A especificidade do proletariado industrial frente ao conjunto dos assalariados

Em 1860, em um livro pouco conhecido chamado Sr. Vogt, Marx faz um balanço de todo movimento revolucionário na Alemanha nos anos de 1848-49 do qual foi participe direto e da atuação da Liga dos Comunistas naquele período. Contrasta suas posições, defendidas pela Liga, diante de todas as demais correntes socialistas existentes na época. Após citar longamente o Manifesto Comunista e assinalar a supremacia industrial da Inglaterra naquele período histórico, reafirma que uma revolução que não avance, em algum momento, até a Inglaterra seria como uma “tempestade num copo de água” e que, no seu entender, em diversos países europeus de então “falta […] o primeiro pressuposto de uma revolução proletária: ‘um proletariado industrial’ à escala nacional” (grifo nosso) (MARX, 1976, p. 102).

Não é o caso de avaliar a pertinência ou não da análise histórica de Marx. O que nos interessa, antes de tudo, é examinar por que Marx confere tal centralidade ao proletariado industrial frente a todas demais camadas do proletariado. Ou ainda, por que o desenvolvimento em escala nacional de um proletariado industrial aparece como pressuposto da revolução proletária? Cabe lembrar que tal texto foi escrito após a redação dos Grundrisse (1858-59), em que Marx examina um sem-número de funções específicas desempenhadas pelos trabalhadores assalariados para além do escopo puramente industrial e pouco tempo antes da redação de suas Teorias de Mais-Valia(1861-63) , em que contrapõe as noções a-históricas de Adam Smith sobre trabalho produtivo e improdutivo, sua acepção histórica e particular ao modo de produção burguês, mostrando como o trabalho em sua forma assalariada, que vai de um professor a um palhaço de circo, é produtivo para o capitalista que o emprega.

Como se nota, a forma assalariada, das mais diversas funções que ocupam todos os poros da sociedade burguesa, está longe de ser estranha a Marx, sendo, inclusive, exaustivamente analisada por ele. A questão inicialmente proposta persiste: qual seria, desse modo, a particularidade do proletariado industrial que o colocara como pressuposto da revolução proletária? Para esboçarmos uma resposta, nos limites deste breve texto, retomemos algumas importantes – e esquecidas – lições, presentes já no livro primeiro de O Capital e em outros importantes momentos de sua obra.

Proletariado industrial e seu número absoluto
É comum escutar que Marx sustentava a tendência à supremacia numérica do proletariado industrial em função da generalização da indústria e do seu vultuoso número na Inglaterra do século XIX e, por esse motivo, o papel que atribuía ao operariado nada mais seria do que uma impressão produzida pelo incipiente capitalismo de seu tempo, e não mais se aplicaria ao capitalismo dos séculos XX e XXI, mais estratificado e complexo. Em verdade, Marx jamais sustentou tal tese, e apenas o desconhecimento maior de seus textos de crítica da economia política possibilita sustentá-la.

Em O Capital, Marx analisa diversas tendências, presentes com particular intensidade no setor industrial em função do papel proeminente ocupado pela maquinaria, de expulsar um número cada vez mais expressivo de trabalhadores da produção, mesmo em períodos de crescimento econômico. A tese sustentada por Marx, desde pelo menos o Manifesto Comunista, é a tendência de que a maior parte da pequena-burguesia, dos camponeses, artesãos e pequenos proprietários caiam no proletariado em geral, isto é, no trabalho assalariado. Este jamais insinuou a tendência de uma hegemonia numérica do operariado frente aos demais setores assalariados. O ápice do livro terceiro de O Capital, por exemplo, a queda tendência da taxa de lucro, está fundada na variação da composição de capital, ou seja, no aumento do capital constante frente ao capital variável, do trabalho morto frente ao trabalho vivo, isto é, a tendência de substituição de trabalhadores industriais por máquinas.

