar as terras.
Os limites do conceito
O problema teórico-prático começa quando, como se faz abusivamente no debate político brasileiro, esquerda e direita são explicitamente ou não tornados sinônimos de proletariado e burguesia. Isso é herança dos campismos de todo tipo mas, no caso do Brasil, possivelmente a origem mais imediata sejam as elaborações do PCB sobre a revolução brasileira.
Em nossa opinião, utilizar o conceito de esquerda – por conseguinte de direita – é válido quando não se trata do conflito entre proletariado e burguesia. É possível, por exemplo, descrever a trajetória de determinado partido afirmando que “foi à direita” ou “foi à esquerda”.
Contudo, aqui surge aquela que é a questão decisiva: o arco de alianças estratégicas definido pelo campo. Uma força política ir à esquerda não indica que se aproxima de compor o campo revolucionário, cuja missão histórica é expropriar a burguesia. Para tomar o mesmo exemplo: o petismo pode zigue-zaguear à vontade, alternando paralisia e luta, e isso não o fará necessariamente sair do campo contra-revolucionário.
Até uma figura que não causa dúvida em ninguém sobre qual classe representa, como Fernando Henrique Cardoso, pode “ir à esquerda” e defender a legalização da maconha por exemplo. Haverá quem diga: “isso já é um exagero!” Mas permanecemos plenamente no campo de possibilidades que o conceito oferece.
A classificação adequada, portanto, precisa relacionar interesses de classe com suas cristalizações em organizações políticas. Assim, o correto é tratá-las por marxistas, centristas ou reformistas. Em todos esses casos, poderemos ver oscilações “à esquerda” e “à direita”.
Por fim, esquerda como sinônimo combinado de valores progressistas e proletariado só faz sentido no âmbito de um tipo determinado histórica, teórica e politicamente de programa da revolução brasileira: o democrático-popular. A esmagadora maioria da esquerda faz uso desse referencial, caso das diversas correntes do PSOL e outros grupos menores. O caso mais emblemático é obviamente o PT.
Curioso é que um aspecto quase consensual entre vários analistas da esquerda da falência política petista é a conciliação de classes. Mas os mesmos que dizem isso, quando se propõe a unificar a esquerda forçosamente atualizam o projeto da conciliação sob a forma de novas frentes-populares em potencial ao retomarem os campos não só sem limites de classe, mas também sem fronteiras de estratégia.
Referências
BIONDI, Pablo. O caso Lula e a mecânica do campismo. Em: http://armadacritica.blogspot.com.br/2016/09/o-caso-lula-e-mecanica-do-campismo_15.html. Consultado: 16/09/16.
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos – o breve século XX São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LÊNIN, V. I. As Eleições para a Assembleia Constituinte e a Ditadura do Proletariado. Dezembro de 1919. Obras Escolhidas, tomo 3, pp. 227-244.
LÖWY, M. Da tragédia à farsa: o golpe de 2016 no Brasil. In: Por que gritamos golpe? São Paulo: Boitempo, 2016.
MORENO, Nahuel. A Traição da OCI. S/e, s/a
SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015.
ZACARIAS, Carlos. Esquerda/direita: manual do usuário. Em: http://blogconvergencia.org/?p=4934. Consultado em: 26/08/16.
Muito bom.