Nesse ano de 2017, completa-se cem anos da Revolução Russa. Há um século atrás os trabalhadores demonstraram, pela primeira vez na história, que poderiam derrotar a burguesia também no campo político e governar por meio de suas organizações e conselhos. Ficou demonstrado que antes de se submeter eternamente a ciranda das lutas econômicas, das campanhas salariais e das conquistas parciais sempre carcomidas no período seguinte, os trabalhadores poderiam governar e tomar a rédeas não apenas da produção da riqueza, mas, também, de sua distribuição e controle consciente.
No entanto, 100 anos é um período demasiado longo para nossa vidas individuais. A forma como a história da Revolução Russa é contada, muitas vezes, faz parecer se tratar um horizonte distante e intocável. Afinal, como seria possível, nos dias de hoje, uma massa de trabalhadores de tal modo mergulhada nas ilusões capitalistas, corroída pela brutalização e opressão produzida por esse mesmo sistema, marcada pelo atraso cultural e pelas ideologias reacionárias seguir o exemplo dos trabalhadores russos e tomar as rédeas de seus próprio destino? Não teríamos um atraso nas consciências tão grande que jogaria para um futuro distante, no melhor dos casos, a possibilidade dos trabalhadores seguirem o exemplo da Revolução de 1917? Pensamos que não.
Na verdade, a Revolução Russa esteve longe de ser, como por vezes parece, uma lenda cujos personagens eram chefes geniais conduzindo uma massa de trabalhadores conscientes, despidos de preconceitos e ilusões. As histórias oficiais, infelizmente, omitem os erros grosseiros, as derrotas, os preconceitos, bem como os atrasos de todos os tipos, fazendo os acontecimentos passados se parecerem mais com uma peça literária do que com a vida real. Não sem razão, em sua História da Revolução Russa, Trotsky comenta sobre a “lenda pouco inteligente que retrata a história do bolchevismo como uma emanação da pura ideia revolucionária. Na verdade, o bolchevismo se desenvolveu num meio social definido, submetido às suas influências heterogêneas e entre elas a influência de um ambiente pequeno burguês e de atraso cultural. A cada nova situação, o partido se adaptava apenas por meio de uma crise interna” (TROTSKY, 2007b, p.906). Para entendermos esse processo é importante, portanto, retomarmos alguns antecedentes. Vejamos!
A idolatria pelo Czar
A Revolução Russa, como todo grande acontecimento da história, não surgiu do nada. Seu percurso foi profundamente acidentado. O primeiro grande capítulo dessa narrativa foi a Revolução de 1905, futuramente conhecida como “Ensaio Geral”. O que poucos sabem é que esse ensaio geral se iniciou de maneira nada convencional. A miséria do jovem proletariado russo atingiu, naquela época, um nível tão elevado que em janeiro de 1905 cento e cinquenta mil operários de São Petersburgo se dirigiram ao palácio do Czar, o autocrata que dominava toda Rússia, para revindicar condições de trabalho que permitissem atender as necessidades básicas, principalmente a jornada de 8 horas de trabalho.
Mas se engana quem pensa que eles foram protestar contra o Czar. Ao contrário. Na época, o ditador russo gozava de um prestígio quase religioso entre os camponeses e operários. Em eventos públicos, por exemplo, era comum que trabalhadores enfermos tentassem, de todas as formas, tocar no Czar, acreditando que com isso seriam curados. Em janeiro de 1905 os trabalhadores não foram lutar contra o governo, mais clamar para que esse escutasse as suas súplicas. Acreditavam que os patrões e os funcionários estatais fossem os únicos vilões, mas o Czar seria o representante de todo o povo, estando apenas mal informado sobre a sua real situação.
