Uma importante polêmica instaurada no âmbito das opressões está relacionada ao direito e, mais particularmente, ao direito penal. Trata-se do debate acerca da criminalização de práticas como o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a xenofobia etc. No interior dessa discussão, por certo, existe acordo em torno do rechaço a essas práticas, mas um forte antagonismo no modo como tratá-las, o que tem como pano de fundo, por certo, distintas concepções de mundo. Para alguns, o tratamento criminal de condutas opressivas deve ser rejeitado, enquanto que, para outros, deve haver a criminalização, por mais que ela não seja a solução para o problema. Filiamo-nos ao segundo entendimento, e pretendemos aqui apresentar um ensaio muito incipiente que possibilite uma primeira fundamentação a partir do materialismo histórico-dialético.
Sobre a natureza social do direito penal e das prisões
A defesa da criminalização das práticas opressivas não deve pressupor, em nenhum momento, uma visão neutra sobre o que é o direito, sobre o que é o direito penal em particular e sobre o que é o sistema prisional. Trata-se, ao contrário, de se examinar essas categorias com o máximo rigor histórico, o que nos conduz, inevitavelmente, à modernidade capitalista.
O direito, longe de ser um corpo técnico de normas que regulamenta a vida social, consiste numa forma social bastante específica que reveste as relações de produção e as relações sociais gerais no capitalismo, e que gira em torno da formação do indivíduo moderno, apresentado como um sujeito de direito. Pelo prisma do direito e da ideologia que organiza seu discurso, cujo conteúdo liberal é bastante evidente, a sociedade é uma mera soma de indivíduos atomizados que perseguem objetivos particulares. Esses indivíduos são pensados isoladamente e de forma genérica, isto é, abstraindo-se o seu pertencimento de classe e as suas outras características sociais, sendo que a incorporação de características específicas sempre se realiza de modo incompleto e pré-determinado pela forma jurídica.
Dotado desse perfil, o direito fortalece de maneira decisiva a ocultação da coleta de mais-valia: a relação entre capital e trabalho funciona sob a aparência jurídica de uma relação contratual entre indivíduos livres e iguais. Capitalistas e trabalhadores dissolvem-se no plano aparente como meros sujeitos de direito contratantes, sendo que a distribuição legal de encargos contratuais faz do trabalhador (“empregado”) apenas um indivíduo com poucas (e cada vez mais escassas) garantias contra o outro polo contratual (o “empregador”).
O que o direito introduz na relação entre explorador e explorado é a igualdade formal entre ambos, algo impensável nos contextos pré-capitalistas, marcados pelos privilégios estamentais. E essa igualdade jurídica, por sua vez, decorre das características inerentes à produção capitalista. Há que se considerar que a produção no capitalismo realiza-se essencialmente como produção de mercadorias, sendo, por isso, presidida pela lei do valor, por uma troca de equivalentes ancorada numa profunda divisão mercantil do trabalho. Mas essa divisão do trabalho só pode moldar as feições mercantis da sociedade burguesa com tanta força porque a forma mercadoria dos produtos já está dada no âmago das relações capitalistas de produção: a força de trabalho mobilizada pelo capital no processo de produção apresenta-se, no capitalismo, como uma mercadoria adquirida na circulação e consumida na própria produção. E quando a própria força de trabalho torna-se uma mercadoria, tem-se aí, finalmente, o cenário adequado para que o produto social como um todo assuma a forma mercantil.
Desse modo, o direito surge na história a partir do indivíduo abstrato que corresponde à produção de mercadorias – produção que se apoia no caráter “abstrato” do trabalho no capitalismo, isto é, na sua aptidão de gerar valor. Com o advento do trabalhado assalariado, figura própria do modo de produção capitalista, o direito afirma-se como a forma geral das relações sociais, tal como a mercadoria emerge como a forma geral dos produtos do trabalho1. E em função desse paralelismo entre o direito e as categorias econômicas essenciais ao capitalismo, a forma jurídica carrega consigo, de modo inextirpável, o senso de equivalência formal que reside na lei do valor, pela qual os produtos são intercambiáveis a partir da comparação que se faz do valor que encerram em si (ou seja, a partir do valor de troca, a medida da equivalência mercantil entre os produtos).
