O artigo “Organizando a Indignação”, sobre a ascensão do partido Podemos na Espanha, publicado recentemente no blog Convergência, causou-nos uma desconfortável surpresa. Em primeiro lugar, porque respeitamos o autor como militante revolucionário e pesquisador marxista que, como poucos, dedicou-se a estudar as mutações ocorridas no seio do proletariado na virada do século XX para o XXI. Em segundo lugar, exatamente devido ao anterior, nos surpreendemos com seus elogios a Podemos e sua postura acrítica no que diz respeito à estratégia-programa dessa organização.
Compreendendo que o debate é uma ferramenta imprescindível para se chegar à verdade científica e a um programa político que atenda aos interesses imediatos e históricos do proletariado internacional, resolvemos escrever este artigo polêmico. Ainda que possivelmente não haja acordo com seu conteúdo, temos a certeza de que o presente artigo será saudado pelo blog Convergência como uma contribuição ao debate sobre a análise e caracterização de Podemos, bem como sobre o programa e as perspectivas deste partido.
O poder de Podemos
É inegável a ascensão político-eleitoral de Podemos no Estado espanhol. Com pouco menos de um ano de existência, situa-se, partindo de um patamar de 8% de votos conquistados nas últimas eleições europeias, como primeira força eleitoral da Espanha segundo as últimas pesquisas, alcançando 28% das intenções de voto para as eleições legislativas de 2015. Isso significa que Podemos poderá chegar ao poder pela via eleitoral, conquistando uma significativa bancada parlamentar, que lhe permitiria escolher o próximo primeiro ministro da Espanha.
No artigo, afirma-se que “Podemos é o herdeiro das mobilizações do Indignados”. Exalta o fato de que as lideranças de Podemos, como Pablo Iglesias, sejam “cientistas sociais da Universidade Complutense de Madri” e que sua base social se expresse numa “geração de estudantes que trabalham e trabalhadores que estudam”. A pergunta que fica é: de que tipo de herança está se falando? Uma coisa é entender que essa herança é oriunda dos primeiros passos da luta contra a destruição de conquistas econômicas e sociais históricas do Estado de Bem Estar, que teve como base social uma nova geração da moderna classe média assalariada em vias de proletarização vitimada por um brutal desemprego e um salto na precarização do trabalho.
Exatamente devido ao anterior, é necessário lembrar que múltiplos fatores e tendências se expressaram no fenômeno conhecido como Indignados e hoje se expressam no partido Podemos. Não podemos esquecer que, quando a Marcha Negra dos mineiros das Astúrias, Leão, Teruel e Andorra chegou a Madrid, em julho de 2012, o movimento dos Indignados se dividiu entre o apoio à luta dos operários e seu rechaço em nome da defesa do meio ambiente, bem ao gosto das tendências políticas pós-modernas.
As ações dos Indignados, partindo corretamente da luta contra a Troika (Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu), se dispersaram no meio do caminho, não conseguindo chegar a definições programáticas profundas e possuindo uma tremenda confusão quanto aos seus fins estratégicos. Se Podemos é herdeiro dessa primeira etapa ambígua da luta de classes no Estado espanhol; se nessa etapa apenas começou um processo de decantação tanto no que toca aos sujeitos sociais quanto à estratégia, ao programa e às formas de organização, ou seja, se o que se está dizendo é que o Podemos é herdeiro da confusão inicial dos Indignados e que a transforma em programa, então, estamos de acordo de que Podemos é um legítimo herdeiro dos Indignados.
Por tudo isso, não podemos confundir um fenômeno eleitoral objetivamente progressivo de ruptura de massas com os velhos partidos burgueses, como o Partido Popular (PP), do atual primeiro-ministro, o conservador Mariano Rajoy, e de origem socialdemocrata, como o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), com o caráter, a estratégia, o programa e a organização do catalizador desta ruptura: o partido Podemos.
Podemos e a questão do poder
Podemos é a expressão eleitoral e contraditória de um fenômeno objetivo significativamente progressivo, marcado pelo espontaneísmo das massas, mas, diferentemente desse fenômeno que lhe deu origem, busca transformar as limitações desse mesmo processo perpassado por confusões políticas num programa de reformas do capitalismo e do Estado burguês vinculado a uma estratégia parlamentar. Vejamos.