De qualquer modo, nas glosas à Estado e Anarquia de Bakunin, escrito datado de 1874, Marx diz que uma “revolução social radical está ligada a certas condições históricas do desenvolvimento econômico; estas  são o seu pressuposto. Portanto, ela só é possível onde, com a produção capitalista, o proletariado industrial ocupa pelo menos uma posição significativa na massa do povo”(MARX, 2012, p. 112). . Como se nota, em momento algum Marx alude à necessidade de que o proletariado seja maioria absoluta da população, mas que ocupe ao “menos uma posição significativa na massa do povo”.

Proletariado industrial e a teoria do empobrecimento
Se o papel  por Marx ao proletariado industrial não decorre de seu número absoluto frente ao conjunto da população, não de sua mera quantidade, devemos nos direcionar às determinações qualitativas no interior do proletariado. Uma primeira resposta nesse sentido é aquela que credita tal proeminência conferida ao operariado por ser o setor mais explorado e empobrecido diante dos demais assalariados. Em suma, seu potencial revolucionário estaria assentado em sua maior precarização.  Nada pode ser mais falso que tal concepção. Vejamos a questão mais de perto.

Em sua obra máxima, Marx expôs, de início, os mecanismos alienantes que fazem dos indivíduos, sob o modo de produção capitalista, um mero suporte do processo de valorização do valor, um ser subordinado a finalidades externas a si mesmo e à satisfação de suas necessidades, mesmo para o caso dos proprietários privados ou capitalistas. A partir da terceira seção, penetra-se no interior da fábrica e são desvelados os segredos da exploração capitalista, a extração de mais-valia, a luta em torno da jornada de trabalho, o trabalho infantil e feminino, as péssimas condições de moradia da classe operária e o trabalhador aparece como um apêndice da máquina, sujeito aos seus movimentos e oscilações, dilapidado de toda criatividade, de toda realização enquanto homem, de toda plenitude. Em suma, a produção industrial, “suprime toda tranquilidade, solidez e segurança na condição de vida do trabalhador” e lhe imprime “um rito sacrificial ininterrupto […], o desperdício mais exorbitante de forças de trabalho e as devastações da anarquia social” (MARX, 2013, p. 557). Esse quadro pode induzir o leitor à conclusão de que o papel revolucionário reservado por Marx ao proletariado industrial se deve à sua condição particularmente degradante, por estar sujeito à maior ignorância, embrutecimento e degradação moral. Entretanto, essa conclusão é rigorosamente falsa e explicitamente negada por Marx.

Fosse esse o caso, muitas outras classes sociais do passado, igualmente oprimidas e exploradas, poderiam figurar como agentes de um processo revolucionário que colocaria fim aos respectivos sistemas de exploração, mas o que se verificou foi a transformação de uma forma de exploração em outra, na exata medida que as primeiras entraram em decadência. Não sem razão, após o trecho anteriormente citado, Marx diz que “esse é o aspecto negativo”. Tais atributos ainda meramente “negativos”, que mergulham a classe trabalhadora nas situações mais desumanas, não são, em hipótese alguma, suficientes para fazer deles os sujeitos da dissolução da forma capitalista e da constituição de uma nova ordem social. Tanto é assim que, logo em seguida, diz Marx que, ao lado de um exército industrial de reserva, cada vez mais miserável, os próprios mecanismos de produção capitalista exigem “a maior polivalência possível dos trabalhadores” e prossegue: “uma fase deste processo de revolucionamento, constituída espontaneamente com base na grande indústria, é formada pelas escolas politécnicas e agrônomas, e outras pelas escolas profissionalizantes, em que filhos de trabalhadores recebem alguma instrução sobre tecnologia e manuseio prático de diversos instrumentos de produção” (MARX, 2013, p. 558).

