O modo de vida e a linguagem

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Limpar o terreno
Potencializada pela internet – uma mistura de cinema, televisão e telefone – a linguagem, enquanto um modo de vida, ganha na atualidade características singulares. De manifestação, expressão e interação, tornou-se meio de xingamento. O debate muda-se em agressão gratuita e inconsequente: ganha um caráter de práticas de graves consequências, em prejuízo dos afetos, da moralidade e de um funcionamento intelectual mínimo.

As grosserias, os preconceitos, as calúnias, as difamações, assumem o primeiro plano. Parece não haver outras formas de socialização. Como se a humanidade dos humanos desaparecesse.

A internet acentuou, no espaço unificado, mundializado, globalizado, de hoje, uma tendência de muitos outros tempos e lugares.

Um texto1 de Trotsky – de 1923 – tematiza e traz arrazoados sobre o problema. O movimento de ir e voltar implícito na leitura do texto secular é de grande atualidade.

Depurar, limpar, corrigir, expurgar, sublimar, polir, elevar… quer dizer elaborar a linguagem, em favor, da convivência tendente a humanizar o humano, em procedimentos e processos de confirmações repetidas: uma questão fundamental.

O autor descreve uma situação entre o cômico e o intrigante: “Por ocasião de uma assembleia geral na fábrica de calçados “A Comuna de Paris”, foi decidido pôr fim à linguagem grosseira e aplicar multas pelos ‘palavrões’, etc.” (TROTSKY, 2009, p. 54)

Se uma multa semelhante e atualizada fosse posta em prática no Brasil, muita gente entraria em processo de falência, inclusive as ditas autoridade desta República.

Isto pode parecer pouco; mas, efetivamente, significa muito. Caracteriza uma época e um lugar; de fato, caracteriza um momento histórico da sociedade brasileira. Delineia uma face desta forma de humanidade.

Como entender as grosserias de linguagem? Como interpretar as grosserias generalizadas? O que dizia Trotsky nos anos 1920 auxilia uma compreensão do Brasil quase cem anos depois. “A grosseria de linguagem — em particular a grosseria russa— — é uma herança da escravidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana, tanto a alheia como a própria.” (TROTSKY, 2009, p. 54)

E a grosseria brasileira? Aqui, em perspectiva histórica, tem de sobra: escravidão negra, genocídio indígena, formas reiteradas, e reinventadas, e elogiadas, de tortura, de machismo, de racismo… Por que o espanto quando acontecem repetidamente as grosserias?! Práticas fundamente consolidadas nem parecem o que são. Naturalizam-se. As grosserias nem parecem grossamente recorrentes, do cotidiano ao institucional.

A quem interpelar?
Ouvir os profissionais da linguagem? Cabe buscar uma interpretação: “Seria preciso perguntar aos filólogos, linguistas e folcloristas se eles encontram noutros países uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante e tão chocante como entre nós. Até onde sei, não existe em nenhuma outra parte.” (TROTSKY, 2009, p. 54)

A linguagem carregada de grosserias, por hipótese, se distribuiria diferentemente por diferentes classes, agrupamentos e camadas sociais.

Nas camadas populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação de escravo sem esperança e sem saída.” (TROTSKY, 2009, p. 54-55) Permanece grosseria, porém, o seu substrato é o desespero e o fechamento dos caminhos humanos, sociais, históricos.

No entanto, o tema é de maior complexidade; apresenta outros aspectos.

Mas essa grosseria nas camadas superiores, na boca de um senhor ou do intendente de um feudo, era a expressão de uma superioridade de classe, do firme e do inabalável direito do escravagista.” (TROTSKY, 2009, p. 55) No Brasil, em vez dos feudos europeus, surgem formas inda formas mais cruéis de dominação. O escravagismo, abolido formalmente em 1888, permanece em múltiplas instâncias de convivências. As grosserias continuam uma expressão senhorial. Quando penetra nas camadas populares, por deslocamento, as grosserias cumprem importante papel ideológico, como um retorno de práticas antigas não inteiramente suprimidas.

As manifestações culturais brasileiras enraizadas expressam as tradições e vivências da população em variados aspectos. Contraditoriamente, configuram-se em expressões “também da ignorância, dos preconceitos e da escravatura.” (TROTSKY, 2009, p. 55)

Palavrões e grosserias completam o arsenal à disposição dos exploradores, opressores e dominadores. De mãos limpas, por um instante, contam com a boca suja dos subalternizados. Os senhores do Brasil de hoje guardam as mãos para as ações mais pesadas, enquanto os viventes populares e trabalhadores se xingam e se dividem. Um palavrão não é pouca coisa.

