O presente texto tem como objetivo fazer uma breve relato do movimento homossexual no Brasil, bem como de seu histórico nas últimas quatro décadas. Apontar fatos relevantes e notáveis para as lutas de Lésbicas, Gays, bissexuais e Transgêneros (LGBTs) se faz necessário até mesmo no que diz respeito ao entendimento das condições dos oprimidos em pleno contexto de ofensiva neoliberal. Atualmente, com as explosões de movimentos insurrecionais na América Latina, o protagonismo dos estudantes, das mulheres, dos índios, negras, negros e LGBTs se destaca como força propulsora de uma avalanche de lutas que tem seu embrião, obviamente, em movimentos sociais. Assim, faz-se necessário realizar um recorte histórico – compreendido entre o Brasil dos anos de 1970 e início dos anos 2000 – para que sejam compreendidos até mesmo momentos que ora podem se caracterizar como refluxos de lutas.

É necessário compreender que a história da luta homossexual no Brasil coincide com a época da ditadura militar. O movimento homossexual no Brasil ocorre concomitante aos movimentos da juventude que , a partir dos anos 1960, passam a questionar valores burgueses relacionados à família e ao comportamento social. A repressão advinda do autoritarismo do governo incomodava os setores mais explorados e também silenciados na sociedade. A censura levava compositores de música popular à elaboração de letras metafóricas, que expressavam detalhadamente os horrores da ditadura. Dessa forma, estudantes e intelectuais se reuniam em espaços clandestinos, isolados, onde podiam discutir temas que eram alvos de perseguição da, então, Lei de Imprensa , postulação arbitrária da ditadura militar, que impedia a divulgação de matérias atentatórias à “moral e aos bons costumes”.

Em 1976, um grupo de homossexuais masculinos se reúne em São Paulo, com a intenção de realizar discussões sobre sexualidade, assim como também reagir à repressão. A recusa por neologismos caracteriza esta fase de desenvolvimento de lutas LGBts e o apoio ao jornal Lampião da Esquina descrevem importantes marcos que avançam no sentido de politizar a cultura homossexual restrita, até então, aos guetos. Assim, diante de encontros e discussões profícuas, com a intenção de unir o debate político ao debate contra opressões, nasce, em 1979, o grupo SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual. A princípio, este grupo estabelece suas raízes no movimento brasileiro, que já havia se despontado em outros setores – o Movimento Negro Unificado (MNU) e os movimentos feministas

Apesar de os apontamentos que se destacavam no grupo SOMOS reivindicarem questões que se irradiavam por vários setores que sofriam (e sofrem) com a opressão e com a discriminação, tal grupo tem sua formação inicial predominantemente composta por homossexuais masculinos. De acordo com James Green (2019, p.70) “Havia apenas uma mulher, Leila Míccolis, dentre os colaboradores e a linha editorial dava relativamente pouco espaço para lésbicas.” Talvez este dado seja mesmo um sintoma da dificuldade enfrentada pelos variados grupos diante de ideologias que apregoavam o medo e terror, o que dificultava as pessoas a se assumirem publicamente para entoar suas lutas.

A eminência de politização do movimento homossexual se fazia importante e tais pessoas, ao se reunirem, tinham como pauta o enfrentamento à ideologia anti-homossexual premente nos anos de ditadura militar. Tais lutas coadunam-se então com o movimento presente nas artes, que adquiria cada vez mais um caráter comunitarista e libertário. Assim, debates políticos aconteciam com frequência, até mesmo em conciliação com o caráter de sociabilidade que o grupo também adquiria. O próprio nome do grupo traduzia não apenas uma proposta social, mas também apontava à ação. Destarte, desse projeto inicial, subtende-se seu caráter de defesa de uma pauta democrática, contudo com um plano de ação orientado para o ativismo. Centenas de participantes passaram pelo SOMOS, e toda a sua organização se configura como um modelo para futuros grupos homossexuais os quais, depois, assomam durante os anos de ampliação do movimento.

A entrada de mulheres no grupo SOMOS se dá após debate que ocorre na USP diante de uma temática sobre movimentos de emancipação de grupos discriminados. Então, catalisar o debate sobre homossexualidade traz consequências positivas, de forma que questões vêm à tona, iniciativas surgem e a polarização também começa a ocorrer junto aos membros, a partir de aspectos que eram tratados, com o aprofundamento dos debates . A ação prototípica do SOMOS é bastante relevante diante das condições que exigia de seus membros: todos que se agrupavam deviam se identificar como homossexuais, era necessário esvaziar o caráter pejorativo dos termos “bicha” e “sapatão”, além de haver divergências com relação à acepção da bissexualidade.

A voz dos homossexuais é entoada nesse período da história pela publicação do jornal Lampião da Esquina, já citado anteriormente. É relapso discutir sobre lutas LGBTs no Brasil sem tocar no nome desse jornal, que circulou por três anos aproximadamente e contou com 37 publicações. A equipe do tabloide contava também com homossexuais masculinos e suas reportagens eram destinadas não somente a esse público, como também trazia artigos sobre travestis, mulheres lésbicas, temas raciais. O preconceito contra o jornal foi marcado por atos de intolerância, com dados de violência praticados por um grupo paramilitar, que soltava bombas em bancas em que eram vendidos exemplares do jornal. A criação e o desenvolvimento do SOMOS tem sua história vinculada ao Lampião e atos de coragem e resistência são observados em conjunto quando se observa fatos descritos nessa época.

