O escritor espanhol Jorge Semprún ao prefaciar o interessante livro de Fernando Claudin, A Crise do Movimento Comunista, destaca: “é impossível se pensar a reconstrução teórica, a análise interna do itinerário da Internacional Comunista e do Estado russo, no período staliniano, sem recorrer aos aportes e às elaborações de Trotsky” (CLAUDIN, p.12). Apesar de reconhecer o grande valor das “análises críticas de Trotsky, frequentemente certeiras, às vezes proféticas, acerca dos erros da Internacional Comunista staliniana na China, na Alemanha, na Espanha, na França da frente popular” (CLAUDIN, p.12), o autor ressalta que estas acabam por se esterilizar, convertendo-se em “postulações que flutuam no limbo da abstração e do irrealismo” (CLAUDIN, p.13), pois o revolucionário russo não teria chegado aos fundamentos da estratégia que foi alvo de sua crítica. Segundo a interpretação de Semprún, para Trotsky, “bastaria desalojar dos postos que usurparam os “maus pastores”, Stalin e seu grupo, para que esta mesma Internacional, este mesmo partido russo retornassem às suas vias internacionalistas e revolucionárias”. Assim, para o espanhol a elaboração de Trotsky padeceria de subjetivismo, um “idealismo subjetivo e voluntarista”. No mesmo caminho José Chasin comenta a respeito dos limites das críticas empreendidas por Trotsky à URSS: “(…) o enorme equívoco mundial, alimentado desde Trotsky, que entendeu os graves problemas do leste europeu, ou seja, do então chamado sistema socialista mundial e, por decorrência, os do movimento comunista internacional, como de natureza e resolução políticas”(CHASIN, 1999, p.25).
Como se vê, foi um lugar comum entre as elaborações do século XX caracterizar as impetuosas críticas de Trotsky ao regime soviético como sendo de natureza meramente política. Para estes autores, toda trama girava em torno da mera substituição de pessoas, dos stalinistas pelos trotskistas, que munidos de uma concepção correta e justa, reconduziriam o movimento comunista internacional para o reto caminho. Tal avaliação teria fundamento à luz das elaborações do revolucionário russo? Como explicar as análises certeiras empreendidas diante de tantos fenômenos históricos, como indicara Semprún, com uma concepção tão estreita? Como se sabe, uma das razões centrais das avaliações supracitadas, encontra-se na avaliação de Trotsky de que a camarilha dirigente na URSS somente poderia ser derrubada pela violência revolucionária, todavia “caracterizava a derrubada da burocracia como revolução política, em oposição à revolução social de 1917” (TROTSKY, 1980, p.221)(1). Ora, como caracterizar os graves problemas soviéticos da época, as desigualdades econômicas entre a casta dirigente e o restante da população, a unidade partido-estado, a repressão desenfreada contra opositores e potenciais opositores dentre tantos outros, como passíveis de resolução no estreito escopo de uma revolução política? Vejamos então a validade de tal interpretação à luz dos próprios escritos de Leon Trotsky.
Como se sabe, em 1926, dois importantes lideres da revolução de outubro (Zinoviev e Kamenev) rompem com Stalin e se aliam a Trotsky, em uma coalizão que ficou conhecida como oposição unificada. Como relata Trotsky, em um dos primeiros encontros realizados pela oposição em princípios de 1926, Kamenev teria dito: “o bloco não é realizável, isso é bem lógico, a não ser que você tenha a intenção de lutar pelo poder. Nós nos temos perguntado, muitas vezes, se você não se acha fatigado e decidido a se limitar, daqui por diante, à crítica por escrito sem tomar parte na luta?” (TROTSKY, 1937, p.130). Segundo Kamenev, bastaria Trotsky e Zinoviev se apresentarem como oposição no próximo congresso do partido, que devido ao prestígio que gozariam entre as massas trabalhadoras, a burocracia sucumbiria de imediato.