Se, por um lado, o movimento dos Indignados foi a maior expressão, na Espanha, da crise da União Europeia e do capitalismo europeu, na medida em que suas ações se enfrentaram objetivamente contra ambos, por outro lado, seu herdeiro defende que a ditadura do capital financeiro exercida pelo Banco Central Europeu (BCE) há de ser combatida por meio da “criação de mecanismos de controle democrático e parlamentar” que permitam “a submissão dos mesmos às autoridades políticas” (Programa de Podemos). Dessa maneira, Podemos, que diz priorizar a lutar contra a Troika, cala-se diante da necessidade de estatizar o sistema financeiro e transformá-lo num um banco único sob o controle dos trabalhadores.
Radicalizar a democracia burguesa e refundar a União Europeia são os dois pilares fundamentais do programa de Podemos. Esses eixos saltam aos olhos quando se lê seu programa, no qual todos os problemas encontram sua solução na radicalização da democracia sob o Estado capitalista. Mesmo em questões econômicas tão sentidas como as demissões e o desemprego, Podemos não consegue fugir dessa lógica democratista. Por exemplo, ao reduzir a “proibição de demissões nas empresas com lucros” (Programa de Podemos), permite, na prática, que as empresas capitalistas em crise descarreguem sua falência nas costas dos trabalhadores. Por que não propor, por exemplo, estatizar sem indenização as empresas falidas que demitem?
Estratégica e programaticamente não há como elaborar um programa de ruptura com o capitalismo europeu, que tem à sua cabeça a burguesia alemã, sem se manifestar nítida e explicitamente contra a propriedade privada dos meios de produção concentrados nas mãos de monopólios imperialistas; pelo fim da União Europeia, essa máquina do capital financeiro; e por uma Europa Socialista dos Trabalhadores.
Mas isso não é tudo. As últimas declarações de Pablo Iglesias, um dos máximos dirigentes de Podemos, à cadeia de notícias e rádio online SER da Espanha, de que o governo da Catalunha “não tem competência para levar a cabo uma declaração unilateral de independência”, que “os processos devem responder à legalidade e à democracia” e que “o direito a decidir não deve ser exercido unilateralmente, sem acordo com o Estado”. Com essas palavras de Pablo Iglesias, Podemos desconhece que uma República Catalã livre ofereceria a base democrática para construir uma união livre dos povos do Estado espanhol. Na prática, propõe aos trabalhadores e aos povos catalães esperar a vitória eleitoral de Podemos para garantir sua autodeterminação.
Por fim, mas não menos importante. Coloca-se, também, diante de Podemos o problema do fim da monarquia e da proclamação da Repúblicaem um possível processo constituinte. Fica a pergunta: Podemos defenderá explicitamente ou não a proclamação da República? Um possível primeiro-ministro espanhol de Podemos saído do resultado das eleições parlamentares de 2015 colocará ou não na ordem do dia a tarefa inadiável de liquidar o moribundo regime monárquico-parlamentar do Estado espanhol? Sem o cumprimento dessa tarefa democrática elementar não se pode falar seriamente nem mesmo de democratização do Estado Espanhol.
A organização de Podemos
A rigor, Podemos se constrói como um aparato eleitoral, na medida em que ignora olimpicamente o movimento sindical espanhol. Não se preocupa em levantar uma política para a reorganização do movimento sindical que parta dos princípios da independência de classe e da democracia operária para combater as decadentes burocracias e reconstruir sua unidade para lutar contra a Troika e o governo Rajoy.
Tampouco o partido de Pablo Iglesias propõe a unificação do movimento operário com os movimentos populares, de imigrantes, de mulheres, de juventude e LGBTT, numa mesma organização de frente única, a exemplo da CSP-Conlutas no Brasil, mantendo uma relação exterior e passiva com a reorganização dos movimentos sociais, marcada ainda por uma significativa fragmentação.
Por outro lado, apesar de todo o seu discurso horizontalista, a direção de Podemos, a chamada equipe de Pablo Iglesias, controla burocraticamente a organização e desfez em meses sua própria promessa de que “não se cobraria a ficha de inscrição a ninguém”. O golpe aplicado por Pablo Iglesias e sua equipe contra a Izquierda Anticapitalista (IA), proibindo esse grupo de se manter como tendência interna e participar na direção de Podemos, fala muito sobre o que é e como funciona esse agrupamento político.
Aqueles que se sentem muitas vezes horrorizados com a dureza do centralismo democrático tendem a se calar diante dos descalabros do democratismo pequeno-burguês, tão democrático no verso e tão totalitário nas ações.