A divisão do SOMOS traz aspectos políticos evidentes, quando um número de ativistas não aceita participar de atos em São Bernardo do Campo, durante uma greve geral em 1º de maio de 1980. Dois grupos já se faziam notar dentro da mesma organização: alguns membros destacavam a importância de unir homossexuais aos outros trabalhadores, enquanto membros divergentes acreditavam que a esquerda controlava o SOMOS através de sindicalistas que, muitas vezes, eram nitidamente homofóbicos. Dessa forma, a ruptura da primeira organização homossexual brasileira acontece, deixando membros dissidentes espalhados em grupos que não apresentaram a mesma relevância, assim como se destacam também, nessa época, outras organizações órfãs, com pouca orientação para a continuidade do movimento.

A dissidência entre membros do SOMOS desencadeou consequências inclusive entre outros grupos que já se firmavam com posições assertivas em plena era de ditadura militar. Em São Paulo, o Grupo Outra Coisa: Ação Homossexualista se desenvolve por oposição às posturas políticas junto a dirigentes sindicais, assim como as lésbicas do SOMOS se unem e formam uma entidade independente, o Grupo Lésbico-Feminista, depois de vários debates em que se evidenciavam acusações de machismo, quando as organizações iniciais se aglutinavam em debates junto a outros grupos e partidos políticos. A ruptura traz um nítido caráter político, com ares de discriminação e preconceito por parte de alguns membros. Até mesmo o Lampião da Esquina tem suas publicações comprometidas nesta época, com significativa queda de vendas. A publicação do tabloide tem seu término em meados de 1981 e, nos anos seguintes, a maioria dos grupos que se afirmava a favor do movimento homossexual também se dissipa.

O contexto dessa época, que coincide com o fim da ditadura militar no Brasil, imprime ares de democracia e de abertura de discussões, com a falácia de que novos espaços haviam de ser formado com a redemocratização. Possibilitava-se discussão de forma mais intensa sobre a sexualidade e a imprensa abria as portas para que algumas figuras homossexuais se expressassem. Esta falsa ilusão de uma superação do preconceito se estende mesmo para o comércio, que desenvolve um mercado amplo para homossexuais, já que se constituem enquanto um grupo que se insere num mercado ávido por consumidores. Assim, essas distorções terminam por significar no imaginário social uma falta de espaço para organizações de ativismo homossexual, pois tal público havia supostamente conquistado uma condição democrática.

Os anos 1980 se caracterizaram como a década em que grande número de homossexuais esvaziam o movimento diante do advento da AIDS, considerada como uma doença típica de homossexuais masculinos. Todas as ações que se mostraram anteriormente como defensoras de uma abertura sexual, agora apresentam a marca de certa reserva e cautela em tratar sobre o tema, uma vez que a AIDS trazia um estigma de possível falta de cuidados com a vida sexual. A liberdade sexual que estava sendo debatida por homossexuais agora dava sinais de preocupação: como prevenir uma doença que era pouco conhecida e que se manifestava , a princípio, em um público de homossexuais masculinos? Dessa forma, muitos ativistas voltam sua atenção para propostas de entendimento maior sobre o tema da AIDS, o que acarreta certo refluxo ao movimento LGBT que se mostrou com ares de consolidação na década anterior.

É importante caracterizar que o advento da AIDS também traz como consequência uma atenção maior às pessoas LGBTs, já que catalisa maiores debates a respeito da sexualidade e, principalmente, sobre a homossexualidade. Assim, mesmo que houvesse uma volta da militância homossexual para compreensão de um novo fenômeno, é mantida a visibilidade sobre questões do meio homossexual. A militância homossexual ganha ares introspectivos nesta época, o que acarreta algum esvaziamento das figuras LGBTs em lutas. Porém, por outro lado, faz-se necessário dar atenção ao comportamento sexual de alguns grupos sociais, diante de uma doença que se apresenta como uma ameaça real.

A década de 1990 se caracteriza com uma ressurgência do ativismo LGBTs, porém com configurações diversas. Se a década anterior denota um enfraquecimento do movimento, diante do surgimento da AIDS e de uma volta para questões de saúde, deixando o movimento enfraquecido, a década de 1990 traz perspectivas diferentes, no tocante à própria organização das pessoas que se juntavam às discussões sobre homossexualidade. Essa década não se manifesta com grandes atos de rua, nem mesmo com propostas de enfrentamento ao governo vigente, até por causa de uma maior visibilidade que os governos e as diversas mídias passam a conceder às pessoas LGBTs. As organizações, então com expressões diferentes em seus diversos movimentos, buscam realizar encontros (que já ocorriam desde a década de 1980) em que pessoas de partes diferentes do país se aglutinavam. A redemocratização da sociedade passa a adicionar o tema da homossexualidade em suas mesas de debate, determinadas ações que possuíam caráter antiautoritário enfraquecem ou são simplesmente desmobilizados e, por conseguinte, determinadas questões sobre a homossexualidade deixam de transparecer na ordem do dia. Naquele momento, fazia-se necessário criar uma imagem pública sobre a homossexualidade.

