O Conselho de Deputados Trabalhadores (Operários) e a Revolução

Traduzido por:

Jean Menezes.

Apresentação
O texto de Trotsky que socializamos aos camaradas é uma publicação que trata da importância dos conselhos de trabalhadores e seu papel na organização da classe. Não é fruto de uma imaginação ou inventividade, mas a constatação do que existia no mundo objetivo, concreto e real. Após o massacre de 1905, na cidade de São Petersburgo, o Domingo Sangrento, a classe trabalhadora russa desenvolve uma arma poderosa de organização e luta contra o czarismo. Esta arma tornou-se uma ferramenta fundamental como método de organização do futuro Partido Bolchevique e ainda hoje é reivindicada como forma de organização dos trabalhadores na luta contra a burguesia: os Soviets. Em português: os conselhos. Uma forma de organização de vanguarda que foi responsável por criar um ensaio de organização de duplo poder na Rússia czarista e que marca o início, na longa duração, da maior Revolução Socialista até hoje: a Revolução Russa de 1917. O texto de Trotsky está originalmente dividido em VI partes, aqui apresentamos as duas primeiras. As demais serão apresentadas em publicações posteriores para o Blog Teoria e Revolução.

Trotsky1 escreveu este artigo, originalmente em 1906, com o título “Soviet e Revolução: cinquenta dias”, onde nos mostra que a classe trabalhadora é plenamente capaz de governar sem a burguesia, sem o czar! Isso desmascara um universo de ideologias que até o nosso tempo presente é disseminada pelos cantos do mundo. A verdade é que a classe trabalhadora não necessita da burguesia para viver e é suficiente para conduzir a produção com o trabalho associado, ou seja, a classe é capaz de fazer exatamente tudo aquilo que a burguesia não deseja e não nos permite: ditar revolucionariamente o poder de acordo com as necessidades da classe trabalhadora.

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O Conselho de Deputados Trabalhadores (Operários) e a Revolução – Leon Trotsky: Partes 1 e 2

A história do conselho (soviets) dos deputados trabalhadores (operários) de São Petersburgo é a história de cinquenta dias. De 13 de outubro de 1905, em que se celebrou a sessão fundacional até 3 de dezembro, quando foi dissolvido pelas tropas governamentais.

Como conseguiu em tão pouco tempo uma posição indiscutível, não só na história do proletariado russo, mas também na da revolução russa?

O Conselho organizava as massas, dirigia as greves políticas e as manifestações, armava os trabalhadores…

Outras organizações haviam feito o mesmo antes, faziam ao mesmo tempo e continuaram fazendo até a sua dissolução. Porém a diferença consistia em que o conselho era, ou ao menos inspirava a ser, um órgão de poder. O proletariado, e a imprensa reacionária, denominavam o conselho como “governo operário”, e de fato o conselho representava realmente um embrião de governo revolucionário. O conselho exercia o poder onde quer que já estivesse em suas mãos e lutou por ele onde ainda residia nas mãos do estado policial-militar. Antes do conselho já existiam organizações revolucionárias proletárias, em sua maior parte socialdemocratas. Porem se tratava de organizações que evoluíram em seu meio e cuja luta visava como objetivo intentar conquistar influencia entre as massas. O conselho em si era a organização do proletariado e seu objetivo era a luta pelo poder revolucionário.

Ao mesmo tempo, o conselho era a expressão organizada da vontade de classe do proletariado. Na luta pelo poder, aplicava os métodos que implica o fato de o proletariado ser uma classe: seu papel na produção, sua massa, sua homogeneidade social. Ademais, vinculava a luta pelo poder a direção imediata de toda atividade social autônoma da massa trabalhadora; muitas vezes se encarregava de arbitrar os conflitos entre os representantes individuais do capital e o trabalho.

Porém, assim mesmo, conduziu a vitória diversas greves e mediou com êxito em diversos conflitos entre trabalhadores e patrões, não foi porque existia expressamente para estas tarefas. Ao contrário, ali, onde existia um sindicato potente este se mostrava tão disposto quanto o conselho para dirigir a luta sindical; a intervenção do conselho só tinha importância em função da autoridade universal que gozava. Uma autoridade que se devia ao fato de cumprir com suas tarefas fundamentais, as tarefas da revolução, que iam muito além aos limites de cada oficio e de cada cidade e conferiam ao proletariado, como classe, um lugar entre as primeiras filas de combatentes.

