O stalinismo impôs à reconstrução histórica a ideia de uma Luxemburgo como portadora de uma concepção diferente de partido (espontaneísta, anticentralista).

Isso era funcional para apresentar o bolchevismo como uma completa inovação (de Lenin… e Stalin). Foi o Comitê Executivo da Internacional stalinizada, em março de 1935, que cunhou o termo “luxemburguismo”. A mesma interpretação tem sido retomada, ainda que para fins opostos, por supostos luxemburguistas.

Segundo a falsificação stalinista,1 Lenin já se orientava desde 1904 por uma cisão da II Internacional e pressionava por uma cisão no SPD com a direita e com o centro de Kautsky (que é apresentado desde sempre como um renegado). Isso é totalmente falso.

Ao contrário, Lenin considerava o SPD um modelo, e Kautsky um professor, pelo menos até 1909 (ano em que Kautsky escreve O caminho do poder, que Lenin reivindicava e citava de memória), e, além de alguma rara crítica, só no “4 de agosto” (1914) [quando são votados os créditos de guerra; NdoT], na II Internacional, Lenin acredita ser necessário romper com os kautskianos para encaminhar a construção da III Internacional.2

Até o verão de 1914, Lenin não critica Luxemburgo de forma alguma por não ter rompido com o SPD e, pelo contrário, é Luxemburgo quem inicia a primeira batalha contra Kautsky. Quando, em 1910, Luxemburgo acusa abertamente Kautsky de ter iniciado o caminho do revisionismo, Lenin se alinha em defesa de Kautsky. Também sobre a presença no SPD de Bernstein e do setor explicitamente revisionista, o único entre os dirigentes russos que insiste com os dirigentes alemães para que eles cheguem a uma ruptura é Plekhanov, não Lenin.3

A diferença tática (ainda que com consequências estratégicas) entre os bolcheviques e o grupo ao redor de Luxemburgo (Internacional, depois a Liga Spartacus) sobre os tempos de ruptura só ocorre no final de 1914. É nos meses seguintes que Lenin pressiona por uma ruptura também organizativa (a política já havia acontecido) da esquerda alemã com o SPD. Mas a diferença entre Lenin e Luxemburgo não é sobre os princípios de construção do partido: é uma questão de tempo, mesmo que seja importante. Por isso, em sua crítica ao “Folheto Junius”, em julho de 1916, Lenin não faz críticas de princípio à autora, ou seja, a Luxemburgo, e, mesmo criticando o adiamento da ruptura, diz-se convencido de que os spartaquistas “conseguirão ir mais longe, no caminho certo”.4

Também é sem fundamento a afirmação de que Lenin haveria criticado os spartaquistas por não terem rompido com os centristas da USPD (partido constituído em abril de 1917 a partir da ruptura do SPD). Lenin acredita, de fato, que a ruptura com os centristas já havia ocorrido nos fatos e escreveu:

Nos últimos tempos, quem está particularmente interessado em misturar os papéis tem feito um grande alvoroço sobre a suposta unificação do grupo de Liebknecht com os kautskianos na USPD. Na verdade, o grupo de Liebknecht não se fundiu completamente com os kautskianos, mas conservou a sua própria autonomia organizativa, limitando-se a constituir um bloco temporário e condicionado contra os social-chauvinistas.5

Efetivamente, Karl Liebknecht confirma que, na USPD, os spartaquistas (já funcionando como um partido autônomo) estavam fazendo entrismo para juntar forças e constituir um novo partido: coisa que ocorrerá no final de dezembro de 1918.

Nossa opinião é que foi um erro não seguir a proposta de setores da esquerda de não entrar na USPD centrista, mas é uma avaliação sobre os tempos da ruptura, não de duas concepções diferentes do partido.

Entretanto, voltando para trás, às primeiras críticas expressas por Luxemburgo no início do século 20, Lenin responde com um artigo (“Um passo à frente e dois para trás: resposta a Rosa Luxemburgo”; não confundir com o livro anterior, que tem o mesmo título e de onde partiu a polêmica de Luxemburgo).6 Nesse texto, Lenin esclarece vários erros factuais contidos na polêmica de Luxemburgo sobre o real curso do congresso e chama atenção de que Luxemburgo não está polemizando com suas posições, mas com uma falsa descrição de suas posições (“Rosa Luxemburgo, no Neue Zeit, não leva ao conhecimento dos leitores o meu livro, mas sim algo diferente”). Ou seja, Lenin não atribui a Luxemburgo uma concepção diferente de partido. Em relação à acusação de ultracentralismo, Lenin responde que Luxemburgo está polemizando com ele tendo em mente o centralismo burocrático utilizado pelos oportunistas no SPD, não as propostas concretas de Lenin.

