O fenômeno migratório e a lógica do capital: algumas reflexões iniciais

As migrações fazem parte do cotidiano e da própria história do capitalismo, por mais que haja numerosas práticas governamentais de resistência contra elas no cenário contemporâneo. Essa resistência realiza-se, sobretudo, nas políticas de fechamento das fronteiras, e quando isto se combina com situações calamitosas nos países de onde parte o fluxo migratório, os resultados são desastrosos, perfazendo terríveis crises humanitárias.

Não temos aqui o intuito de analisar concretamente determinadas dinâmicas migratórias. Ao invés disso, pretendemos encontrar os fundamentos teóricos que possam explicar essas dinâmicas nos marcos do capitalismo. E mais do que isso, há que se demonstrar que a migração, correspondendo a uma circulação internacional da mercadoria força de trabalho, é própria do capitalismo, não podendo ser tomada como acidental ou episódica.

Em nossa breve incursão, tomaremos como referência os apontamentos de Marx a respeito das características da força de trabalho enquanto mercadoria, assim como algumas contribuições de Jean-Paul de Gaudemar, mesmo que não tenhamos pleno acordo com todas as suas elaborações. Também levaremos em conta o funcionamento econômico do capital, as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores migrantes e os delineamentos da forma política estatal nesse aspecto.

A forma móvel da força de trabalho no capitalismo
O primeiro fato a se registrar sobre o tema diz respeito ao que Jean-Paul de Gaudemar chama de mobilidade do trabalho ou da força de trabalho no capitalismo. Trata-se de uma qualidade que é socialmente imposta à força de trabalho na medida em que ela se converte em artigo de comércio na ordem social burguesa. Há que se observar que, ao contrário do escravo e do servo, que fazem parte dos meios de produção, o trabalhador assalariado desfruta de liberdade jurídica para “escolher” seu patrão, transitando por diferentes empregadores a partir de relações contratuais que, como tal, são baseadas no consentimento formal.

Comparativamente, o escravo e o servo são uma mão de obra imóvel, adstrita à vontade do senhor ou à própria gleba. Não é dado a nenhum deles buscar oportunidades em outra região ou mesmo em outro ramo econômico. É o oposto do que se passa com o assalariado, o qual, sendo proprietário de si mesmo, dispõe “livremente” da sua própria força de trabalho, decidindo onde e para quem vendê-la. No entanto, os termos dessa liberdade, ao serem examinados criticamente, revelam-se bastante comprometedores, senão vejamos.

A relação de capital tem dois polos necessários: o capitalista, possuidor de dinheiro e meios de produção, e o trabalhador, possuidor tão somente de sua capacidade de trabalho. Todas as demais figuras econômicas do capitalismo (a finança, a renda fundiária, os serviços etc.) orbitam em torno dessa relação. Para que ela ocorra, é preciso que esses dois personagens se encontrem no mercado, a praça de sociabilidade por excelência da era do capital. Nesse encontro, o polo proletário deve ser “livre” num duplo sentido:

Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho (MARX, 1996, p. 287).

Tem-se, pois, que o trabalhador é livre para comercializar a sua força de trabalho sem impedimentos sociais pré-capitalistas, mas que, para tanto, deve estar despojado de bens de produção de subsistência ou de outras mercadorias. Possuindo apenas a capacidade laboral, ele é economicamente obrigado a entregá-la ao capital em troca de um salário. O capitalista, por sua vez, ao adquirir a força de trabalho no mercado, pode usá-la como bem entender, inclusive se desfazer dela quando julgar conveniente. A liberdade do trabalho no capitalismo consiste, portanto, na mobilidade mercantil do trabalho, na sua livre sujeição ao capital para fins de exploração e valorização (GAUDEMAR, 1977, p. 190).