Ironicamente, Trotsky destaca em seu comentário deste episódio que a oposição de esquerda “já tinha feito uma ideia bastante acabada do segundo capítulo da revolução e do desacordo crescente entre burocracia e o povo, da degenerescência nacional-conservadora dos dirigentes em vias de se converterem em nacional-conservadores, da profunda repercussão dos desastres do proletariado mundial nos destinos da U.R.S.S. A questão do poder não se apresentava isoladamente, quer dizer, desligada destes processos essenciais. O papel da oposição nos tempos a vir deveria ser necessariamente um papel preparatório. Era preciso formar novos quadros e esperar os acontecimentos” (TROTSKY, 1937, p.130). Neste cenário, Trotsky respondera a Kamenev: “Não me sinto em absoluto fatigado, porém penso que devemos nos armar de paciência por um tempo bastante considerável, por todo um período histórico. Não é questão hoje de lutar pelo poder, mas de se prepararem os instrumentos ideológicos e de organizar a luta pelo poder em benefício de um novo impulso da revolução. Quando sobrevirá este novo impulso, não o sei” (TROTSKY, 1937, p.130-131).
Como podemos perceber, Trotsky não vê no mero assalto ao governo a solução para os graves problemas sociais soviéticos. Ironiza aqueles que acreditam ser possível retomar o caminho trilhado a partir de outubro de 1917 por meio de ações isoladas, quarteladas ou pela mera substituição dos agentes que compõem o governo. Aponta, assim, para a necessidade de uma “revolução política com alma social”. Neste sentido, destaca a necessidade de retomar o trabalho anterior à 1917, atuar em meio a classe trabalhadora e impulsioná-la, jamais pretender substituí-la. Neste caminho, concluí: “os leitores de minha autobiografia, de minha História da Revolução Russa, de minha Crítica da Terceira Internacional, da Revolução Traída não aprenderão nada de novo neste diálogo com Kamenev. Eu não o menciono aqui a não ser porque ele jorra arma suficiente sobre a tolice e o absurdo da “intenção” que nos atribuem os moedeiros de Moscou: fazer retrogradar a revolução a seu ponto de partida de outubro de 1917 – por meio de alguns tiros de revólver!” (TROTSKY, 1937, p.131). De fato, o referido diálogo com Kamenev se coaduna com toda elaboração do revolucionário russo. Como se sabe, durante toda a vida, Trotsky combateu grupos terroristas russos que acreditavam ser possível uma revolução social “por meio de alguns tiros de revólver”, desgarrada da ação conjunta e organizada da classe trabalhadora. Para Trotsky, a ação política somente se reveste de caráter transformador quando subordinada às forças sociais que a compõem. Durante toda sua vida combateu o subjetivismo superficial daqueles que procuram “estimular a História com alfinetadas”, com ações fundadas no voluntarismo e predispostas à aventura.
Neste caminho, neste mesmo artigo que ora comentamos, a relação entre política, Estado e revolução social será melhor determinada:
“Para o partido do proletariado o poder é o meio de transformação social. O revolucionário que não aspirar a por ao serviço de seu programa o aparelho de repressão do Estado não será bom para nada. Colocado neste plano, a luta pelo poder não é um fim em si; responde a toda a ação revolucionária: educação e comunhão das massas trabalhadoras. A conquista do poder derivará logicamente desta ação” (TROTSKY, 1937, p.133-134).
Como se vê, para Trotsky, a ação política não é posta de maneira descolada e separada das forças sociais que a conformam. O revolucionário russo desdenhava aqueles que viam a degeneração da revolução russa como de natureza técnico-adminstrativa, passíveis de solução com novos agentes governamentais.