A face regressiva de Podemos
O surgimento dos Indignados na Espanha e de outros movimentos semelhantes, como Somos 99% e Occupy Wall Street, ocorreu com profundas contradições. Se, por um lado, esses movimentos eram extremamente progressivos na sua luta contra a União Europeia, o imperialismo norte-americano e, em última análise, contra o capitalismo, por outro lado, possuíam características regressivas ao ignorarem e mesmo rejeitarem as organizações da classe trabalhadora como os sindicatos, contraporem o consenso à democracia operária, fazerem apologia ao horizontalismo e possuírem um programa que não vai além da radicalização da democracia.
Ao ter sua origem nos Indignados, Podemos assimila e potencializa suas características mais regressivas e renega seu lado progressivo, a mobilização contra a União Europeia, o imperialismo e seus ataques, desviando essa mobilização para dentro do regime, para o parlamento e eleições.
O movimento dos Indignados, apesar das muitas confusões reinantes, levava as massas a se mobilizarem, a buscarem na ação a resolução de seus problemas, o que desestabilizava a monarquia-parlamentar espanhola. Podemos, na medida em que institucionaliza os Indignados, constitui-se como uma organização política regressiva, uma vez que canaliza a resolução dos problemas operários e populares para as próximas eleições.
Nesse sentido, podemos citar Wagner Miquéias F. Damasceno no artigo “Eleições, individualismo e classes sociais”, publicado no Blog Convergência, citando analista do El País TV sobre a conjuntura política espanhola: “Se o espetacular crescimento do Podemos responde à magnitude da ira cidadã, imaginem essa ira cidadã sem o Podemos? Imaginem essa ira descontrolada, solta, nas ruas? Os que criticam muito o Podemos deveriam começar por reconhecer o valor que tem a contribuição do Podemos à condução de toda essa ira dentro das margens da democracia”.
Podemos percorreu rapidamente o caminho de um amplo movimento de oposição antirregime a uma alternativa de esquerda “radical”, mas para nada rupturista em relação ao Estado Espanhol, ao regime democrático burguês e à União Europeia.
Aonde vai Podemos?
Mesmo que Podemos seja a expressão subjetiva de um fenômeno objetivo relativamente progressivo, é preciso alertar o movimento operário e demais movimento sociais sobre suas limitações ao invés de embelezar suas flagrantes debilidades.
Suponhamos que Podemos se desenvolva desde sua forma atual sem grandes lutas e enfrentamentos, internos e externos. Para onde apontará esse desenvolvimento? Para uma organização que proporá cada vez mais explicitamente a reforma o capitalismo e a democratização do Estado burguês como horizonte estratégico? Ou para uma organização que, como o Bloco de Esquerda em Portugal ou o NPA na França, irá de adaptação em adaptação e de crise em crise sem um programa e uma estratégia definidos?
Tanto uma como outra hipótese representam um beco sem saída. Esse beco sem saída pode ser elevado à décima potência no caso de Podemos, na medida em que essa organização é forte candidata a vencer as eleições parlamentares de 2015 e indicar, quiçá, o futuro primeiro-ministro da Espanha.
Somente a partir de uma análise e caracterização marxistas, bem como de uma correta delimitação estratégica e programática com Podemos, é que poderemos definir as táticas para lidar com esse fenômeno. Vale destacar que, no entanto, possíveis definições táticas não são objeto deste artigo.
Marxistas revolucionários sérios, não podem se deixar levar pelo impacto da ascensão eleitoral meteórica de Podemos. Mais, não podem deixar de julgar fenômenos como Podemos, sem considerar a evolução do processo Indignados/Podemos e o quanto a ambição de Podemos pelo poder por meio da via eleitoral silenciou a indignação dos Indignados. Em última instância: não podem e nem devem perder o horizonte estratégico e programático diante de novas organizações anticapitalistas de caráter neorreformista, como é o caso de Podemos.
Referências
ALEGRÍA, Felipe e CAMPANERA Nuria. Podemos dice que los catalanes no podemos. Site da LIT-QI: www.litci.org.
AYALA, Ricardo e ALEGRÍA, Felipe. Izquierda Anticapitalista y Podemos: ¿Construyendo una alternativa anticapitalista? Site da LIT-QI: www.litci.org.
BRAGA, Ruy. Organizando a Indignação. Blog Convergência: <www.blogconvergencia.org>
DAMASCENO, Wagner Miquéias F. Eleições, individualismo e classes sociais. Blog Convergência: <www.blogconvergencia.org>
PODEMOS. Un Proyecto Económico para la Gente. Fonte: <http://www.gaceta.es/sites/default/files/programa_economico_de_podemos.pdf>
SER, Cadena. Entrevista a Pablo Iglesias. <http://cadenaser.com/programa/2014/11/17/hoy_por_hoy/1416194538_610319.html>