Esse senso de equivalência, bastante evidente nos ramos do direito privado (em que o contrato aparece sempre com centralidade e de maneira manifesta), está presente em toda a forma jurídica, inclusive no direito penal. Aliás, chega-se aí a uma situação historicamente nova: é somente na época moderna que a pretensão punitiva do poder estabelecido assume a compleição de uma medida de equivalência focada na restrição da liberdade. Em outras palavras, foi somente no capitalismo que surgiu o instituto da pena de prisão, um tipo de castigo baseado na privação de liberdade do indivíduo por um determinado tempo como método de se garantir uma “purgação equivalente” ao dano que ele tenha causado aos demais indivíduos e à sociedade como um todo:
Para que surgisse a ideia da possibilidade de se livrar de um crime pagando com um quinhão previamente determinado de liberdade abstrata, foi necessário que todas as formas concretas de riqueza social se resumissem à forma mais simples e abstrata: o trabalho humano medido pelo tempo. Aqui, indubitavelmente observamos mais um caso que confirma a inter-relação de diferentes aspectos da cultura. O capitalismo industrial, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, a economia política ricardiana e o sistema de encarceramento com prazo determinado são fenômenos da mesma época histórica (PACHUKANIS, 2017, p. 215).
Nesse sentido, o direito penal entra em cena como a forma propriamente capitalista de exercício de um poder punitivo, e que se constrói a partir de um tipo central de punição (pena de prisão), a qual é sempre ministrada pelo Estado segundo critérios de equivalência2. Essa forma, por sua vez, traz como conteúdo não apenas a defesa dos pilares da sociedade burguesa, mas também todo um método de gestão do contingente populacional que não consegue se adequar ao funcionamento ordinário do mercado de trabalho e envereda para a criminalidade, ou que ao menos vive num contexto social que o expõe a esse tratamento.
Capitalismo, direito e opressões
O capitalismo produz e reproduz cotidianamente diversas práticas opressivas, o que se dá, não raro, à revelia da própria igualdade formal. É o caso, por exemplo, do descompasso entre os direitos civis da população LGBT e os direitos civis da população heterossexual e cisgênero. Na realidade concreta, a forma jurídica envolve determinados conteúdos conforme diversas circunstâncias variáveis que reafirmam ou distorcem, em maior ou menor medida, as delimitações gerais da forma.
Diante dessas iniquidades, há uma ilusão de que o igual tratamento jurídico dos cidadãos seria suficiente para derrotar as opressões socialmente existentes, de tal sorte que a extensão jurídica dos direitos dos(as) não-oprimidos(as) aos direitos dos(as) oprimidos(as). Por certo, o erro não está nessas reivindicações em si, mas na crença de que elas possam ser suficientes. Afinal, tal como se dá na relação entre capital e trabalho, a igualdade jurídica serve muito mais para ocultar a exploração do que para erradicá-la. Não por acaso, um típico argumento jurídico contra a criminalização de certas práticas opressivas é o de que tais práticas podem ser contempladas perfeitamente pelas regras gerais do direito. Assim, a violência contra a mulher poderia ser adequadamente tratada pelas disposições do código penal sobre agressão e homicídio, sem que houvesse necessidade de legislação específica; do mesmo modo, ofensas racistas poderiam ser contempladas no crime de injúria, que contempla formalmente todo tipo de conteúdo ofensivo, e assim por diante.