Fossem as determinações específicas da classe explorada sobre o regime capitalista marcada apenas pelos atributos negativos, isto é, pela exploração econômica, pela opressão social e dominação política como nas formas sociais precedentes, nenhum motivo existiria para ver no novo proletariado o protagonista da dissolução do capital e da construção de um novo ordenamento da sociedade. Ocorre que, ao lado da centralização de capital e da acumulação capitalista, com todas mazelas que este processo produz, também se verifica o crescimento da “revolta da classe trabalhadora que, cada vez mais numerosa, instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo de produção capitalista”(MARX, 2013, p. 832). Com isso, o “monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele”. A “centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os expropriadores serão expropriados” (MARX, 2013, p. 832).

Como se vê, ao lado de sua crescente exploração, a revolução socialista pressupõe sim uma classe numerosa, que ocupe uma posição numericamente significativa na massa do povo. Mas não somente. Ao mesmo tempo “educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo de produção capitalista”. Não se trata unicamente de uma classe que, pelo seu número, tenha a potencialidade de derrocar o poder político burguês, mas também que pela sua organização, cooperação e educação tenha a potencialidade de colocar sobre sua ação consciente a produção e distribuição da riqueza na forma de sociedade nascente. Por esse motivo, o programa de intervenção marxista se hierarquiza em direção à ditadura do proletariado, e não uma pretensa ditadura para o proletariado, sob os desígnios de reformadores astuciosos.

Em resumo, para Marx, o papel transformador do proletariado não se assenta em um pressuposto ético ou moral. Tampouco em desígnios de justiça, situados no âmbito do direito. Não se trata de aferir o quanto uma classe ou um setor de classe é explorado e, a partir disso, deduzir a necessidade de sua libertação a partir de um fundamento de natureza moral ou cristã. A acepção socialista de Marx exige mais do que esses atributos “meramente negativos”. Não se trata, aqui, da defesa dos fracos e oprimidos, mas, pelo contrário, em uma aposta que se assenta em uma classe que contém, concomitantemente à sua exploração, a força e a pulsão que permita enfrentar o velho sistema social e derrotá-lo, assim como reconfigurar a ordem social sobre novos fundamentos. Não é a fraqueza do proletariado industrial que faz dele uma classe revolucionária, mas sua força. Afinal, como seria possível, para Marx, apostar em uma classe ignorante, embrutecida e degradada moralmente para o papel de sujeito consciente em um processo de transformação social? Essa hipótese pode até soar familiar à Bakunin, ou mesmo à Lassale com sua “lei de bronze dos salários”, mas em sentido algum pode ser atribuída à Marx[1].

O proletariado industrial como produtor da riqueza do modo de produção capitalista
Posto isso, nossa questão começa a se afigurar de modo um pouco distinto. É na esfera industrial que se verifica o nível mais profundo de cooperação no processo de trabalho, em que as massas trabalhadoras são concentradas em um grau mais elevado, desenvolvendo, em comum, a produção de mercadorias. Mas não somente. O elemento central se encontra no fato de ser o proletariado industrial, enquanto produtor de mercadorias, a classe responsável pela produção da riqueza do modo de produção capitalista. Se impõe, desse modo, uma outra questão fundamental: por que somente os produtores de mercadorias, em sua acepção sensível, são considerados os produtores da riqueza do modo de produção capitalista?

Já no começo do livro primeiro de O Capital, na análise da forma mercadoria, esta última é provisoriamente entendida como “um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer” (MARX, 2013, p. 113). Não interessa a natureza da necessidade satisfeita, se esta atende ao estômago ou ao espirito, a mercadoria é tomada como algo separado de seus possuidores, uma coisa externa e, por esse motivo, a riqueza do modo de produção capitalista aparece como algo transcendente aos indivíduos e suas respectivas capacidades, apenas ligando a estes exteriormente. A riqueza do modo de produção burguês não é, desse modo, o conjunto de valores, conhecimentos, habilidades presentes no interior de um dado indivíduo, mas algo dele separado, espacial e temporalmente, e que este pode se apropriar por meio da troca.

