No dia 5 de janeiro foi publicado na Folha de São Paulo o artigo “Cavalgaduras à caça de Marx”. A princípio seria mais um texto de opinião do jornal, escrito por mais um colunista que, talvez passasse despercebido a qualquer leitor um pouco mais desatento. Mas, ao entrar no debate sobre Marx e as polêmicas da atualidade, o texto nos chamou a atenção. O autor do artigo defende Marx de ataques que vem sofrendo no último período, principalmente de um grupo que enxerga um espectro marxista rondando o Brasil e esse espectro existiria há muito tempo. Porém, é preciso refletir se tal defesa foi bem sucedida, afinal estamos precisando aprender a defender o velho alemão. Para tal, vamos à alguns pontos que acreditamos serem fundamentais às nossas reflexões. Primeiro, não podemos deixar de negar que ele faz uma afirmação muito verdadeira quando diz: “Aqui[Brasil], um bando de brutamontes macambúzios só ejacula ao maltratar Marx, do qual não leu uma parca página”. Sim, é verdade que um conjunto de pessoas, que reapresentam politicamente a Nova Direita brasileira, sentem até prazer ao detratar o filósofo alemão sem nem ao menos conhecer a fundo sua obra. Mas é verdade também, que muitos daqueles que reivindicam o marxismo como uma chave de leitura da realidade( o que já demonstra um despreparo enorme com essa postura) reivindicam o autor sem ao menos dedicar horas de trabalho na compreensão das linhas deixadas em suas obras. Preferem na verdade, um caminho mais fácil, dos interpretes. Assim, temos marxistas à la brasileira que, na verdade, são althusserianos, gramscinianos, até mesmo, frakfurtianos. Ou seja, tanto à esquerda quanto à direita, encontramos esse representante que: “não leu uma parca página.”

Mas não queremos aqui aprofundar nesse debate (haverá o momento para essa reflexão); então, voltemos ao artigo. O autor procura, ao longo de seu texto, demonstrar o qual injusta é a perseguição à Marx. A tese de nosso autor seria: a perseguição a Marx se dá pelo fato de que, seus detratores, não conhecem sua obra, são ignorantes que o atacam, pois se o conhecessem, perceberiam que ele é um pensador importante, que trouxe contribuições importantes para o pensamento, assim como, por exemplo, Spinoza o fez. Ou seja, se é estranho detratar Spinoza, também é detratar Marx. A principio compreendemos como esse argumento é tentador. Afinal, Marx é sim um pensador de máxima envergadura, brilhante em suas analises e que revolucionou o pensamento filosófico, rompendo barreiras e desvelando a forma de organização de nossa sociedade. No entanto, esse argumento carrega um problema, que a nosso ver é gravíssimo e, por incrível que possa parecer, longe de ser novo.

Sim, Marx é mais um pensador que entrou para história por suas contribuições. Mas será mesmo apenas mais um filósofo, que possui discípulos e um conjunto de obras escritas? Assim, estaria lado a lado com Platão, Aristóteles, Descartes e Locke, desfilando conceitos que construíram o pensamento Ocidental? Acreditamos que não.

Em uma celebre frase de sua autoria, presente na Crítica à Filosofia do Direito – Introdução, ele diz: “Ser radical é tomar as coisas pela raiz.” Tomamo-la emprestado para demonstrar porque Marx se distingue dos demais pensadores. Em sua trajetória, o alemão buscou incessantemente a raiz, o fundamento das relações humanos. O desvelar da realidade não se deu por conceitos pré fabricados, ou por uma metodologia abstrata, concebida previamente para captar aquilo que lhe era relevante. Ao longo de sua elaboração, Marx deu vida ao real, reconstruindo criticamente os nexos constitutivos do mundo humano, “(…) evitando, porém, mutilar qualquer dos elementos primitivos como um mau trinchador”, nos dizeres de Platão em Fedro, quando este explica o que é um dialético. Ou seja, Marx respeitou a totalidade da realidade, dando vida matéria e nos fazendo compreender quais seriam as bases mais fundamentais da sociabilidade humana. Não foi epistemológico, não foi ontológico ou qualquer outro lógico da filosofia que podemos nos lembrar. Ele quis mais do que isso. E justamente por querer trilhar o caminho da totalidade do real, rompeu com a tradição filosófica, rompeu com a metafísica. Compreendeu que não se estabelece critérios prévios para conhecer o real, precisamos simples começar a conhecê-lo. Não estipulou limites para as possibilidades do saber, mas se pôs efetivamente a produzir saber sobre o que é. E por isso foi único. Assim, não é só mais um filósofo que podemos listar em uma folha sob o título: Grandes Filósofos da Humanidade. Ele revolucionou o pensamento, pois queria revolucionar a realidade.