Quem conduzia esses 150 mil operários não era nenhum sindicato, central sindical ou partido revolucionário, mas um padre. Tratava-se do padre Gapon que, anos depois, descobriu-se ser um agente infiltrado da polícia. O manifesto a ser entregue ao czar mais parecia com uma prece: “Nós, operários, habitantes de Petersburgo, acudimos a Ti. Somos escravos desgraçados, escarnecidos, esmagados pelo despotismo e a tirania. Esgotada nossa paciência, deixamos o trabalho e rogamos a nossos amos que nos dessem só aquilo sem o qual a vida é uma tortura. Mas isto nos foi negado, para os patrões tudo é ilegal. […] Senhor! Não negues ajuda a Teu povo! Derruba o muro que se ergue entre Ti e Teu povo. Ordena que nossos rogos sejam atendidos e, ao prometer, farás a felicidade da Rússia” (LÊNIN, 1980, p.96) e assim por diante. Ocorre que esse movimento foi recebido por metralhadoras em um episódio que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. Esse processo iniciou a primeira Revolução Russa que foi, depois de muitos meses de batalha, derrotada. Mas dessa revolução milhões de operários aprenderam uma lição: o Czar não é nosso aliado. Surgiram pela primeira vez os Soviets, conselhos de trabalhadores, e, com ele, os trabalhadores tomaram consciência de que podiam ir muito além de conquistas salariais.
Dirá Lênin, mais de uma década depois, que ao “ler agora esta petição de operários ignorantes e analfabetos, dirigidos por um sacerdote patriarcal, experimentamos um sentimento estranho. Involuntariamente comparamos esta ingênua petição às atuais resoluções de paz dos social-pacifistas, os supostos socialistas que, na realidade, são charlatães burgueses. Os operários não esclarecidos da Rússia pré-revolucionária não sabiam que o Czar era o chefe da classe dominante”. Mas em seguida, faz uma ressalva fundamental: “apesar de tudo, há uma grande diferença entre ambos os fatos: os social-pacifistas de hoje são principalmente hipócritas que, mediante amáveis exortações, tratam de desviar o povo da luta revolucionária, enquanto que os operários ignorantes da Rússia pré-revolucionária demonstram com fatos que eram homens sinceros que, pela primeira vez, despertavam para a consciência política” (LÊNIN, 1980, p.97-98).
Mas não nos enganemos. O Czarismo ainda gozava de enorme prestígio entre os camponeses, que na época representavam mais de 80% da população do país e mesmo entre uma fração expressiva do operariado. O processo histórico que culminou na Revolução Russa de 1917 se deu não sem inumeráveis idas e vindas da consciência.
Oito anos depois dessa primeira revolução, em 1913, os Romanov desfilavam por toda Rússia para comemorar os 300 anos de sua dinastia. Seguia esse desfile imperial multidões, tanto no campo como na cidade. Como escreve Orlando Figes, “durante a comemoração do tricentenário, a dinastia Romanov apresentou ao mundo uma imagem brilhante do poder e da opulência da monarquia. Não se tratava de simples propaganda. Os rituais de homenagem à dinastia e a glorificação de sua história pretendiam, seguramente, inspirar reverência e apoio popular ao princípio da autocracia” (FIGES, 1999, p.35). Tratava-se de celebrar a fictícia comunhão entre o czarismo e o povo russo. Segundo Figes, a “propaganda do tricentenário foi o apogeu dessa lenda. […] Ele era louvado por seu estilo de vida modesto e por seus gostos simples, sua acessibilidade ao povo comum, sua bondade e sabedora” (FIGES, 1999, p.41-42).
Esse evento fora acompanhado de tamanha devoção pelo Czar que o jornal The Times de Londres relatava que “nenhum futuro parece tão confiante ou tão brilhante. […] Nada podia exercer a afeição e a devoção à pessoa do imperador demonstrada pela população sempre que Sua Majestade aparecia. Não há dúvida de que nesse forte apego das massas à pessoa do imperador está a grande força da autocracia russa” (grifo nosso) (FIGES, 1999, p.43). Ora, poucos poderiam imaginar que diante dessa celebração, de tanta pompa e ostentação, diante das multidões que seguiam o Czar com uma devoção quase religiosa, que seus dias estariam contados e uma revolução nascia no horizonte. Mas este é apenas um capítulo das ilusões da consciência que antecederam a Revolução de 1917. Entre as organizações de todo tipo que procuravam canalizar essa massa de trabalhadores e camponeses para uma transformação social, a confusão se transformava em caos.