É evidente que tais argumentos não fazem senão reforçar a igualdade jurídica em detrimento da desigualdade existente em função da exploração e das opressões. Daí porque a pauta de uma criminalização específica das práticas de racismo, machismo, LGBTfobia etc., com todas as suas limitações, tem o mérito de inserir politicamente no tema a situação particular dos negros(as), das mulheres e dos LGBTs, e que não pode ser diluída numa proteção genérica da cidadania. Mas esse não é, certamente, o grande tema da discussão com os opositores de uma política de criminalização das referidas condutas.
O debate trazido por aqueles(as) que se opõe à política de criminalização das práticas opressivas parte da crítica do que seria um “punitivismo de esquerda”, ou seja, de um apoio a um aparato repressivo e a um conjunto de práticas repressivas que não poderiam trazer nada de bom aos oprimidos, e que só faria reforçar o conjunto das forças repressivas da sociedade, e que os atinge com muito mais eficiência. Com isso, alega-se, a título exemplificativo, que o apoio à pena de prisão de agressores domésticos atingirá apenas, ou com muito mais frequência, os homens pobres e negros do que os demais agressores.
No entanto, por mais que a seletividade das forças policiais e do Poder Judiciário seja um fato inquestionável do ponto de vista empírico, essa constatação não resolve o problema da situação social dos grupos oprimidos, tampouco leva em conta o fato, também inquestionável, que o direito, enquanto forma jurídica capitalista, não pode dar a esses casos nenhum tratamento que não seja o de uma medida equivalente de punição, o que decorre da própria lógica interna do direito:
Enquanto a forma da mercadoria e a forma jurídica que dela decorre continuarem a deixar sua marca na sociedade, na prática judicial manterá sua força e seu real significado a ideia, absurda em essência, ou seja, de um ponto de vista não jurídico, de que a gravidade de cada crime pode ser pesada numa espécie de balança e expressa em meses ou anos de detenção prisional (PACHUKANIS, 2017, p. 219).
Isso significa que, para evitar a proposta de prisão como medida aplicável a agressões contra membros de grupos oprimidos, só há três opções: i) tomar tais ataques como práticas condenáveis somente de um ponto de vista moral e político (fora, portanto, da órbita jurídica geral); ii) tomar tais ataques meramente como ilícitos civis (passíveis de indenizações); iii) ou tomar tais ataques como contravenções penais (crimes “menores”, passíveis de multa ou de “prisão” em regime aberto ou semiaberto). Ora, nessas três hipóteses, o que se apresenta é um tratamento jurídico “inferior” ao problema das práticas opressivas, uma reação social e institucional bastante discreta sobre o tema, e essa é uma situação que desvaloriza politicamente as pautas em questão.
Não pode haver nenhuma ilusão sobre a capacidade do direito de “resolver” o problema das opressões. No entanto, o modo de se reivindicar a intervenção do direito possui um sentido social e político que não é desprezível, razão pela qual a elaboração programática marxista sobre o assunto deve levar isso em conta, sobretudo nos marcos de reivindicações transitórias.
Programa de transição e combate às opressões
Um programa marxista para as opressões deve ser um programa de transição não apenas no sentido de fazer uma ponte entre a consciência e a necessidade, entre as demandas mais sentidas dos(as) oprimidos(as) e a estratégia revolucionária de ruptura com a ordem existente. Ele deve também ser compatível com a lógica de uma transição socialista que se pretende implementar, e que pressupõe, na qualidade de um processo de passagem, o convívio temporário entre elementos da velha ordem e da nova ordem.