O instrumento principal do conselho foi a greve política de massas. Uma greve deste tipo tem a virtude de desorganizar o poder do Estado. E quanto maior for a “anarquia” que se produzir, mais próxima está a greve de conseguir seus objetivos. Porém, isso só é certo se esta anarquia chega por meios não anarquistas. A classe que dias atrás fez funcionar o aparato de produção e ao mesmo tempo a maquinaria do poder, a classe que parando de trabalhar em bloco não só paralisa a indústria, mas todo o aparato estatal deve estar suficientemente organizado para não converter-se na primeira vítima da anarquia que originou. Quanto em maior medida a greve estrangular a organização estatal existente, em maior medida deve assumir a organização da greve as funções de Estado.

O conselho dos deputados trabalhadores proclamou a liberdade de imprensa. Organizou patrulhas de rua para garantir a segurança dos cidadãos. Dominava quase que por completo o correio, o telégrafo e as ferrovias. Pretendeu instaurar a jornada de outo horas com caráter obrigatório. Paralisando, mediante a greve, o Estado absolutista, introduzindo sua própria ordem democrática na vida das classes trabalhadores da cidade.

II

Depois de 9 de janeiro de 1905, a revolução demonstrou que predominava na cabeça das massas obreiras. Em 14 de junho demonstrou, com a rebelião do encouraçado “Potemkin Tavrichesky”2, que poderia se converter em uma força material. Com a greve de outubro, demonstrou que podia desorganizar, paralisar e colocar de joelho o inimigo. E fazendo surgir por todas as partes os conselhos operários, mostrou que era capaz de criar uma forma de poder. Neste caso, um poder revolucionário não pode apoiar-se mais que sobre uma força revolucionária ativa. O desenvolvimento da revolução russa colocou de manifesto que exceto o proletariado, nenhuma classe social esta disposta ou é suscetível de apoiar o poder revolucionário. O primeiro ato da revolução foi a luta que opôs o proletariado a monarquia na rua. A primeira vitória importante da revolução se conquistou mediante uma verdadeira ferramenta de classe do proletariado, a greve política. E o primeiro organismo embrionário do poder revolucionário foi um órgão de representação do proletariado. Na história russa moderna, o conselho é a primeira forma de poder democrático. O conselho representa o poder organizado da massa, sobre cada um de suas partes. Constitui a verdadeira democracia, sem espetáculos, sem duas câmaras, sem burocracia profissional, em que os eleitores possuem direito a reconvocar a seus representantes quando entenderem oportuno. O conselho dirige sem intermediários, mediante seus membros, deputados obreiros eleitos, todas as manifestações sociais do proletariado em seu conjunto e de seus diferentes setores, organizam suas ações de massa, lhe proporciona suas consignas e sua bandeira. Esta direção organizada das massas autônomas foi vista pela primeira vez a luz em solo russo.

O absolutismo dominava as massas, porém não as dirigia. Criava de forma mecânica um marco externo para a atividade das massas e obrigava passar por ela os elementos desbotados da nação. O exército era a única massa que dirigia o absolutismo. Porém, dirigir, não era senão outra coisa que mandar. Amontoados aos elementos que compunham o exército, o absolutismo anulava entre eles todo vínculo moral. O substituía pela igualdade de condições físicas e submetia sua vontade à hipnose embrutecedora do quartel. Porém agora, incluso a direção desta massa atomizada e hipnotizada escapa cada vez mais da influencia do absolutismo.

O liberalismo, por sua vez, carecia de suficiente força entre nós para dar ordens às massas e não tinha suficiente iniciativa para guia-las. Quando as massas faziam uma aparição pública, por mais que se reforçasse diretamente, reagiam como diante de um fenômeno natural cheio de perigos, como um terremoto ou uma erupção vulcânica.

O proletariado entrou no terreno da revolução como uma massa autônoma, com uma total independência política frente ao liberalismo burguês.

O conselho era a organização de classe dos operários” – e aí residia a fonte de sua potência na luta. Sucumbiu no primeiro período de sua existência, não podia ser de oura forma, não porque as massas urbanas o abandonaram, mas porque geralmente a revolução nas cidades está reduzida a alguns limites. As razões de sua queda há que busca-las na passividade do campo e na inercia dos elementos campesinos do exercito. Sua posição política entre a população urbana foi tão sólida como se podia desejar.

O censo de 1897 apontava uma população “ativa” de cerca de 820.000 pessoas em São Petersburgo, sendo que 433.000 eram operários e empregados domésticos. Ou seja, o proletariado constituía 53% da cidade. Se tivéssemos incluído a população não ativa a cifra, teria sido um pouco inferior (50,8%), já que a maioria de proletários carecia de família. Em todo caso o proletariado constituía mais da metade da população petersburguesa.

O conselho de deputados operários não era o representante oficial de quase meio milhão de pessoas que formavam a população da capital. Organizava cerca de 200.000, na maioria operários que trabalhavam na indústria, e apesar de sua influencia política, direta e indireta, ser muito ampla, setores importantes do proletariado (operários da construção, domésticos, diaristas, caminhoneiros) poucos ficaram por completo fora de seu raio de ação.