A vertigem nacionalista e a a traição dos partidos “de esquerda”
Ora, se o povo russo era marcado pelo atraso cultural, pelas ilusões de todos os tipos, seria a revolução produto de uma forte unidade e elevada consciência por parte das organizações de esquerda? Longe disso! Na verdade o que ocorreu com os partidos ditos de esquerda foi o exato oposto. Como analisa Trotsky, é “mais fácil teorizar sobre uma revolução a posteriori do que absorvê-la em sua carne e sangue antes que ocorra. A proximidade de uma revolução inevitavelmente produziu, e sempre produzirá, crises nos partidos revolucionários” (grifo nosso) (TROTSKY, 2007, p.906).
Em verdade, a Revolução Russa foi precedida pela maior crise já ocorrida no movimento marxista: a traição e desmantelamento completo da Segunda Internacional com a eclosão, em 1914, da Primeira Guerra Mundial. Na época, a Alemanha possuía o mais organizado proletariado do mundo, tanto sindical como politicamente. A Social-Democracia Alemã era um partido poderoso que hegemonizava os sindicatos, ocupava diversos postos no parlamento e cuja política ecoava nos quatro cantos da Europa. Não sem razão, os ativistas operários russos tinham seus olhos voltados para a Alemanha.
Pois bem, 1914 marcou o desmonte da Social-Democracia enquanto um instrumento dos trabalhadores, quando esse partido votou a favor dos créditos de guerra; aprovando a entrada da Alemanha no conflito e a guerra entre os trabalhadores de diversos países em função dos interesses da classe que os dominava.
Este fato é largamente conhecido. O que poucos sabem é que em função dos conflitos imperialistas desenvolvidos na época, particularmente da Alemanha contra a França e Inglaterra, a atmosfera nacionalista tomou conta de toda a Europa. Em diversos casos, foram os próprios trabalhadores que, reunidos em torno do parlamento alemão, exigiram da Social-Democracia a aprovação dos créditos de guerra. Como indica o historiador Modris Eksteins: “os socialdemocratas, diante da mobilização dos exércitos do czar e, portanto, de uma intensificada ameaça russa, e também diante de renovadas manifestações de caráter patriótico, começaram a aderir à causa nacionalista. Alguns líderes socialistas se deixaram envolver na orgia da emoção. Outros sentiram que não podiam nadar contra a corrente do sentimento público. […] se os líderes do SPD não tivessem aprovado os créditos de guerra, os deputados socialistas teriam sido pisoteados até morrer na frente da Porta de Brandemburgo. Em suma, o monarca e o governo não foram os únicos influenciados pelas efusões de sentimento público, mas virtualmente todas as forças da oposição também se deixaram arrastar pela corrente.” (grifo nosso) (EKSTEINS, 1992, p.90-91)
A vertigem nacionalista alemã não poupou praticamente nenhum tipo de organização, mesmo aquelas centradas na luta contra as opressões ou os membros da comunidade judaica. Nesse sentido, ainda segundo Eksteins, a “atmosfera eletrizada estimula toda sorte de organizações e grupos sociais a declararem publicamente sua lealdade à causa germânica. Militantes dos direitos dos homossexuais e das mulheres, por exemplo, se juntam’ às celebrações da nacionalidade. A Associação dos Judeus Alemães em Berlim publica sua declaração no sábado, 1º de agosto: ‘É evidente que todo judeu alemão está pronto a sacrificar toda a propriedade e todo o sangue exigidos pelo dever”, proclama numa de muitas afirmações exuberantes’ ” (EKSTEINS, 1992, p.90-91).