Por fim, quem sustenta a tese de que Luxemburgo teve com Lenin não diferenças contingentes e secundárias (agigantadas pela polêmica), mas uma concepção diferente de partido, ignora também – além do que reconstruímos até aqui – que:

1) num artigo escrito em 1906 (“Blanquismo e social-democracia”),7 Luxemburgo polemiza com Plekhanov e defende Lenin da acusação de blanquismo que ela mesma havia usado pouco tempo antes contra Lenin, ou seja, corrige sua posição sobre isso;

2) já em 1905, vendo os bolcheviques e os mencheviques na revolução, Luxemburgo começa a atacar as posições do novo Iskra (justamente sobre o tema do partido) e, no Congresso de Estocolmo (1906), alinha-se com Lenin contra Martov; no Congresso de Londres de 1907, o voto de Luxemburgo é determinante para garantir a maioria bolchevique; no mesmo ano, Lenin e Luxemburgo dão uma batalha comum no Congresso de Sttutgart da Internacional;

3) em sua atividade concreta de construção do partido polaco (SDKPiL), Rosa dirigiu um partido de vanguarda fortemente centralizado;

4) em seus textos principais, além de alguns erros, não teoriza nunca algo diferente do partido de vanguarda como um elemento indispensável para levar à consciência socialista desde fora e dirigir a classe operária à conquista do poder. É Trotsky quem afirma que Luxemburgo sempre “se esforçou para educar antecipadamente a ala revolucionária do proletariado.”8;

5) nas últimas semanas de vida, no congresso de fundação do KPD (dezembro de 1918), Luxemburgo enfrenta a ala juvenil do partido, que critica um excesso de centralismo no partido nascente. Rosa responde usando exatamente os argumentos de Lenin a favor do centralismo, que os jovens (impressionados pelo centralismo burocrático do SPD) rechaçavam. Toda a evolução de Luxemburgo, como afirma também Trotsky, demonstra que estava se aproximando cada vez mais das concepções de Lenin. Uma evolução similar àquela feita por Trotsky, só que, nesse caso, não foi completada por causa do assassinato de Luxemburgo;

6) a outra polêmica usada pelos detratores de Luxemburgo ou supostos luxemburguistas baseia-se no texto A revolução russa, que era de fato um conjunto de notas escritas por Luxemburgo na prisão (setembro de 1918), quando não dispunha de mais do que notícias fragmentadas. Ela própria manifestou (para Leo Jogiches, dirigente do partido) a vontade de que essas notas fossem queimadas, porque havia mudado de ideia. Foram publicadas por Paul Levi em 1921 (quando foi expulso do partido). Mas até nesse texto, que alguns apresentam como antibolchevique, Rosa Luxemburgo escreve que o partido de Lenin “havia sido o único que havia entendido a lei e o dever de um partido realmente revolucionário”. O texto conclui afirmando: “o futuro pertence em todos os lugares ao bolchevismo.”9

Podemos afirmar, então, que Rosa Luxemburgo não estava isenta de erros e desvios centristas (como, por outro lado, também esteve o Trotsky unitário e o Lenin da ditadura democrática dos operários e camponeses). Mas entre os erros de Luxemburgo, Lenin nunca aponta o espontaneísmo ou uma suposta concepção diferente de partido em relação à sua. Por isso, mais de uma vez, Lenin disse que era necessário publicar toda a obra da grande revolucionária e usá-la para formar os militantes.

