Como diria Marx, “A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes” e “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes”. Não é a toa, portanto, que a versão oficial sobre a história do Brasil seja a versão dos ricos e poderosos, pois estes ainda estão no poder e controlam a sociedade. Não que eles sejam invencíveis, afinal perderam inúmeras batalhas diante do proletariado. Entretanto, seguem governando, mas o fato é que a luta ainda não terminou, segue se desenrolando.
Então este livro não pretende ser imparcial, pois a imparcialidade ou neutralidade em se tratando de luta de classes, significa uma capitulação à classe dominante. Tampouco esta obra tem um objetivo escolástico. Não, trata-se de um instrumento para compreendermos a realidade histórica e social do país, e que contribua para a construção de um programa político revolucionário com a finalidade da vitória do proletariado diante da dominação burguesa.
Também estamos diante de uma leitura do país que não repete as fórmulas esquemáticas, fatalistas e etapistas, que serviu de base teórica para o stalinismo cometer inúmeras traições diante da luta do proletariado e que nada tem a ver com marxismo.
Contar nossa historia sob a ótica da classe trabalhadora explorada e oprimida é uma das maiores virtudes. Nazareno Godeiro em toda a primeira parte do livro se dedica a isso.
É uma interessante viagem no tempo. Começa com a chegada dos europeus e o processo de colonização. Não por uma visão eurocêntrica, mas sim porque aí começa a historia de exploração, espoliação e opressão de um lugar que formará um país chamado Brasil.
O debate sobre a colonização fomentou na esquerda durante décadas debates apaixonados. É retomado com uma arguta conclusão, e colocando bases sólidas para compreendermos o Brasil hoje. Tudo sintetizado no conceito apresentado de escravismo burguês.
A luta de classes aqui não começa no século XX com a industrialização do país. Mas existe desde a colonização. com mais de 300 anos de escravidão e as lutas contra essa forma mais perversa de exploração do trabalho.
Parte da colonização e do significado profundo deste processo para a compreensão de todos os períodos e momentos posteriores de desenvolvimento do país. Assim entendemos, por exemplo, a conformação de uma burguesia nacional fraca, covarde e dócil, mas também bastante autoritária e violenta. A subserviência desta burguesia, desde seu nascimento, aos interesses estrangeiros, não propriamente “imperialista”, mas o próprio livro se permite utilizar este termo, explicando que se trata justamente do fato de que, desde o início, a exploração do país possibilitou os superlucros e a formação incipiente do que viria a ser o imperialismo.
Assim como também compreendemos a formação do proletariado brasileiro forte e explosivo, um dos mais poderosos do mundo, e que surge de forma completamente diferente do proletariado europeu, tendo como base os trabalhadores escravizados e seus processos de luta contra a elite dominante da época. Os imigrantes europeus, que vieram servir de mão de obra assalariada, são um episódio em nossa história que demonstra, mais uma vez, o racismo da elite burguesa brasileira que formulou toda uma teoria do embranquecimento do país.
A escravidão tem um peso enorme na nossa historia. E não só tem implicações historiográficas, mas principalmente políticas e programáticas. É impossível um programa socialista e revolucionário hoje para o Brasil sem colocar esta questão como central.
Com um encadeamento astuto e um ritmo suave, passamos pela independência do país, pela proclamação da República, pelo processo de industrialização subordinada às grandes potências econômicas, depois pela era Vargas, o populismo, chegando ao golpe militar, a crise da ditadura e a volta da democracia burguesa.
Esta primeira parte pode parecer repetitiva para o leitor. Mas este aspecto repetitivo é próprio da nossa história. Afinal, a nossa formação quanto país desde a colônia até a redemocratização, passando por império e ditaduras, é uma repetição da luta de classes, onde a burguesia brasileira, sempre retardatária e associada à burguesia mundial, oprimiu e explorou os trabalhadores para garantir a formatação do país aos seus interesses.
Sempre negando inclusive qualquer tipo de avanço no sentido de um desenvolvimento capitalista independente capaz de se colocar melhor na divisão internacional do trabalho. Assim, se freou a reforma agrária, a urbanização foi caótica, a própria produção industrial foi submissa aos interesses imperialistas, e direitos democráticos básicos são vilipendiados, para ficarmos em alguns exemplos.