Nesse sentido, a resposta programática para as opressões não pode se limitar a medidas jurídicas protetivas, já que o direito não deixa de ser um elemento próprio da sociedade burguesa que se pretende superar. Há que se incorporar medidas que sejam, inclusive, incompatíveis com a forma jurídica, como é o caso da autodefesa coletiva das massas, que traz em si a ruptura com o monopólio estatal do uso legítimo da força. Também deve entrar em cena um programa de reabilitação social que lida com as práticas antissociais com medidas terapêuticas e pedagógicas (PACHUKANIS, 2017, p. 213), e que independem de uma purgação equivalente em tempo de liberdade. Este é, inclusive, o momento mais avançado do programa, mais próximo do comunismo. Mas ele não pode ser realizado de forma imediata, não pode ser lançado de súbito como uma alternativa pronta e acabada ao sistema prisional, da mesma forma que não se pode abolir por decreto a divisão mercantil do trabalho e a circulação do dinheiro. É necessário, seja no aspecto da reação social às práticas antissociais, seja no aspecto econômico, que se opere uma reestruturação mais ampla nas bases da sociedade, o que depende do avanço de uma transição socialista, de conquistas crescentes no sentido da abundância, do desenvolvimento das forças produtivas sob o controle racional dos produtores. Até que isso ocorra, o peso do passado, seja no âmbito material, seja no âmbito cultural, estabelece limites que não podem ser vencidos pela simples força do querer3.
Nesse sentido, como resposta imediata e urgente, ainda que sabidamente incapaz de resolver a questão, o tratamento das agressões opressivas como crimes passíveis de pena de prisão situa-se nos marcos da forma punitiva geral da sociedade existente, e que não podem ser simplesmente ignorados. Na medida em que a transição sempre parte do velho para chegar ao novo, a exigência de criminalização de tais condutas deve ser entendida como um inevitável resquício de uma lógica social que se impõe num primeiro momento, mas que será superada conforme os progressos do processo transicional.
Com isso, entende-se que uma resposta programática a temas candentes da sociedade burguesa, como é o caso das opressões, deve caminhar para o rompimento com a forma jurídica e com todas as formas sociais do capitalismo, mas não pode, já em sua formulação inicial, simplesmente descartas as condições materiais colocadas. Isso atenta contra a própria ideia de transição socialista, comprometendo-se, assim, o caráter científico, e não meramente utópico, do ideário encampado por Marx. Daí a necessidade de incorporação inicial, ainda que com todo o ceticismo cabível, daquilo que a forma jurídica tem a oferecer: uma medida equivalente formal, e que não só pode, mas deve ser complementada e superada programaticamente pela autodefesa das massas e por pelas políticas superiores que podem ser conduzidas pela ditadura revolucionária do proletariado.
Referências bibliográficas
MARX, K. O capital: crítica da economia política, v. I, t. I. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione Gonçalves Correia. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2017
RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
TROTSKY, L. A revolução traída. Tradução de Olinto Beckerman. São Paulo: Global, 1980.
1 “O que, portanto, caracteriza a época capitalista é que a força de trabalho assume, para o próprio trabalhador, a forma de uma mercadoria que pertence a ele, que, por conseguinte, seu trabalho assume a forma de trabalho assalariado. Por outro lado, só a partir desse instante se universaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho” (MARX, 1996, p. 288, nota de rodapé).
2 “Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção”, afirmam Rusche e Kirchheimer (2004, p. 20). No capitalismo, a punição assume a forma jurídica da pena de prisão e da equivalência formal entre tempo de liberdade restringida e gravidade do delito. Antes do capitalismo, a prisão nunca era a punição em si, apenas um modo de reter o condenado até que lhe fosse aplicada a verdadeira condenação.
3 O capitalismo preparou as condições e as forças da revolução social: a técnica, a ciência, o proletariado. A sociedade comunista não pode, no entanto, suceder imediatamente à sociedade burguesa: a herança material e cultural do passado é insuficiente. A princípio, o Estado operário não pode ainda permitir a cada um trabalhar “segundo as suas capacidades”, o que significa fazer, o que quiser e puder, nem recompensar cada um “segundo as suas necessidades”, independentemente do trabalho fornecido. O interesse do crescimento das forças produtivas obriga a recorrer às habituais normas do salário, isto é, à repartição de bens segundo a quantidade e a qualidade do trabalho individual (TROTSKY, 1980, p. 35-36)