Uma esquerda que diz: Graças à Deus!

O grupo Rappa tem uma música bem conhecida, em que uma parte da letra diz: “Eu não preciso de muito dinheiro, Graças a Deus.” em que, talvez, se traduza uma característica importante da consciência dos brasileiros no geral. Como um dos maiores países cristãos do mundo, a população carrega em sua forma de compreender a realidade e em sua conduta de vida traços importantes do pensamento cristão. Acreditamos que isso nos ajude a explicar porque a esquerda nacional move-se com tantos ares de cristandade.

Falar sobre esquerda e direita talvez tenha virado um clichê no último período. A polarização das relações sociais trouxe à tona o debate ideológico mais explicito e as pessoas passaram a se identificar com um dos lados em disputa e, consequentemente, analistas políticos, meios de comunicação especializados, acadêmicos de plantão passaram a adotar tais denominações para se referir aos fenômenos políticos brasileiros. Mas pouco se diz sobre o que faz uma pessoa se reconhecer de esquerda ou de direita.

Assim como acontece com as torcidas de futebol, as pessoas tem vestido a camisa da esquerda ou da direita partindo de sentimentos e pulsões que caracterizariam os campos políticos. De um lado, os defensores dos direitos humanos, de outro, os defensores do livre mercado. De um lado, os defensores da diversidade, de outro, os defensores de padrões tradicionais de comportamento. De um lado, os bons, de outro, os maus. Mas, espera, quem seria bom e quem seria mau? Aí depende de que lado do binômio você se encontra! Ou seja, a relativização, a pura subjetividade e a individualização primam como critério quando nos referimos a posição política adotada.

O que queremos dizer é: no último período o debate político refugiou-se quase que por completo no campo da moralidade e isso traz consequências importantes para os desdobramentos políticos e sociais em nosso país. Quando dizemos de moral, nos referimos à proposições sobre a conduta humana que possuem um altíssimo grau de universalidade, pois precisam comportar o conjunto amplo de relações entre indivíduos. Tamanha universalidade na prática gera um esvaziamento do conceito e acaba por dizer nada ou quase nada sobre o fenômeno a que se refere. Vejamos na prática. O que no fundo se quer dizer com direitos humanos? Dizem: “precisamos defender os direitos humanos!¨ mas o que seria ‘humanos’? Uma massa indeterminada de gente que está contida em um conjunto uniforme de relações?

Quando nos referimos ao conceito ‘humano’ aparentemente nos comunicamos muito bem, aparentamos nos fazer entender e aparentemente há um consenso sobre o que se diz. Afinal, vários passam a ser adeptos do tal “direitos humanos”. Mas se pararmos para destrinchar o termo nos encontraremos em um grande embrolho. O dicionário diz que humano é aquilo: “relativo ao homem ou próprio de sua natureza”; “composto por homens”. Mas que diabos é a natureza humana? Há mais de dois mil anos os filósofos estão tentando achar uma resposta para esta pergunta. E composto por homens? Então, é uma massa indiferenciada de gente. Mas olhando para a realidade percebemos que essas definições cabem muito pouco ou quase nada nas relações efetivas.

Olhando ao nosso redor percebemos que os indivíduos possuem interesses específicos, posição social específica, condições de existência específicas. Essas condições ajudam a construir os indivíduos no mundo, estabelecendo relações específicas e construindo a sociedade em que vivemos. Assim, dizer de uma massa de gente é não dizer nada, já que as especificidades que nos ajudam a compreender o processo social são apagadas. Quando dizemos humano não nos referimos a nada que especifique a que estamos nos referindo. Existe um abismo entre o homem na Grécia Antiga, na Florença Renascentista ou no Rio de Janeiro Contemporâneo, mesmo que todos sejam homens. É uma ideia ampla e extremamente abstrata. Isso gera um problema enorme. Como defender direitos para algo indeterminado? A verdade é que quando se diz: direitos humanos, na prática, se evoca muito mais um sentimento de caridade e complacência com o outro do que propriamente uma ação em particular. Para agirmos precisamos saber como, por quê, para que fazemos o que estamos fazendo.

Nesse sentido, resgatar as especificidades das relações sociais é mais que fundamental. Se fizermos esse mesmo movimento com as demais pautas que estão sendo defendidas pela dita esquerda, perceberemos que o problema é o mesmo. Ser de esquerda passou a ser um sentimento que pode ser sintetizado da seguinte forma: “queremos um mundo melhor”. É claro que existem pautas específicas, como a defesa das cotas nas universidades ou a defesa da união entre pessoas LGBTT’s, mas que, para a maioria dos defensores dessas pautas, as justificativas estão centradas em argumentos puramente morais.