Na França, Victor Serge, então anarquista e prisioneiro político, narra com perplexidade que “a súbita conversão dos social-democratas alemães, dos sindicalistas, socialistas e anarquistas franceses ao patriotismo nos pareceu incompreensível. Então não acreditavam em nada do que diziam até ontem? […] Cantadas por multidões que acompanhavam os mobilizados até os trens, as Marseillaises veementes chegavam até a prisão. Ouvíamos também: “A Berlim! A Berlim”. Esse delírio, para nós inexplicável, consumava o apogeu de um catástrofe social permanente” (SERGE, 1987, p. 65).
Como se vê, a quase totalidade das organizações, navegando na consciência geral, capitularam à guerra imperialista. Na Rússia não foi em absoluto diferente. Uma multidão aderiu subitamente a guerra. Como relata Rodzianko, então presidente do parlamento russo (Duma), “uma multidão ajoelhara para entoar o hino ‘Deus salve o Czar’ e depois ergueu-se dando vivas”. Segundo Marc Ferro, Rodzianko “perguntou a dois operários: ‘Que é feito das vossas greves, das reivindicações na Duma?’ os interpelados responderam: ‘São assuntos de que nos ocuparemos, mas agora é preciso defender a pátria’ ”. Nesse mesmo contexto relata Kerenski, futuro presidente do governo provisório russo: “No curto espaço de uma hora, mudavam-se assim os sentimentos de um povo inteiro. Nada restava das greves, das barricadas e do movimento revolucionário, tanto em São Petersburgo como no resto do país” (FERRO, 1992, p.156).
Ora, nesse cenário, Lênin e os bolcheviques, que se opunham a guerra, ficaram em absoluto isolados. A esse respeito relata Trotsky que “muitos chefes dos partidos operários colocaram-se durante a guerra ao lado de sua própria burguesia. Lênin batizou esta tendência com o nome de ‘social-chauvinismo’: socialismo de palavras, chauvinismo de fato. A traição ao internacionalismo, contudo, não caía do céu, mas constituía a continuação e o desenvolvimento inevitáveis da política de adaptação reformista ao Estado capitalista” (TROTSKY, 2012, p.430)). Lênin, por seu turno, em um manifesto célebre denominado O oportunismo e a falência da II internacional declarava:
O conteúdo das ideias políticas, de oportunismo e do social-chauvinismo é o mesmo: colaboração de classes ao invés de luta de classes, repúdio da necessidade revolucionária dessa luta, ajuda ao ‘próprio’ governo numa situação difícil, ao invés de utilização das dificuldades para os fins da Revolução. (grifo nosso) (LÊNIN, 1984)
A capitulação das organizações ditas revolucionárias, de todas as vertentes, à guerra, isolou de tal forma o Partido Bolchevique naquele momento que poucos viam no horizonte a possibilidade de uma revolução, seja na Rússia ou em qualquer outra parte. Como conclui Marc Ferro: “Em 1914 ninguém suspeitava que somente Lenine via claro ao afirmar que a guerra fora o mais belo presente de Nicolau II à Revolução. Julgava-se, ao contrário, que a abertura das hostilidades era o dobre de finados do movimento revolucionário. Pois, à exceção de alguns bolcheviques, não tinham chefes e tropas corrido para os braços do inimigo, como em todo mundo? Além disso, os revolucionários russos estavam tão divididos entre si desde o revés de 1905 que ninguém mais acreditava capazes de atingir seu fim” (grifo nosso) (FERRO, 1974, p. 15).
De fato, a fragmentação das organizações russas, por assim dizer, de esquerda, operárias ou não, era de tal magnitude que necessitaríamos de um artigo a parte para descrevê-la. Após fazer um histórico dessas divisões Marc Ferro diz que “jamais o movimento revolucionário havia atingido uma tal fragmentação, perigo evidente de impotência. Lançados fora da Rússia como parasitas, tinham seus dirigentes sem tropas perdido a partida?” (FERRO, 1974, p. 23). Além disso, a linha de intervenção bolchevique, que ficara conhecida como “derrotista”, segundo a qual era preferível à derrota da Rússia que sua vitória, angariou poucos adeptos e jogaram quase todos contra os bolcheviques. No entanto, três anos depois, já durante o governo provisório que sucedeu a Revolução de Fevereiro, não havia um só russo que não acreditasse que os bolcheviques eram os únicos que poderiam retirar a Rússia da guerra.