Ora, tendo em vista todas as considerações anteriores, em que sentido a derrubada da burocracia no interior da URSS seria uma revolução política em contraposição à uma revolução social? Como conciliar as reflexões de Trotsky sobre a natureza da política, assim como, das profundas raízes sociais da burocracia soviética, com a delimitação de uma revolução soviética como meramente política? Tais aparentes contradições se dissolvem tão logo deixemos de considerar o processo soviético em si mesmo, mas no interior das relações globais do capital em que este se insere. Quando ressalta Trotsky o caráter político da revolução do proletariado soviético contra à burocracia, não está a apresentar a solução última dos problemas que afrigem a URSS, mas, muito mais, seus limites. Entrincheirada em suas fronteiras nacionais, imersa em relações comerciais sob a égide do capital e limitada pelo atraso de sua disposição social específica, como poderia a república soviética, no interior de seus limites nacionais, transitar para além do capital? De uma perspectiva marxista, esta saída é, evidentemente, impossível. Ao assinalar a derrocada da burocracia soviética como uma revolução política, Trotsky não nega sua base social, mas acentua que tal revolução jamais poderia negar as determinações universais e supra-nacionais do capital, manifestas na figura do mercado mundial, enquanto estiver circunscrita à União Soviética.
Como se sabe, sob a forma histórica capital se desenvolveu a grande industria e o mercado mundial que interligou entre si todos os povos da terra, produzindo uma dependência recíproca entre todos eles. O intercâmbio mundial de produtos provenientes desta transformação histórica foi sem dúvida o que propiciou um enorme avanço das capacidades produtivas da civilização humana, elevando suas potencialidades a níveis inauditos. Todavia, tal intercâmbio se desenvolveu as custas da separação absoluta entre os trabalhadores e os meios de produção, sob os estreitos limites da valorização do valor, da forma capital, que subordinou aos seus interesses todos atributos particulares dos indivíduos e das nações. Neste cenário, toda e qualquer revolução social nacional será limitada e necessariamente retrocederá caso não se estenda para o conjunto dos países que compõem o mercado mundial, caso não suprima em absoluto as relações de troca cuja finalidade é a acumulação de capital. Como se vê, para os marxistas, não se trata de abolir o intercâmbio mundial de produtos, mas de submetê-lo a outros fundamentos, aquele da satisfação das necessidades humanas racionalmente e socialmente conduzidas.
Neste sentido, qualquer revolução social nacional, mesmo que socialize os meios de produção, mesmo que exproprie o conjunto da propriedade capitalista, permanecerá sujeita às determinações do capital com quem deverá se relacionar no âmbito externo. Por outro lado, se isolar do mercado mundial significa restringir as forças produtivas aos recursos e capacidades nacionais, significa abrir mão de toda riqueza propiciada por um sistema cooperativo mundial de produção, significa um sistema produtivo aquém daquele oferecido pela própria forma capital. Por isto, o socialismo é, por definição, um momento de transição e de tensão entre a nova e a velha sociedade, em que não avançar significa necessariamente retroceder. Ciente de todas estas noções elementares, antes de atribuir à Stalin e seu grupo a responsabilidade primeira pela burocratização da URSS, Trotsky assinala o oposto: é o surgimento da burocracia que explica a origem e a consolidação do stalinismo. A burocracia, por sua vez, é um fenômeno associado ao atraso social russo, conjuntamente com o fracasso da revolução internacional, processo este acelerado pela guerra civil. Assim, o stalinismo é a expressão ou manifestação da burocracia e não sua origem ou gênese histórica. A burocracia apresenta-se como chave explicativa do stalinismo e não o contrário. Neste percurso, somente a expansão da revolução de outubro, somente a tomada do poder pelo proletariado em outras nações colocaria os pressupostos para supressão do mercado mundial. Somente com a tomada do poder pelo proletariado nos principais centros do mercado mundial estarão dadas as condições para se abolir não apenas os agentes imediatos do capital, os capitalistas, e sua expressão jurídico-nacional, a propriedade privada, mas o próprio capital.
Retornamos, assim, ao ponto de partida. A chave da burocratização e do futuro desmonte da URSS não estaria exatamente no fracasso das revoluções que se seguiram ao outubro russo? Não teria contribuído para este malogro o papel da Internacional Comunista, sob o controle burocrático e absoluto de Moscou, nos processos revolucionários da Alemanha, China, França, Espanha entre outros? Justamente aqueles processos que Jorge Semprún reconhecera as críticas de Trotsky como “frequentemente certeiras” e por “vezes proféticas”?