Gaudemar salienta que essa mobilidade não é somente espacial, compreendendo também o deslocamento dos trabalhadores de um ramo econômico para outro. Nosso foco aqui é justamente a mudança de uma região para outra, mas a percepção de que os assalariados podem ser adaptados a setores distintos da produção e da circulação é de grande importância para nosso estudo, dado que ilumina um atributo essencial da mercadoria. Referimo-nos ao que juridicamente se descreve como fungibilidade dos objetos, isto é, como a capacidade de se substituir uns por outros sem qualquer tipo de prejuízo.

Se os bens econômicos, em geral, são considerados fungíveis, isso se dá em virtude do nivelamento geral promovido pelo mercado. Todos os trabalhos são reduzidos a trabalho abstrato, e todos os produtos do trabalho passam a ser dotados de uma mesma substância social: o valor, essa grandeza abstrata que mede as coisas pelo tempo que levam para serem produzidas segundo o grau médio de produtividade. Logo, os bens são fungíveis entre si na medida em que são nivelados pelo mercado e pela lei do valor. Daí porque a aptidão para ser trocada – e para ser posta numa situação de equivalência – é inerente à mercadoria.

O que garante a permutabilidade universal das mercadorias é a prática corrente do mercado, a qual produz a figura do dinheiro, que é o nivelador radical de tudo, a perfeita encarnação do valor de troca na função de medida dos valores. Por óbvio, essas determinações só podem se desenvolver ao máximo no capitalismo, já que tanto o dinheiro quanto a mercadoria estão fadados, em modos de produção anteriores, a uma existência marginal. E é também com o capitalismo que se consagra a forma jurídica dos indivíduos possuidores de mercadoria (sujeitos de direito) e dos bens trocados no mercado, esses últimos exprimindo-se, em termos de direito civil, como bens fungíveis.

É próprio do direito estabelecer uma separação nítida e formal entre os portadores das mercadorias e as mercadorias. Desde Kant, há uma forte linha divisória entre pessoas e coisas, o que contribui para a noção de igualdade jurídica, tão cara à civilização burguesa. Ao não admitir que uma pessoa seja tratada como coisa, a forma jurídica interdita a escravidão e a servidão, mas ratifica, com uma fortíssima apologética ideológica, a “livre” e contratual exploração capitalista, ocultando o expediente de coleta da mais-valia. Não obstante, se a força de trabalho é de fato uma mercadoria, ela é inevitavelmente condicionada por aspectos “coisais”, dentre eles a fungibilidade.

Como qualquer mercadoria, a força de trabalho está destinada à troca, o que exige dela uma mensurabilidade objetiva em face das outras mercadorias, a começar pelo dinheiro, conforme se verifica na paga salarial. Em adendo, as mercadorias podem ser substituídas por coisas semelhantes no processo de produção. Uma peça defeituosa no maquinário pode ser resposta pela compra de uma nova no mercado, pouco importando a procedência da nova peça, desde que ela funcione. Com a força de trabalho, não é diferente: por ser uma mercadoria, ela é trocável, substituível. Ela tende a se nivelar no mercado de trabalho, e quanto mais ela puder transitar livremente pelas empresas, pelos setores da economia e pelas nações, mais perfeita ela é, mais ela corresponde ao seu conceito.

Deve-se pensar a força de trabalho como um bem fungível no capitalismo, assim, não apenas pelo seu caráter de mercadoria, mas também pelo seu caráter de recurso mobilizado pelo capital no processo produtivo, um recurso que lhe pertence tanto quanto os meios de produção à sua disposição1. Essa fungibilidade se traduz numa indiferença do capital perante o conteúdo particular do trabalho, uma vez que esse conteúdo particular é apenas uma dentre várias modalidades possíveis de fabricação do valor e da mais-valia. Eis porque não há espaço no capitalismo para o orgulho profissional de uma dada categoria: o trabalhador não deve se apegar a algum tipo de setor da produção, ele deve ser versátil o suficiente para poder circular pela maioria deles, servindo aos empreendimentos capitalistas conforme se exigir:

Quanto mais desenvolvida a produção capitalista em um país, maior é a procura de versatilidade na força de trabalho, tanto mais indiferente é o operário com relação ao conteúdo particular de seu trabalho, e tanto mais fluido o movimento do capital, que passa de uma esfera produtiva a outra. A economia clássica pressupõe, como axiomas, a versatilidade na força de trabalho e a fluidez no capital, e tem razão na medida em que é essa a tendência do modo capitalista de produção, a qual se impõe inexoravelmente, em que pesem todos os obstáculos que, em grande parte, o próprio modo de produção cria (MARX, 1978, p. 44-45).