Os bolcheviques não eram clarividentes
Ora, se a consciência dos trabalhadores russos não se diferenciavam, guardada as especificidades de seu tempo, dos atrasos, preconceitos e ilusões que vemos de outras formas nos dias de hoje, em alguns momentos com uma devoção quase religiosa por um ditador sanguinário, em outros apoiando uma guerra entre trabalhadores por interesses alheios, tampouco é verdade que os líderes da Revolução Russa eram autômatos clarividentes, imunes as pressões da realidade.
Poucos sabem que os bolcheviques, a princípio, se opuseram a manifestação de 8 de março de 1917[no calendário gregoriano] que culminariam da derrocada da centenária autocracia russa. E o motivo foi, acreditem, uma avaliação equivocada da consciência imediata dos operários russos. Meses antes desses acontecimentos, no final de 1916, os bolcheviques lideraram uma série de greves em Petrogrado em função das condições econômicas precárias dos operários. No entanto, em meio a crise produzida pela Grande Guerra, essas greves foram derrotadas e terminaram com demissões em massa. Nesse contexto, “quando se criou um comitê para organizar as manifestações de 23 de fevereiro, previstas para a jornada das operárias, os bolcheviques recursaram sua colaboração, por julgarem que toda tentativa dessa natureza era prematura. Não tinham exaustivamente provado os reveses dos meses precedentes?”. Para se ter uma ideia, dirigentes bolcheviques temiam ser fisicamente agredidos nos bairros operários caso convocassem a referida manifestação. No entanto, “no dia 23 de fevereiro de manhã, vendo que, não obstante, os grevistas saíam em passeata, decidiram participar dela” (FERRO, 1974, p. 31-32).
É uma das maiores ironias da história que o partido dirigente da Revolução de Outubro não acreditou na possibilidade de sucesso do primeiro ato da revolução. Mas não se tratava de uma questão de princípios. A evolução da consciência dos trabalhadores, em sentido oposto ao que se dava desde 1914, marchava rumo a posições cada vez mais radicalizadas diante das contradições objetivas postas pela guerra imperialista, que, anos antes, produziram o entusiasmo geral.
Mesmo Lênin, principal dirigente do Partido Bolchevique, distante estava, diante de todo esse cenário, de prever a eminente evolução da consciência dos trabalhadores na situação revolucionária que se abria. As vésperas da Revolução de Fevereiro de 1917, em janeiro, em palestra para estudantes suíços sobre a Revolução de 1905, apesar de defender que era necessário transformar a guerra imperialista em uma guerra civil contra a burguesia, terminou sua palestra com as seguintes palavras:
Nós, os da velha geração, talvez não cheguemos a ver as batalhas decisivas dessa revolução. Não obstante, creio que posso expressar com plena segurança a esperança de que a juventude, que está trabalhando tão magnificamente no movimento socialista na Suíça e de todo o mundo, não só terá a sorte de lutar, mas também de triunfar na futura revolução proletária. (grifo nosso) (LÊNIN, 1980, p.99)
Ora, Lênin não imaginava que essa futura revolução proletária já estava batendo a porta. No mês seguinte, em fevereiro, o Czar fora deposto pelos trabalhadores em luta e cerca de 9 meses depois, com várias idas e vindas, avanços e retrocessos, ilusões e desilusões, os trabalhadores, na esteira do Partido Bolchevique de Lênin e novamente organizados em conselhos de trabalhadores, os Soviets, chegaram ao poder.