O que falar?
Impõe-se ir direto ao ponto: “Mas a revolução é acima de tudo o despertar da personalidade humana em camadas que outrora nenhuma personalidade possuía.” (TROTSKY, 2009, p. 55) Não dá para desconversar. A revolução muda tudo profundamente. Ela põe em ação instâncias e camadas da personalidade humana antes, historicamente, inativas. Plenifica o ser humano. Então, qual o sentido das grosserias? Por que uma linguagem destemperadamente cheia de calúnias, difamações e falsificações? Por que não um outro modo de vida? Por que não uma outra linguagem? Por não renovar inteiramente, humanamente, os gestos?

A revolução é o desencadeamento de forças humanas, sociais e históricas, singulares, nunca vistas em outras circunstâncias e, embora exija a presença de sujeitos organizados para esse fim transformador, ela assume uma dinâmica, para além das acomodações cotidianas. “Apesar de toda a crueza e sangrenta ferocidade dos seus métodos, a revolução é, sobretudo, um despertar do sentido humano; permite progredir, dar mais atenção, à dignidade própria e alheia, ajudar os fracos e sem defesa.” (TROTSKY, 2009, p. 55) Dói fundo e abre – contraditoriamente – um aprazível horizonte humano. Não se prepara a revolução com palavrões. Ela requer consciência e ação, organizadamente. A força e a direção no interior da sociedade adquirem formas em momento de síntese transformadora.

A mulher e a criança
Sem uma compreensão da mulher e da criança em dimensões humanas plenas – sem um cerrado combate a todas as formas de opressão – superando a mitologia tendente a oprimir e a apagar a voz da mulher e da criança, nenhuma sociedade estabelece as condições mínimas do desenvolvimento humano nos seus variados aspectos. “A revolução não é uma revolução se, com todas as suas forças e por todos os meios, não permite que a mulher, dupla e triplamente alienada, se desenvolva pessoal e socialmente. A revolução não é uma revolução se não dispensa o maior interesse às crianças, que são o futuro em cujo nome ela se efetua.” (TROTSKY, 2009, p. 55)

As grosserias de linguagem não cabem no tratamento de quem quer que seja. Nem mulheres, nem crianças, nem ninguém.

Viver a vida articula-se a viver a linguagem.

A revolução é muito mais; é incontornável. Fazer a revolução é responder a perguntas básicas:

Poder-se-á criar – mesmo de forma parcelar e limitada – uma vida nova fundada sobre o respeito mútuo, sobre o respeito para consigo próprio, sobre a igualdade da mulher, sobre uma verdadeira solicitude pelas crianças, numa atmosfera em que ressoe, retumbe, estale a linguagem grosseira dos senhores e dos escravos, uma linguagem que nunca poupou nada nem ninguém?” (TROTSKY, 2009, p. 55)

A resposta é não. A linguagem participa do processo de fundação de uma humanidade plena, de uma sociedade em estado inaugural de plenitude.

A raiz do problema
As necessidades humanas tipificam-se. Articulam-se em diferentes formas:

É tão necessário para a cultura do espírito lutar contra a grosseria da linguagem como é necessário para a cultura material combater a imundice e os parasitas. Não é nada simples nem fácil dominar essa licenciosidade linguística, porque não tem as suas raízes na palavra em si mesma mas no psiquismo e no modo de vida.” (TROTSKY, 2009, p. 55)

Primeiro viver: sendo humano, social, histórico, no entanto, o viver é o modo de viver. O modo de vida é histórico e cultural. Faz-se e refaz-se ao longo de gerações e por muitos espaços.

Bem simples: “A luta contra a grosseria faz parte da luta pela pureza, a clareza e a beleza da linguagem.” (TROTSKY, 2009, p. 57) Uma concepção de humanidade, de sociedade, implica uma concepção de linguagem. As grosserias postas no interior de um modo de vida não expressam uma perspectiva revolucionária. Ao contrário.

Se é para perder os bons modos, se é para chacoalhar o modo de vida, então façamos a revolução.

Isto é consciência e compromisso.


Referências:

TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. A moral deles e a nossa. Tradução Diego Siqueira e Daniel Oliveira. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2009.


Notas:

1 TROTSKY, Leon. É preciso lutar por uma linguagem polida. In: Questões do modo de vida. A moral deles e a nossa. Tradução Diego Siqueira e Daniel Oliveira. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2009. pp. 55-57

Antonio Rodrigues Belon