E, sempre por isso, Trotsky, num texto escrito em 1935, expressa o que nos parece ser o julgamento que melhor desmente a visão de uma Luxemburgo autora de outra concepção de partido:

Atualmente estão sendo feitos esforços […] para construir um suposto luxemburguismo […]. É inegável que Luxemburgo contrapôs apaixonadamente a espontaneidade das ações de massa à política conservadora […] da social-democracia alemã […]. Essa contraposição era revestida de um caráter absolutamente revolucionário e progressivo. […] A própria Rosa nunca se limitou à mera teoria da espontaneidade […], esforçou-se para educar de antemão a ala revolucionária do proletariado e para reuni-lo organizativamente tanto quanto possível. Na Polônia, construiu uma organização independente muito rígida. […] A teoria da Rosa da espontaneidade era uma ferramenta sã contra o aparato ossificado do reformismo. Mas o fato de que muitas vezes era dirigida contra a obra de Lenin de construção de um aparato revolucionário revelava – na verdade só de forma embrionária – seus aspectos reacionários. Na própria Rosa, isso ocorreu apenas episodicamente. […] Na prática, como já foi dito, ela mesma minava essa teoria a cada passo. Depois da revolução de novembro de 1918, ela se dedicou à árdua tarefa de reunir a vanguarda proletária.10


Obs: O presente artigo é um trecho do artigo “Aspectos históricos do partido operário revolucionário de vanguarda e de seu regime interno“, publicado integralmente na Revista Marxismo Vivo número 10.

Notas

1 Sobre o julgamento de Stalin sobre Luxemburgo, por exemplo, veja este texto de Stalin de 1931: “Sobre algunas cuestiones de la historia del bolchevismo”, disponível na internet em espanhol, no link: www.marxists.org/espanol/stalin/1930s/sta1931.htm

2 Sobre as relações entre Lenin e a II Internacional, ver: Georges Haupt: “Lénine, les bolcheviks et la II Internationale” in Cahiers du monde russe et soviétique, 3, 1966. No que diz respeito a Trotsky, acreditava que a II Internacional tenha desenvolvido “um papel histórico progressivo [que] terminou com o início da guerra imperialista”. Sobre isso, ver La terza Internazionale dopo Lenin (Schwarz, 1957, p.107).

3 Ver o livro já citado de Claudie Weill, Marxistes russes et social-démocratie allemande.

4 Para o julgamento de Lenin sobre o “Folheto Junius”, ver: “Sobre el folletto de Junius”. Em: Obras Completas, livro 30, p. 1.

5 Para o julgamento de Lenin sobre a permanência dos spartaquistas na USPD, ver: “Los social-chovinistas y los internacionalistas” (12 de maio de 1917) Em: Obras Completas, livro 31, p. 487.

6 LENIN, V. I. “Un paso adelante y dos atrás. Respuesta de Lenin a Rosa Luxemburgo”. Em: Obras Completas, livro 9, p. 39. Este artigo foi enviado ao Die Neue Zeit, mas Kautsky não publicou. Foi publicado pela primeira vez em 1930.

7 LUXEMBURGO, Rosa. “Blanquisme et socialdemocratie” (1906), disponível na internet em francês, no seguinte link: www.marxists.org/francais/luxembur/works/1906/rl19060600.htm

8 TROTSKY, León. “Luxemburgo y la Cuarta Internacional” (24 de junho de 1935). Em: Escritos, Tomo IV, p. 275.

9 As melhores reconstruções das posições de Luxemburgo encontram-se na biografia escrita de Paul Frolich em italiano (Rizzoli, 1987), dirigente que participou da fundação do KPD; depois na documentada, ainda que politicamente débil, gigantesca biografia de Peter Nettl: Rosa Luxemburg (Il Saggiatore, 1970) e também nos muitos livros e artigos do especialista do spartaquismo, Gilbert Badia. Em sua biografia, Frolich (que foi um dos delegados alemães ao III Congresso da Internacional Comunista) escreve: “Rosa Luxemburgo estava de acordo com Lenin sobre esses pontos: o partido revolucionário tem de ser a vanguarda da classe operária, ter uma organização centralizada e a vontade da maioria deve se realizar nele através de uma rigorosa disciplina na ação” (1939) (Edizione Rizzoli, 1987). Para se aprofundar na história do partido polonês, ver: Robert Loblaum, Feliks Dzierzynski and the Sdkpil: A study of the Origins of Polish Communism (Columbia University, 1984).

10 TROTSKY, Leon. “Luxemburgo y la Cuarta Internacional”, op. cit.