Revolução Russa: necessidade e consciência
Esse processo, como podemos ver, não foi forjada pelos “autômatos da lenda”, mas por pessoas vivas. Podemos reconhecer nos dias de hoje atrasos similares nas consciências, ilusões e confusões de todo tipo. Mas, ao mesmo tempo, reconhecemos também a mesma exploração e opressão e, por isso mesmo, as mesmas necessidades. A Revolução Russa nos ensina que enquanto existir a sociedade capitalista, a revolução socialista não é um capítulo destinado unicamente aos livros de história ou a um sonho para um futuro distante, mas a única saída definitiva para os trabalhadores.
Tanto é assim que, pelo peso das necessidades objetivas, produto das contradições que o capitalismo impõe a vida de todos e todas, nos episódios que se seguiram a revolução de 1917, vimos um desenvolvimento da consciência em um sentido radicalmente oposto.
O giro foi tão radical que, agora, após a revolução vitoriosa, poucos anos após a vertigem nacionalista que apossaram de quase todos, eram os soldados das nações dominantes que voltavam suas armas para os supostos representantes de sua pátria com os olhos voltados para a Revolução Russa. Um exemplo ilustrativo foi a recusa dos soldados aliados de lutar contra o bolchevismo, como descreve Marc Ferro:
Os aliados, por sua vez, pretendiam provocar a queda dos Soviets, não apenas isolá-los da Europa por “um cordão sanitário” de pequenos Estados-tampões. Entretanto, soltados franceses e britânicos se amotinaram a partir de outubro de 1918, recusando-se a lutar contra o bolchevismo. Estas centelhas iriam logo multiplicar-se, suscitando nos dirigentes ocidentais uma preocupação maior ainda que a agitação mantida na própria metrópole pelos socialistas anti-intervencionistas. Seu efeito simultâneo foi que em 1919 Clemenceau e Lloyd George hesitaram em enviar novas tropas à Rússia. Não iriam elas voltar à Europa e executar a revolução social? (FERRO, 1974, p. 96)
Um outro exemplo pode ser encontrado na Ucrânia. Nesse país, dominado politicamente e economicamente pela Rússia há séculos, as massas de trabalhadores passaram a apoiar a Revolução de Outubro e o caminho indicado pelos dominadores de outrora. Em 1919, assim declarou um dirigente do RADA ucraniano, organização nacionalista que há décadas lutava contra o domínio grão russo: “Se nossos próprios camponeses e a classe operária não se tivessem levantado, o Governo soviético russo teria sido incapaz de fazer qualquer coisa contra nós […] formos expulsos da Ucrânia não pelo Governo russo, mas pelo nosso próprio povo” (DAVIS, 1979, p. 81).
Como se vê, a consciência das massas, apesar de suas oscilações, de suas idas e vidas, deve, certamente, servir de parâmetro para definir quando ou de que forma realizar uma dada ação. No entanto, era pautado nas necessidades objetivas, nas necessidades históricas de uma dada classe social que o Partido Bolchevique ordenava sua intervenção. Afinal, nos dizeres de Trotsky “as bruscas mudanças de opinião e sentimentos das massas numa época de revolução derivam, não da flexibilidade e mobilidade da mente humana, mas do seu exato oposto, de seu profundo conservadorismo. […] As massas entra na revolução social não com plano preparado de reconstrução social, mas com um sentimento agudo de não poderem mais suportar o velho regime” (TROTSKY, 2007a, p.10).
Com isso não se quer dizer que a consciência dominante entre os trabalhadores seja de menor importância. Ao contrário. É um fator fundamental. No entanto, seu desenvolvimento não é nada linear. A questão foi assim sintetizada por Leon Trotsky:
durante uma revolução, a consciência de uma classe é o processo mais dinâmico que determina diretamente o curso da revolução. Era possível, em janeiro de 1917 ou mesmo em março, depois da derrota do tzarismo, responder se o proletariado russo teria “amadurecido” o suficiente para conquistar o poder em oito ou nove meses? A classe operária, nesse tempo, era sumamente heterogênea social e politicamente. Durante os anos de guerra tinha-se renovado em 30 a 40%, mediante o ingresso em suas fileiras de pequeno-burgueses provenientes do campesinato e frequentemente reacionários, mulheres e jovens. Em março de 1917, o Partido Bolchevique continuava sendo uma insignificante minoria da classe operária e, além disso, existiam desacordos dentro do próprio partido. A imensa maioria dos operários apoiava os mencheviques e os “socialistas revolucionários”, isto é, os social-patriotas conservadores. A situação ainda era mais desfavorável com respeito ao exército e ao campesinato, devendo acrescentar a isto o baixo nível geral a cultura no campo, a falta de experiência política entre as mais amplas camadas do proletariado, especialmente nas províncias, o que isolou os soldados e os camponeses. (TROTSKY, 1978, p.91).