Essa versatilidade do proletariado deve ser compreendida também na sua capacidade de deslocamento espacial, e que varia em intensidade: o trabalhador pode se deslocar de uma cidade a outra diariamente para vender sua força de trabalho, pode trabalhar sazonalmente em outra região conforme uma demanda econômica, ou pode mesmo estabelecer-se em definitivo em outro país, desenraizando-se de certa maneira. Tal “desenraizamento” não é nada inconveniente ao capitalismo. Muito pelo contrário, pois a única raiz obreira que interessa ao capital é a sua capacidade de gerar mais-valia direta ou indiretamente. Antes de ser membro de uma comunidade ou cidadão nacional, o proletário é apenas e tão somente um assalariado, a personificação da forma trabalho assalariado em sua oposição ao capital. Para o capital, ele é tão abstrato e genérico como o trabalho que realiza – uma massa indiferenciada de labor, despida de qualificações concretas de uma dada esfera da produção.

Sendo formas paralelas, a liberdade de movimento do capital exige também a liberdade de movimento do trabalho assalariado, ainda que com desigualdades conjunturais. E agora que compreendemos a vocação de mobilidade da força de trabalho no capitalismo, tentaremos entender as forças econômicas e políticas que impulsionam ou constrangem a sua real movimentação.

O conteúdo da mobilidade da força de trabalho no capitalismo
A força de trabalho é livre para se movimentar, mas o que a leva a exercer essa liberdade não é o puro arbítrio ou um sentimento de wanderlust, e sim a necessidade objetiva. Frequentemente, a emigração é a última das opções, ocorrendo em situações de grave crise econômica, de guerra civil, de catástrofes naturais combinadas com crises sociais estruturais ou de repressão política exacerbada. Mas mesmo em casos menos extremos, fato é que a força de trabalho logra circular para além de sua redoma nacional. Grande parte dos trabalhadores do mundo oferece sua única mercadoria para um mercado de uma região distinta de sua origem.

O trabalhador, sendo despossuído dos meios de produção, está condenado à liberdade do trabalho. Se ele não encontrar um comprador para o bem que disponibiliza na esfera mercantil, terá como destino a inanição. Logo, se houver maior possibilidade de compradores em outras terras, ele tende a migrar. É a sua condição de proletário que o obriga, não raro, a abandonar sua terra natal e a buscar a sorte no estrangeiro.

Em si mesma, a mobilidade do trabalho traz um conteúdo positivo. Apesar dos constrangimentos comumente verificáveis no tocante aos migrantes, dos quais trataremos em breve, é preciso admitir que os fluxos migratórios contêm ao menos um potencial de integração do proletariado internacional, contribuindo para a dissolução dos localismos arcaicos e do provincianismo sufocante:

Não há dúvida de que só a horrenda miséria obriga as pessoas a abandonar sua terra natal, e de que os capitalistas exploram com os operários imigrantes da maneira mais desavergonhada. Mas só os reacionários podem fechar os olhos ante o significado progressista desta moderna migração dos povos. É impossível a emancipação do jugo do capital sem o posterior desenvolvimento do capitalismo e sem a luta de classes que é sua consequência. E o capitalismo incorpora a esta luta as massas trabalhadoras de todo o mundo, quebrando os hábitos atrasados e rudes da vida local, quebrando as barreiras e os preconceitos nacionais, unindo os operários de todos os países em grandes fábricas e minas da América do Norte, Alemanha, etc2. (LENIN, 1977, p. 215).