Tudo por temor do trem descarrilar pela potencialidade transformadora dos povos oprimidos e explorados, que empreenderam duras lutas no sentido da sua emancipação através dos séculos. Mas também pela covardia diante do imperialismo mundial. Como está no livro: a burguesia brasileira é dura com o povo e mole com o imperialismo.
Esta repetição histórica comprova a validade das teses da “revolução permanente” de Trotsky com um vigor que faz pensar que ele as escreveu sob medida para o Brasil. Sendo assim, as propostas programáticas desenvolvidas no livro acertam em cheio não só pela leitura profunda e correta do país, mas também por se basear neste arcabouço teórico geral.
A abordagem adotada também não é dissociada da dinâmica internacional. Este passeio na nossa linha do tempo serve para explicar as características marcantes do nosso desenvolvimento como uma nação dominada pelo imperialismo. E como a burguesia nacional nasce sócia menor dos setores dominantes imperialistas. E é a partir daí que se elucida a situação atual do país, o significado dos ano de governo do PT, a crise atual e se introduz o debate sobre o caráter do país e as tarefas da revolução brasileira.
O livro, dividido em duas partes, onde a primeira cumpre esta função histórica, resgatando a formação econômica, social e política brasileira, nos introduz ao tema mais desenvolvido da segunda parte, onde é debatido, a partir das elaborações acerca do imperialismo, a localização do Brasil contemporâneo e fenômenos ou características novas que possam existir no capitalismo atual.
É um fato a necessidade de atualização da teoria do imperialismo. Este processo deve tanto precisar o conceito, afinado com sua dimensão histórica ao longo de todo século XX, mas também deve enriquecer seu significado através da observação da realidade atual. Assim, o estudo desses mais de cem anos de desenvolvimento da dinâmica imperialista, partindo da compreensão tão bem formulada por Lênin nos primórdios do século XX, podem ajudar bastante a uma justa interpretação da luta de classes atual.
Este processo deve se nutrir dos elementos analíticos da realidade empírica é verdade, mas deve também servir para compreendê-los em sua totalidade, em toda sua profundidade objetiva e não só seu rearranjo conceitual. Assim, a teoria marxista cumpre seu propósito de servir como ferramenta para a elaboração programática revolucionária. Objetivo compartilhado tanto por João Ricardo Soares quanto por Virgínia Fontes que é com quem o autor fundamentalmente debate nesta instigante segunda parte do livro.
A definição do conceito de capital financeiro ganha peso já que é tão cara e importante para qualquer interpretação que possamos ter sobre o imperialismo. Aqui, as diferentes interpretações e compreensões, em particular do que escreveu Lênin, se desenrolam com grande didatismo.
Para João Ricardo, o capital financeiro definido por Lênin não significa necessariamente o predomínio do capital bancário em relação ao industrial. Mas o mais importante sequer é isso. Tampouco tal conceito se dá por um resultado da luta entre distintas frações do capital. Esta leitura equivocada dos escritos de Lênin está na base do pensamento não só de Fontes, mas também de Sweezy, que o livro compara em um retrato honesto, elencando as similaridades e diferenças entre ambos.
O poder do conceito do Capital Financeiro, além de que ele tem para uma justa interpretação da realidade, reside justamente no fato de ser uma categoria completamente nova que só existia quanto tendência na época de Marx. É fruto não de uma combinação aritmética de capital bancário e industrial com predomínio do primeiro. O capital financeiro é um síntese que nega e afirma tanto o capital industrial quanto o bancário, ou seja, os supera. Sendo fruto de diversos caminhos que ambos capitais fazem para manter sua dinâmica de superlucros e para uma repartição mais concentrada e centralizada da mais-valia. Esta dinâmica é o que descreve Lênin baseado na experiência empírica da conformação do monopólios através da concentração e centralização de capitais em sua época.