As coisas seriam muito simples se parassem por aqui. Mas todo cenário se ofusca com a emergência da forma-dinheiro como representante universal da riqueza do modo de produção capitalista. O dinheiro aparece não apenas como meio de circulação, como medida dos valores ou padrão dos preços, mas como a corporificação universal de toda riqueza, já que todas as demais mercadorias podem ser por ele permutadas e, sobretudo, porque todo processo de produção e de circulação de mercadorias está, agora, orientado à valorização do próprio dinheiro, seja qual for as necessidades dos indivíduos e as propriedades úteis dos produtos do trabalho. Agora, tudo aquilo que pode ser trocado por dinheiro aparece como sendo riqueza, pois o dinheiro se torna a personificação desta, como Cristo é a personificação de Deus.

Imersos no fetichismo do dinheiro, com sua aparência autônoma e ofuscante, a maior parte dos marxistas não se deram conta da especificidade do trabalho operário frente àquele realizado por todos demais assalariados. Não se deram conta, em particular, da abstração realizada por Marx em todo primeiro livro de O Capital, que apenas considera o proletário industrial frente ao capitalista industrial. Isso é assim porque o capital apropriado pelos demais setores do trabalho – os serviços, a qualificação da força de trabalho, o comércio, o capital bancário e financeiro etc. –, por sua vez, exaustivamente analisados por Marx no livro terceiro de O Capital e nas Teorias de Mais-valia, provém da redistribuição da riqueza que se opera na esfera da circulação de mercadorias ou, em outras palavras, da redistribuição da mais-valia.

Isso é possível, antes de tudo, porque o capital é uma relação social, não uma coisa sensível. Sob a forma capital, todas relações de trabalho e de apropriação do excedente se desdobram sob a mesma forma social, marcada por relações sociais mediadas pelo dinheiro e relações de trabalho mediadas pela compra e venda da força de trabalho que, por sua vez, pressupõe indivíduos formalmente livres e autônomos. Mas essa forma social que se impõe universalmente jamais poderá se livrar de seu conteúdo, da base real do valor expresso pelo dinheiro [2], a imensa coleção de mercadorias que aparece no mercado irremediavelmente contraposta e externa aos seus potenciais compradores.

Não se trata, vale dizer uma vez mais, de um juízo moral, tampouco de se mensurar subjetivamente tal ou qual setor do trabalho é mais importante. As diversas funções desempenhadas pela enorme gama de atividades realizadas pelos assalariados possuem, via de regra, um valor inestimável para a sociedade. Todavia, somente o trabalhador industrial pode parar imediatamente a produção de riquezas e colocar a sociedade capitalista com seus respectivos agentes de joelhos. Isso não quer dizer, evidentemente, que a tarefa da destruição do capitalismo e da construção de uma nova ordem social compete unicamente ao proletariado industrial. Sem arrastar atrás de si parte expressiva dos demais setores explorados da sociedade, essa tarefa é, evidentemente, impossível. Todavia, cabe reconhecer que independentemente de qualquer preferência pessoal, pela função social desempenhada no interior das engrenagens capitalistas, o papel desempenhado pelo proletariado industrial em uma revolução social, tanto no século XIX como hoje, é absolutamente decisivo.

 


Bibliografia:

MARX, K. O Capital – Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.

MARX, K. Grundrisse. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2011.

MARX, K. Sr. Vogt – Volume I, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976.

MARX, K. Resumo crítico de estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin (1874) (excertos). In:Crítica ao Programa de Gotha. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 105–109.

ROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 2001.


Notas

[1] Sobre a teoria do empobrecimento, ver o apêndice ao capitulo 20 de Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx de Román Rosdolsky.

[2] Em um próximo artigo tratarei do papel dos serviços no interior da forma social capitalista, em particular, como ele é, a um só tempo, produtivo quando exercido sob o comando de um capitalista, mas, apesar disto, não é trabalho produtor de riqueza, não é produtivo quando considerado da perspectiva da sociedade em seu conjunto.

Gustavo Machado

Editor do blog Teoria e Revolução.