De fato, as migrações confirmam a natureza internacional do proletariado, dado que o trabalhador assalariado submete-se aos mesmos expedientes de exploração onde quer que atue como trabalhador assalariado, permitindo que ele se identifique com seus pares a partir de critérios de classe, e não de nação. Na prática, porém, essa potencialidade não vinga na maioria das situações. O que se vê é o oposto: uma negativa de solidariedade entre os proletários de diferentes origens reunidos num mesmo espaço nacional. Ainda assim, deve-se constatar que a migração dinamiza a luta de classes, pois mesmo que ela não produza imediatamente um laço de solidariedade de classe, ela leva experiências de luta e resistência de um lugar a outro, promovendo certo intercâmbio.

Seja como for, apesar de indicar o significado histórico progressista das migrações, Lenin não deixa de pontuar e denunciar a miséria dos trabalhadores e a “desavergonhada” exploração dos imigrantes pelos capitalistas que os recebem em seu país. Essas mazelas são conhecidas: a situação política e a baixa qualificação dos imigrados enseja a máxima exploração pelas empresas, geralmente com métodos de coleta de mais-valia absoluta, como o prolongamento da jornada de trabalho e a intensificação do ritmo laboral. Vale citar também que, em muitas ocasiões, mesmo os imigrados com alta qualificação são lançados a posições mais baixas no mercado.

Também se deve levar em conta que a alta taxa de mobilidade dos trabalhadores imigrantes gera uma rotação no mercado de trabalho que suprime os benefícios de antiguidade nas empresas, preservando-se uma fraca taxa salarial. Isso, por óbvio, para as empresas de porte razoável com planos mínimos de carreira. A maioria dos imigrantes, no entanto, está muito aquém de atingir esse patamar de emprego. Não são poucos os que, tendo ingressado de forma clandestina no país (“indocumentados”), são submetidos a regimes contratuais de extrema precariedade. Aliás, o que significa essa precariedade do trabalho? Significa que a força de trabalho circula da forma mais livre possível. Os capitalistas podem consumi-la e devolvê-la ao mercado de trabalho com um mínimo de embaraços legais (em alguns casos, sem nenhum embaraço), esgotando a mobilidade desse bem.

Ora, a plena circulação da força de trabalho não é senão a plena mercantilização da força de trabalho, característica essencial ao capitalismo. Assim sendo, esses expedientes de trabalho precário afirmam ao extremo a lógica do capital, não a negam. Por isso, é metodologicamente equivocado assemelhar as péssimas condições laborais de muitos imigrantes com a escravidão ou a servidão. A precarização da mão de obra não faz senão radicalizar a mobilidade da força de trabalho, o que a torna um fenômeno ultracapitalista, e não escravista ou servil3.

Continuemos. Sendo precarizados, os trabalhadores imigrantes clandestinos compõem, conjuntamente com os trabalhadores temporários nacionais, um complemento conjuntural de mão de obra para numerosas empresas. Eles formam uma mão de obra com mobilidade perfeita (máxima precariedade) e com custo mínimo (salários abaixo do mínimo e jornadas de trabalho mais elevadas). No caso dos imigrados, existe ainda um agravante, pois é comum que a eles sejam negados os mesmos direitos sindicais dos assalariados nativos, sem falar nas restrições ao direito de associação e de expressão. A possibilidade de conquistas econômicas é bastante prejudicada em função de diversas discriminações legais.

Sendo a situação da maioria dos imigrantes tão difícil, há que se reconhecer que somente a mais grave falta de perspectivas em sua terra natal pode lhes levar a correr riscos no exterior. O desemprego é o incentivo de praxe. E se a questão que se coloca é o desemprego, então devemos enfrentar o tema da superpopulação relativa. Não se pode olvidar, afinal, que assim como o capital só produz mediante um horizonte de retorno lucrativo razoável, ele só contrata mão de obra com a mesma finalidade. Seu objetivo nunca foi e nunca será empregar pessoas. A compra da força de trabalho é, na perspectiva da acumulação capitalista, uma espécie de “mal necessário”, já que tudo o que importa é o movimento de valorização do valor. Desse modo, entende-se porque o capital contrata mais nos períodos de crescimento econômico e dispensa mais nos períodos de estagnação e recessão.