Com este embasamento é que se pode chegar a uma crítica pertinente do conceito de capital-imperialista de Fontes. Mas também a demonstração da aplicação do conceito sobre o caráter do Brasil ganha nova envergadura. Mas o mais brilhante na argumentação é que ela surge de forma correta. Afinal, não se parte da conclusão. Ou seja, não é porque não há acordo de que o Brasil não seja imperialista que o conceito de Virgínia não serve. Mas em primeiro lugar, que o próprio conceito não corresponde à realidade, não se comprova e não nos ajuda a compreendê-la. Por isso, em primeiro lugar, que a conclusão sobre o caráter do país se torna equivocada.
Tampouco esta análise se encerra aqui e seria errado se fizesse. Afinal, há que se ver se estando o conceito equivocado, é possível que algo nas suas características internas do capital-imperialismo (Mercado Interno, a superexploração da força de trabalho e a exportação de capitais) correspondam a justificativa de caracterizar o Brasil como imperialista.
Aqui se soma ao debate as elaborações de Rui Mauro Marini. João Ricardo retoma o conceito de subimperialismo de Marini (que apesar do nome diverge pelo vértice do conceito de capital-imperialismo), para aprofundar a questão se o Brasil hoje é mais dependente ou menos em relação ao imperialismo. O debate ganha em profundidade quando se aborda a questão da dinâmica do mercado interno na industrialização, a superexploração do trabalho e a exportação de capitais. Isto possibilita que se pinte um entendimento completo sobre o equívoco da caracterização do Brasil como país imperialista de terceira ordem. As diferenças são gritantes posto que Fontes desconhece a superexploração da periferia como traço constitutivo de países periféricos ou semicoloniais. Na compreensão sobre a dinâmica do mercado interno, Marini e Fontes ignoram o papel do fluxo de capitais imperialista para o país e destes como sendo base da industrialização. Ou seja, isto remodela toda a dinâmica da formação do mercado interno e guarda forte relações com a característica inerente da periferia de superexploração.
Mas a caracterização do Brasil como semicolônia não exclui suas particularidades. O papel de submetrópole, de plataforma de exportação do imperialismo, é um fato. Ao analisar a profundidade da industrialização brasileira, o papel econômico exercido pelo país em toda América Latina e parte do África, a relação das empresas brasileiras com o imperialismo, nos obrigam a atualizar a definição do caráter do país. Mas a discussão aqui é se tal realidade brasileira nos autoriza embasado na teoria do imperialismo de defini-lo como uma semicolônia privilegiada ou um imperialismo de terceira ordem.
A discussão apresentada por Fontes tem um mérito que merece ser destacado. O avanço da dinâmica imperialista no mundo e o processo de industrialização subordinado da periferia são um elemento importante a ser entendido, já que expõe a contradição entre fronteiras nacionais e produção mundial a níveis alarmantes. O capital financeiro se assenta na produção real de riqueza e na extração de mais-valia. Esse processo de industrialização cada vez maior da periferia (China e sudeste asiático), em que pese toda desigualdade e papel subordinado na cadeia global da produção do valor, coloca novos problemas ao capitalismo contemporâneo. O conceito de Fontes não ajuda a compreender estes novos problemas como já vimos, mas destaca a existência destes.
A finalidade do debate em seu aspecto programático se observa através do resultado político de secundarização das tarefas democrático-burguesas não realizadas no Brasil. Assim como se minimiza a importância da luta pela libertação nacional. O que, como bem afirma o livro, não tem nenhuma relação com aliança com algum setor da burguesia no processo revolucionário, pois a caracterização do país como semicolônia não autoriza isso. Aqui entramos em outro debate que é a deturpação que o stalinismo propiciou ao marxismo, utilizando-se da necessidade que o país tem de realizar tarefas democrática-burguesas para defender alianças com a burguesia. O debate aqui deve ser respondido não com uma caracterização do país, mas sim com um estudo da teoria da revolução permanente e a política adotada pelos revolucionários desde a comuna de Paris.
Por fim, os esforços para uma justa compreensão da realidade sempre se transformaram em debates acalorados entre revolucionários. A leitura desta obra se torna obrigatória exatamente nesse sentido. É a síntese de anos de estudo e esforço do marxismo brasileiro para a justa compreensão da realidade do país. E hoje, que vivemos uma conjuntura político e social tão desafiadora, retomar o debate sobre o caráter do país é fundamental. Daí a importância da leitura deste livro, seja criticando-o ou corroborando as teses aqui colocadas.