Tais noções eram elementares aos marxistas do início do século XX. Todavia, desde então, foram obscurecidas pela concepção dominante do socialismo em um só país, fomentada pelos ideólogos de Moscou. No Brasil, em particular, diversos autores procuraram a via brasileira para a revolução descolada da unidade do proletariado mundial tendo em vista a tomada do poder. Neste cenário, surgiram as diversas teorias desenvolvimentistas e etapistas que visavam preparar as bases econômico-sociais para uma revolução socialista nacional situada em um futuro distante. Mesmo um autor como István Mészarós, apesar de corretamente ressaltar que a URSS não transitou para além do capital; antes de tomar como centro a questão do fracasso da revolução internacional, minimiza o ato político de tomada do poder pelo proletariado por este atacar apenas o capitalismo e não o capital. Ora, como pensar a dissolução do capital, sem tomar como pressuposto a tomada do poder político pelo proletariado, não apenas em país, mas no conjunto dos países dominantes do mundo? Pensamos, ao contrário de Mészarós, que o desmonte da URSS apenas reforça a necessidade de construção de uma Internacional, assim como põe relevo na necessidade da tomada do poder do Estado pelo proletariado. Neste sentido preciso já salientava Marx em 1850: “os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só num país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado” (MARX, grifo nosso).
Como se vê, para Trotsky, a derrubada da burocracia seria apenas uma revolução política, não porque os problemas soviéticos eram de natureza meramente política ou superestrutural, não porque são passíveis de resolução com a mera substituição dos agentes governamentais; mas porque aquela revolução social, situada além da expropriação capitalista, somente poderia se desenrolar no escopo da revolução internacional. Diferentemente da caracterização de Chasin sobre o pensamento de Trotsky, este aponta para os “graves problemas do leste europeu” como de natureza e resolução histórico-social. O que não concebeu é que tais entraves sociais fossem passíveis de resolução no interior de um estado operário isolado, sujeito as determinações globais do capital através do mercado, que alimentavam internamente a casta burocrática, germe da restauração capitalista. Por isto, dirá que o futuro da URSS ainda não estava resolvido e duas possibilidades históricas se colocavam inelutavelmente: “a derrota do proletariado europeu significaria, infalivelmente, o naufrágio da URSS. Se, ao contrário, os trabalhadores da Espanha se impõem ao fascismo, se a classe operária francesa se lança ao caminho da sua emancipação, as massas oprimidas da URSS, erguendo-se, levantarão bem alto a cabeça. Soará a última hora do despotismo stalinista” (TROTSKY, 1937, p.189). Apesar das idas e vindas do século XX, sabemos, infelizmente, qual das possibilidades propugnadas por Trotsky prevaleceu. Sua crítica mostrou-se, diferentemente da constatação de Semprún, também como “certeira” e quase “profética” com relação ao devir da União Soviética e do stalinismo.
Referências
CLAUDIN, Fernando. A crise do movimento comunista. São Paulo, Global, 1985.
CHASIN, José. “Ad Hominem – rota e prospectiva de um projeto marxista”. In.: Ensaios Ad Hominem , Tomo I – Marxismo. Santo André: Ad Hominem, 1999.
TROTSKY, Leon. Da Noruega ao México. Rio de Janeiro, Epasa, 1937.
_______. A revolução traída. São Paulo: Sundermann, 2007.
_______. Uma vez mais: a União Soviética e sua defesa. In: ___. Em defesa do marxismo. São Paulo: Proposta, 1980.
MARX, Karl. Mensagem do Comitê central à Liga dos comunistas. Disponível em:http://orientacaomarxista.blogspot.com.br/2008/09/mensagem–do–comit–central–liga–dos.html
(1) Para corroborar tais avaliações, também se recorre ao diagnóstico de Trotsky de que “a situação política mundial no seu conjunto caracteriza-se, antes de mais nada, pela crise histórica da direção do proletariado”. Sobre esta questão, não trataremos neste breve comentário.