Assim, o autor de nosso artigo peca ao tratar Marx como mais um grande pensador. Mas não foi o único a fazer esse caminho. Ao longo do século XX, vários teóricos trataram Marx como mais um pensador da tradição, do qual podemos aproveitar conceitos ou uma metodologia. Então, poderiam nos perguntar: qual seria o problema desse tratamento? Parafraseando Trotsky em sua critica à Kautsky, ao fazer isso estariam esses críticos tirando a juba do leão. Ao tratar Marx como mais um pensador da tradição, estamos tirando a potência de seu pensamento, que é revolucionário por natureza. Estaríamos recolocando Marx dentro da tradição, menosprezado a originalidade subversiva de seu pensamento. Estaríamos condenando uma parte importante de sua elaboração ao esquecimento.

Mas sabemos que, tirar a juba do leão não o transforma em um gatinho, ele continua sendo um leão. Portanto, o que se faz é mutilar o pensamento de Marx ocultando aquilo que incomoda, aquilo que não serve. Não à toa, o autor do artigo da Folha volta aos Manuscritos Econômicos Filosóficos para mostrar o qual brilhante o filósofo alemão é. Esse movimento, de resgate aos Manuscritos é muito recorrente. Claro que não estamos menosprezando tal texto. Sabemos que este possui um papel importante na trajetória de Marx. Mas resgatá-lo como demostração da grandeza de Marx, é colocar o nossa autor nessa lista de grandes filósofos apenas. Isso porque os Manuscritos ainda não apresentavam o pensamento de Marx em sua forma acabada, em toda a sua originalidade. Nos perguntamos: por quê não resgatar o Capital? E a resposta é mais do que autoevidente. Porque significaria resgatar, não apenas filósofo, mas o revolucionário. E nos dias atuais, ser revolucionário caiu em desuso. Ou seja, a conclusão final é: podemos até ser marxistas, desde que defendamos o Estado Democrático de Direito! ‘Transformem Marx em economista, sociólogo mas não digam que é revolucionário!’ ‘Mostrem como é erudito, digam que leu Goethe!’’, “Digam que não se meteu em política, que nunca defendeu um partido!”, brandam os defensores de Marx da atualidade. Mas jamais digam que ele afirma que, o que ele de novo trouxe foi: “que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado”e “que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes.”

E é justamente por isso que o autor do artigo comete um erro grave em seu texto. Defender Marx seguindo esse raciocínio é querer convencer o leitor de que Marx é inofensivo. Ou seja, sua elaboração, suas descobertas, caso tenham valido em algum momento, serviram para um momento histórico longínquo e que hoje não possui qualquer efetividade. É dizer que qualquer perseguição a Marx é descabida, pois suas ideias são apenas ideias!

Queremos dizer apenas que: não! Marx não é só mais um filósofo. E sim, está correta a burguesia de combater suas ideias. Porque suas ideias são a síntese da necessidade da classe trabalhadora colocada em prática. E na prática a derrubada da burguesia é o fim. Quem tem medo de Marx são aqueles que acreditam que o capitalismo tem jeito, que pode ser ‘concertado’ e por isso fazem de tudo para transformá-lo em um gatinho indefeso.

Um gatinho muito assustador
Como dissemos, compreendemos perfeitamente o combate duro que a burguesia dá ao pensamento de Marx e achamos, inclusive, muito natural. Afinal, o pensamento do alemão é o único pensamento revolucionário, o único que desnuda a contradição das relações capitalistas e suas mazelas. No entanto, no último período o que a burguesia brasileira tem combatido é o gatinho em que a tal esquerda transformou Marx. E a resultante final desse debate ultra qualificado é uma grande histeria coletiva. Transloucados gritam e rosnam em busca de atacar e desqualificar seu oponente em um opera de surdos, reproduzindo teses e conceitos que jamais existiram e que, se examinados com acuidade, demonstraram seu vazio imanente.

A tragédia do marxismo do século XX, em que pretensos revolucionários mutilaram, deturparam e sangraram o pensamento do filósofo, transformou-se na verdade do século XXI. E o que a direita tem combatido nada mais é do que essa falsa verdade construída sob escombros de uma teoria brilhante.

Marxismo cultural, dominação ideológica, disputa de hegemonia são jargões que encobrem a real disputa em curso hoje: quem vai administrar o aparato do estado? A ala conservadora e liberal ou os liberais sociais, juntamente com os sociais democratas? Apenas um ingênuo não vê o que efetivamente ocorre no cenário político nacional. Esquerda, direita são termos que não se referem a nada de concreto e obscurecem as reais perguntas a serem feitas: quais as necessidades atuais da classe trabalhadora brasileira? Como resolver? Qual programa para se construir essa saída?

Assim, a tarefa dos revolucionários, de fato, é superar essa panaceia em que se encontra o debate. Vamos superar a histeria e recolocar nos trilhos os verdadeiros conceitos, resgatando o Marx revolucionário que tanto tem a nos ensinar. E, assim como ele, vamos à raiz dos problemas e teorias que queremos combater, fazendo uma disputa ideológica digna de nosso querido alemão que nos legou páginas como as contida na Ideologia Alemã, nos mostrando como debater com nossos adversários. Vamos recolocar a juba no leão!