Vale ressaltar que o fim da ditadura militar dá início ao processo de redemocratização social no Brasil. Esta época histórica traz consigo maior abertura para discussões políticas e , concomitantemente, temas que eram censurados anteriormente, ganham maior expressividade em debates. Alguns grupos que possuíam outrora aspectos antiautoritários, agora se esmaecem por conta de estar sendo possibilitada a discussão até mesmo de forma pública. Assim, debates sobre sexualidade nos anos 1980 já encerram em si características de publicização mais ampla, uma vez que se tornam mais democráticos. Então, os grupos LGBTs que se construíram em década anterior, no momento citado precisam adequar-se ao contexto. O enfraquecimento dos movimentos LGBTs comunitaristas exige, assim, uma adaptação aos preceitos vigentes na época. A diminuição do número de grupos é perceptível e os grupos que se constituem a partir de então, devem estar contextualizados à época.

Dessa forma, atos e movimentos de rua com pessoas LGBTs parecem ter saído de cena no Brasil da década de 1990 e outro tipo de mobilização desponta para organizar pessoas LGBTs. Os Encontros Brasileiros de Homossexuais (EBHO), depois designados Encontros Brasileiros de Lésbicas e Homossexuais (EBLHO), debatem precipuamente questões de saúde para os homossexuais, ainda com atenção dirigida ao tema da AIDS e também trazem à baila a necessidade de fortalecer o movimento. O caráter desses acontecimentos se traduz com uma crescente aglutinação de grupos de diversas partes do Brasil, o que pode ser comprovado nas localidades em que ocorrem os encontros. Segundo Fachini (2003), São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Aracaju e Curitiba foram algumas das capitais que sediaram esses eventos e o número de grupos que se mobilizavam acompanhava um crescimento no decorrer da década, de maneira que em 1995 foram 85 grupos presentes no evento sediado em Curitiba.

Ao se estudar a história dos movimentos sociais no Brasil, com ênfase ao período da ditadura militar, é nítido perceber a presença de grupos homossexuais que se despontam com tarefas organizativas. Derrotar o autoritarismo que se manifestava na imprensa e em várias relações sociais, nessa época, é importante até mesmo para afirmar os homossexuais como agentes de mobilização . O governo autoritário impedia discussões que pudessem romper com a ordem moral burguesa. Desse modo, a temática homossexual nunca deve estar presente na imprensa, nem mesmo em quaisquer setores da sociedade.

Com o agravamento da censura, pautas relacionadas à democracia vêm à tona exatamente com a intenção de provocar discussões frente ao autoritarismo. Assim, as organizações homossexuais ganham expressão, com base em modelos que se despontam em outros lugares no mundo. Ocorrem debates sobre sexualidade em outros países e grupos homossexuais surgem no Brasil, ao mesmo tempo em que publicações alternativas objetivam dar destaque para os grupos oprimidos na sociedade. Assim, as organizações surgem com caráter combativo e se inserem na dinâmica da luta de classes, com envolvimento em movimentos sindicais e com referências políticas importantes.

A inclusão da temática homossexual à participação política demonstra o caráter que o movimento dos oprimidos se afirma também no Brasil, enquanto já ocorria em outros lugares no mundo. A organização de lutas LGBTs no Brasil desenha um caráter de luta de classes nos anos 1970, diante de uma conjuntura que apresenta aspectos de intolerância e repressão à expressão de ideias e costumes. As artes decodificam o diálogo entre os setores oprimidos, juntamente com os movimentos da juventude, estes se espelhando em grupos que se organizavam em outros lugares do mundo, como Estados Unidos e Europa.

O caráter dos grupos toma configurações diferentes diante do contexto da época , no reflexo de uma conjuntura político-sócio-cultural. Assim , é importante compreender que aspectos típicos de uma época podem ser traduzidos e mudarem de configuração em épocas posteriores. Mas as diversas conjunturas , com suas especificidades, sempre refletirão um aspecto de polarização , enquanto a moral burguesa apontar como padrão o modelo heterossexual. Romper com o histórico de opressões é impossível dentro de um sistema que objetiva desenvolver a desigualdade, para criar grupos que sejam cada vez mais explorados e oprimidos. Assim, enquanto compreendemos que de movimentos sociais podem existir diante das contradições do capitalismo , a saída para toda opressão só se dará na construção de uma sociedade em que todos os indivíduos possam se expressar, de fato, como realmente são!


Referências:

FACCHINI, Regina. Movimento Homossexual no Brasil. Caderno AEL, Campinas vol 10, nº 18/19, p.81-125, 2003.

GREEN, James N; QUINALHA , Renan; Caetano, Marcio; FERNANDES, Marisa (orgs.).História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo; Alameda; 2018.

OKITA, Hiro. Homossexualidade: da opressão à libertação. 2ª edição, São Paulo; Sundermann, 2015.