Entretanto, não cabe a menor dúvida de que o conselho expressava os interesses desta massa proletária “em seu conjunto”. Se nas fábricas existiam também elementos reacionários, todo mundo via como seu número diminuía, não só dia após dia, mas também de hora em hora. Entre as massas proletárias de São Petersburgo só podia existir partidários do domínio político do conselho, não inimigos. A única exceção eram os criados privilegiados, os criados dos lacaios cobertos de condecorações da alta burocracia, os cocheiros dos ministros, os especuladores da Bolsa e das cocottes3, todos conservadores e monarquistas de profissão.

Entre a intelectualidade, tão numerosa em São Petersburgo, o conselho tinha mais amigos que inimigos. Milhares de estudantes reconheciam a direção política do conselho e apoiavam suas iniciativas.

A intelectualidade diplomada e assalariada estava completamente do seu lado, salvos os elementos que se haviam deixado levar irremediavelmente pela inercia. O apoio ativo que recebeu a greve do correios e telégrafos também atraiu a atenção das camadas inferiores do funcionalismo para o conselho. Todos os explorados da cidade, as pessoas honestas, que conservavam alguma energia, se sentiam, instintivamente ou conscientemente, atraídos pelo conselho.

Quem se oporia a ele? Os representantes do bandoleirismo capitalista, os especuladores da Bolsa que jogam com a alta dos preços, os patrões, os negociantes e os exportadores para quem a greve representa percas, os provedores do submundo de colarinho branco, a banda de conselho municipal peterburguês, essa máfia de proprietários imobiliários, a alta burocracia, os cocottes mantidos à custa do Estado, os dignatários, personagens públicos pagos generosamente, os partidários da “Novoye Vremya4, o departamento de polícia, e, em geral, tudo que era voraz, grosseiro, dissipado e condenado a desaparecer. Entre o exército do conselho e seus inimigos existiam também elementos politicamente indiferentes, duvidosos ou inseguros. Os setores mais atrasados da pequena burguesia, que se mantinham a margem da política, não tiveram tempo para observar suficientemente o conselho e interessar-se por ele. Todavia, pela natureza de seus próprios interesses, se encontravam mais próximos ao conselho do que ao antigo poder.

Os políticos profissionais que existiam entre a intelectualidade, os jornalistas radicais que não sabem o que querem, os democratas roídos pelo asceticismo, proferiam grunhidos condescendentes para o conselho, enumeravam seus erros e, em geral, deixavam entender que, em caso de que eles tivessem estado na cabeça desta instituição, teriam conseguindo a felicidade eterna para o proletariado. Vamos pensar que a total impotência destes senhores os desculpa.

De qualquer forma, o conselho era efetivamente o órgão da maioria significativa da população. Seus inimigos na capital não representavam perigo algum para seu poder político se não tinham mais a proteção do absolutismo, ainda bem vivo, que por sua vez se apoiava nos elementos atrasados de um exercito composto de camponeses. “A debilidade do conselho não era inerente a ele” se não, “a debilidade de uma revolução puramente urbana”. Esses cinquenta dias representaram o período de maior vigor da revolução e o conselho foi seu instrumento na luta pelo poder. O caráter de classe do conselho estava determinado pela rigorosa divisão em classe da população urbana e a profunda antinomia política entre o proletariado e a burguesia capitalista – inclusive no marco historicamente limitado da luta contra o absolutismo. Depois a pequena burguesia se revelou bastante insignificante como para poder jogar um papel autônomo. O proletariado foi o chefe incontestável da revolução urbana e “sua” organização de classe foi seu instrumento na luta pelo poder.


Notas

1 Neste mesmo ano Leon Trotsky foi eleito presidente do Soviet de Petrogrado.

2 Referência ao maior navio de guerra russo. Há um importante filme de Sergei Eisenstein de 1925, “O Encouraçado Potemkin” (legenda em Português), disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=3i9FkLOac9s>. Acesso em 24 de junho de 2018.

3 Preferimos não traduzir esta palavra, provavelmente trata-se de um galício, presente na tradução alemã, francesa e espanhola. Pode ser entendida como prostituta; meretriz; pessoa de companhia, na lógica cafetina; pessoa que se vende.

4 Do russo para o português: Novo Tempo. Inicialmente um jornal liberal; no final do século XIX chega a divulgar a publicação de “O Capital” de Marx, mas se alinha de forma subserviente aos donos do poder. No início do século XX até mesmos os liberais se afastam. Embora de grande circulação, no que tange aos bolcheviques, apenas lhes conquistava a crítica mais profunda.

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