No entanto, apesar desses fatores que discutimos exaustivamente nos limites deste artigo, Trotsky continua:
tomando como ponto de partida o nível de sua “maturidade”, é necessário impulsioná-las para a frente, fazê-las compreender que o inimigo não é de maneira nenhuma onipotente, que ele está dilacerado por suas contradições e que, por trás de sua impotente fachada, reina o pânico. Se o Partido Bolchevique tivesse fracassado nesta tarefa, não se poderia nem falar no triunfo da revolução protelaria. Os sovietes teriam sido esmagados pela contrarrevolução e os minúsculos sábios de todos os países teriam escrito artigos dizendo que só visionários sem fundamento poderiam sonhar com a ditadura do proletariado na Rússia, sendo a classe operária, como era, tão pequena numericamente e tão imatura. (TROTSKY, 1978, p.92).
Como se vê, o partido joga nesse processo um papel fundamental, não por ser clarividente, nem por prever se a revolução ocorrerá em meses, anos ou décadas. Não se trata disso. Segundo Trotsky, a “ a alta têmpera do partido bolchevique se expressa não na ausência de desacordos, hesitações, e até de abalos, mas no fato de que nas circunstâncias mais difíceis ele saía a tempo das crises internas e assegurava a oportunidade de intervir decisivamente no curso dos eventos” (TROTSKY, 2007a, p.10).
A realidade que desembocou na Revolução Russa de 1917 não se diferencia da atual pelas confusões, ilusões e atrasos os mais diversos na consciência dos indivíduos e dos trabalhadores. Tampouco foi marcada pela existência de autômatos clarividentes incapazes de errar. Nem mesmo pelo fortalecimento gradual do conjunto de organizações de esquerda. Mas foi decisivo, sim, sem dúvida, a existência de um partido que nunca deixou de acreditar na atualidade da revolução e por ela regeu sua intervenção. Esta é, sem dúvida, a principal lição da Revolução de Outubro para todos aqueles que lutam e apostam na derrubada do capitalismo e na construção de uma outra forma de organização social. Essa experiência não reduz em um centímetro sequer a importância do tema da consciências das massas trabalhadoras para a realização de um processo revolucionário, no entanto, refuta historicamente qualquer interpretação de um programa revolucionário baseado em uma fenomenologia da consciência, ou seja, refuta a tese de que uma revolução pressupõem um desenvolvimento gradual e por etapas da consciência dos trabalhadores.
Referências bibliográficas
DAVIS, Horace. Para uma teoria marxista do nacionalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera. A grande guerra e o nascimento da era moderna. Rio de. Janeiro: Rocco, 1992.
FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917 . São Paulo: Perspectiva, 2004.
_______. Nicolau II – o último czar. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1992.
FIGES, Orlando. Tragédia de um povo: a Revolução Russa, 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999.
LÊNIN, V. I. 1905 – Jornadas Revolucionárias. Editora História, 1980.
_______. O oportunismo e a falência a II Internacional, 1916. In: LÉNINE, V. I. Obras escolhidas em seis Tomos . Lisboa: Edições Avante; Moscou: Edições Progresso, 1984. t. 2.
SERGE, Victor. Memórias de um revolucionário, São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. Tomo Um. Parte 1. São Paulo: Sundermann, 2007a [1930].
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