E não contente com isso, o capitalismo produz continuamente uma franja excedente de trabalhadores – excedente em relação aos anseios de valorização do capital, e não aos valores de uso disponíveis para suprir as demandas desse contingente da população. Forma-se, dessa maneira, uma escassez de postos de trabalho que obriga os trabalhadores a, em último caso, sujeitarem-se a condições contratuais piores. E mais do que isso, forma-se também um exército industrial de reserva que assegura o suprimento do mercado de trabalho em qualquer conjuntura. Jean-Paul de Gaudemar faz um paralelo interessante, no tocante ao funcionamento do capitalismo, entre a disponibilidade de força de trabalho e a disponibilidade de reservas financeiras:

O capital não só provoca a procura de trabalho de que tem necessidade, mas produz também a oferta, pela criação ininterrupta de operários supranumerários. Assim, satisfaz as suas necessidades imediatas e futuras, num vasto movimento de especulação sobre a força de trabalho. A sobrepopulação relativa está assim para a força de trabalho como as reservas financeiras para o capital-dinheiro. Nem oferta nem procura de trabalho são movimentos independentes do capital, “o capital age dos dois lados ao mesmo tempo” (GAUDEMAR, 1977, p. 277).

Na dinâmica do capitalismo, as reservas de mão de obra existem para serem mobilizadas ao talante do capital. E assim como o capital deve ser livre para migrar de um ramo da produção a outro, ou mesmo de um país a outro, buscando sempre a máxima lucratividade – eis aí o sentido da financeirização neoliberal e da globalização nas últimas décadas –, o mesmo sucede com o trabalho. Há apenas uma “pequena” diferença: enquanto as aplicações financeiras e as multinacionais são recebidas com toda pompa e honrarias, os trabalhadores migrantes são legalmente discriminados e entregues à voracidade das empresas locais.

Cumpre considerar ainda que a força de trabalho, ao integrar as forças produtivas capitalistas, torna-se também uma grandeza internacional, da qual se espera, portanto, um manejo internacional. Mas esse manejo é incumbido ao proprietário da força de trabalho: se o capital não vai até ele, ele que vá até o capital – e que seja diligente e responsável para progredir individualmente em sua empreitada. Verifica-se, pois, como esse mecanismo interpela ideologicamente os trabalhadores migrantes, para que eles se convertam numa mão de obra disciplinada, dedicada à prosperidade individual, de maneira a fazer jus ao “generoso” acolhimento recebido no país. E por trás dessa interpelação ideológica, encontra-se a compulsão econômica capitalista: uma parte do proletariado de um país se vê obrigada a seguir os investimentos de capital em outros países simplesmente porque não há interesse de investimento suficiente em sua região de origem.

Por esses fatores, a mão de obra imigrante é, em princípio, atrativa para as burguesias nacionais, do que se extrai, como lei geral, o favorecimento da circulação internacional da força de trabalho. Essa é a tendência lógica do capital4. Todavia, o que assistimos no mundo hoje, sobretudo nos Estados Unidos e na União Europeia, é o fortalecimento das tendências opostas, ou seja, o recrudescimento das barreiras ao fluxo migratório. Diante do que vem a ser a mobilidade capitalista do trabalho, só se pode entender esse recrudescimento como a prevalência conjuntural de certas forças contratendenciais, mas que não impedem de fato os movimentos migratórios. Passemos a elas.

As fronteiras nacionais e o papel dos Estados
De início, deve-se considerar o fato de que a ordem internacional capitalista exprime-se necessariamente numa constelação de Estados formalmente soberanos, espelhando os sujeitos formalmente livres e iguais que operam no interior de cada nação. Apesar de toda a mobilidade internacional do capital e do trabalho, principalmente do primeiro, o mundo ainda está dividido em distintas esferas nacionais. A razão disso, como aponta Joachim Hirsch, é a competição capitalista:

O motivo para a multiplicidade de Estados representar um traço constitutivo do capitalismo, e não uma manifestação histórica casual, consiste em que as contradições e as oposições sociais presentes no modo de socialização capitalista, isto é, os antagonismos de classe e a concorrência, não apenas manifestam-se na “separação” do Estado frente à sociedade, como também são simultaneamente produzidos pela concorrência entre os Estados. O sistema de Estados é uma expressão estrutural das relações capitalistas de classe e de concorrência. Elas reproduzem-se nele e determinam seus conflitos e dinâmicas de desenvolvimento. […] A dinâmica das lutas de classes e da concorrência faz com que o aparelho político de dominação em escala global assuma uma configuração fragmentada (HIRSCH, 2010, p. 70-71).

Essa multiplicidade de Estados constitui, sem dúvidas, um entrave para a plena circulação do capital e das mercadorias, mas um entrave que é inerente à natureza competitiva do sistema burguês. Ao mesmo tempo, ela é inevitável, assim como as delimitações territoriais que lhe são próprias. Cada Estado só pode existir como um ente juridicamente soberano, dono das próprias fronteiras e dotado da atribuição de legislar no interior delas, inclusive no que diz respeito à cidadania das pessoas submetidas à sua jurisdição. Esse caráter da forma política estatal entra em choque com o movimento de internacionalização do mercado capitalista, dado que o capital, por sua dinâmica expansiva, não admite nenhum tipo de barreira natural ou política. Todavia, tal contradição não compromete em nada o funcionamento do capitalismo, antes o auxilia, conforme veremos a seguir.

Quando um Estado exerce um controle mais rígido sobre suas fronteiras, ele afeta diretamente os termos nos quais as mercadorias que as cruzam são trocadas. Como é evidente, ele pode incentivar ou desestimular o recebimento de determinados bens conforme sua política alfandegária. Ora, o mesmo se dá com a política migratória, cujo objeto é o tráfego da mercadoria força de trabalho.

Sabe-se que o Estado pode influenciar a economia, mas não pode subverter as leis do capital. Se há demandas econômicas que estimulam determinados movimentos migratórios, esses movimentos ocorrerão, queiram os Estados ou não. Do mesmo modo que as mercadorias proibidas circulam clandestinamente via contrabando, a força de trabalho também pode ser contrabandeada com as iniciativas de imigração clandestina. Sendo assim, a política estatal não determina se haverá ou não afluxo de trabalhadores para o país, e sim em quais condições esse trabalhadores imigrantes poderão vender a sua força de trabalho, ou seja, de modo mais ou menos precário a depender da conjuntura.

Nesse sentido, as políticas migratórias restritivas adotadas nos EUA e na UE não significam o fim da imigração nesses países, ou o fim da globalização, como se chegou a alardear, mas antes um condicionamento mais gravoso para o trabalhador imigrante. Porque se ele é lançado na clandestinidade, então a sua fragilidade será muito maior, ampliando ainda mais a vantagem dos capitalistas sobre essa mão de obra. Os atos anti-imigratórios governamentais servem para que o patronato possa “controlar muito mais estreitamente a mão de obra imigrada, sobretudo num período de crise e num período em que os imigrados se organizam para se defenderem e combaterem” (GAUDEMAR, 1977, p. 30).

Ameaçados permanentemente de deportação, os trabalhadores imigrantes são mais vulneráveis ao assédio patronal, sujeitando-se a situações piores do que aquelas a que são submetidos os trabalhadores nativos. Desenvolve-se, então, uma guetificação da mão de obra imigrante, facilitando o controle disciplinar pelo capital e também pelo próprio Estado. Em acréscimo, pode-se dizer que as políticas anti-imigratórias também miram os trabalhadores nacionais, na medida em que difundem a ideia absolutamente falaciosa de que o declínio das instituições de bem-estar social deve-se à recepção excessiva de estrangeiros, e não à avidez insaciável da acumulação capitalista. Mais do que uma propaganda enganosa, tem-se aí, igualmente, uma afirmação ideológica da forma nação e da forma cidadania, inseparáveis da organização estatal burguesa.

À guisa de conclusão
A mobilidade do trabalho representa um avanço civilizatório em relação às formas pré-capitalistas de gestão da força de trabalho. Ainda assim, essa mobilidade é empregada pelo capitalismo de modo a submeter os trabalhadores a duras condições de trabalho. O proletariado torna-se joguete das forças econômicas capitalistas, sendo que uma parte dele é compelida economicamente a buscar a sorte no estrangeiro em virtude das oscilações do mercado. E ao adentrarem um novo território, os imigrantes deparam-se com legislações que variam no seu nível de restrição, mas que de qualquer modo estabelecem discriminações legais em face dos trabalhadores nacionais. Guetificado, o proletariado imigrante ocupa os postos de trabalho mais precarizados, ampliando a lucratividade do capital. E é preciso observar também que esse tipo de legislação não se deve tão somente à política de tal ou qual governo, e sim à pluralidade da forma política estatal: os diversos Estados delimitam as suas fronteiras e os seus cidadãos, mesmo que em contraste com a dimensão internacional das forças produtivas do capitalismo moderno. Essas tendências contraditórias convivem de modo funcional para a exploração capitalista. Somente uma sociedade socialista poderia, com efeito, eliminar essa contradição e unificar os explorados na construção de um mundo acolhedor para todas as nacionalidades.


Referências bibliográficas

GAUDEMAR, J. Mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Tradução de Maria do Rosário Quintela. Lisboa: Estampa, 1977.

HIRSCH, J. Teoria materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estado. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

LENIN, V. El capitalismo y la inmigración de los obreros. In: Obras completas, t. XX. Madrid: Akal, 1977.

MARX, K. O capital: crítica da economia política, l. I, t. I. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

______. O capital: livro I, capítulo VI (inédito). Tradução de Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

Notas

1 “O capitalista, mediante a compra da força de trabalho, incorporou o próprio trabalho, como fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, que lhe pertencem igualmente. Do seu ponto de vista, o processo de trabalho é apenas o consumo da mercadoria, força de trabalho por ele comprada, que só pode, no entanto, consumir ao acrescentar-lhe meios de produção. O processo de trabalho é um processo entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo lhe pertence de modo inteiramente igual ao produto do processo de fermentação em sua adega” (MARX, 1996, p. 304).

2 Traduzimos livremente o trecho.

3 À vista dessa percepção, é preciso rejeitar as análises que também comparam a terceirização, uma das modalidades da prática precarizante, com a escravidão. O que se vê aí não é apenas uma imprecisão teórica, mas um diagnóstico que nos leva a uma falsa polarização entre um trabalho capitalista decente e um trabalho escravo maléfico. Essa é uma maneira reformista de se colocar o problema, pois de algum modo romantiza a sociedade burguesa: nela haveria espaço para o assalariamento “bom” e o assalariamento “ruim”, cabendo a luta pelo primeiro. Ignora-se com isso que a justa e necessária luta contra a terceirização só pode ser empreendida de modo consequente se encararmos os variados modelos de subcontratação de mão de obra como ínsitos ao modo de produção capitalista, como a sua plena expressão no impulso de otimizar a mais-valia.

4Aqui, a hipótese de mobilidade perfeita do trabalho exprime apenas uma tendência do modo de produção capitalista. De certo modo, poderia até dizer-se que a lei de baixa tendencial da taxa de lucro, como lei de estrutura, é acompanhada de uma lei de perfeição tendencial da mobilidade do trabalho, colocada antagonicamente, como poderoso meio, nas mãos do capital, para lucrar contra a baixa da taxa de lucro” (GAUDEMAR, 1977, p. 400).

Pablo Biondi