Se voltarmos no tempo, descobriremos que esquerda já foi uma denominação para movimentos políticos que defendiam a tomada do poder, pois a sociedade estava centrada na exploração de uma classe sobre a outra. Então, como chegamos ao ponto de entender esquerda como um sentimento de amor ao próximo?

A chave para essa resposta encontra-se na metamorfose sofrida pelo movimento de esquerda nas últimas décadas no que diz respeito a sua leitura da realidade. Ao longo do século vinte, uns sem números de organizações compreendiam que vivíamos em uma sociedade capitalista, organizada para garantir a produção e circulação de mercadorias. Isso gerava a constituição de classes no interior dessa sociedade, uma vez que a riqueza produzida era apropriada de modo desigual. Além disso, a produção dessa riqueza era feita a partir da relações de exploração e opressão, o que ajudava a explicar o motivo pelo qual uma massa de pessoas vivia em condições tão ruins, muitas vezes beirando a extrema pobreza.

Com algumas variações, esse era o grosso da explicação de mundo que uma parte significativa de organizações que se localizavam no campo da esquerda utilizavam para entender o mundo ao seu redor. Mas, essa explicação foi sendo abandonada no último período. Não porque era errada, ou por não dar conta das relações sociais. Ela foi abandonada muito mais pelo fato de a esquerda ter se adaptado a esse mundo e passado a compreender que destruir essas relações, que sustentam essa forma de organização de sociedade, não é possível, ou é tarefa para um futuro muito distante.

Citando o professor José Carlos Reis: “De 1979-1989, as massas eram revolucionárias, lutavam contra o sistema, em busca da liberdade, sonhavam com a construção de uma sociedade justa e moral; agora, seu movimento é para dentro da ordem que as exclui, lutam para se integrar de algum modo nesta ‘sociedade-mercado livre’ (…) A sociedade-mercado livre exerce sua pressão impondo uma contradição: exclui e exige a integração, forçando as massas a ‘resistirem’. Agora, ‘resistir’ não significa opor-se radicalmente à ordem, tentar quebrá-la, viver a relação social como conflito. Ao contrário, ‘resistir’ significa aceitar a ordem e lutar para ocupar os melhores lugares, as posições mais vantajosas, obter privilégios, conquistar propriedades, ter acesso a símbolos e situações de poder”. E ainda, acrescentaríamos, agir para que a consciência se apazígue frente as desigualdades.

Esse não é o retrato da esquerda atual? Ao não se enfrentar com as relações que produzem as mazelas da realidade, as contradições que sustentam nossa sociedade, essa esquerda só pode querer que essa sociedade a aceite. Assim, toda a pauta torna-se individual, subjetiva. É o eu que está em busca de uma melhor posição social. E ao construir pautas gerais, que abarquem os conjunto das relações sociais, essas só podem ser vazias, pois as determinações reais, as relações específicas que explicam porque a vida está ruim, precisa ser apaga ou colidem com as formas específicas de nossa sociedade. Portanto, temos a defesa dos direitos humanos, que cabem ao grego antigo, ao florentino renascentista ou ao carioca contemporâneo. Tais direitos universais, se revestem, na nossa sociedade sob a designação de direitos democráticos.

Então quer dizer que somos contra existência de uma luta por direitos? Estamos dizendo que é errado os indivíduos quererem incorporar-se à sociedade que os excluí, que não os aceita? Que somos contra a existências de mecanismos que defendam a integridade das pessoas, contra qualquer tipo de violência? Ou, dizendo bem claro, somos contra a luta por direitos democráticos?

Dizemos categoricamente que somos a favor das lutas por direitos democráticos. Inclusive entendemos que essa luta é fundamental para o conjunto dos explorados e oprimidos. Mas dizemos que não somos a favor de qualquer luta democrática. Somos a favor de recolocar o conteúdo novamente em seu lugar. Pergunta: por que se defende, no geral, direitos para um jovem negro da periferia e não se defende à um banqueiro branco? No fundo, sabemos a diferença mais profunda entre ambos. Mas, se tangencia o problema sem jamais se confronta a base que sustenta essa diferença. E queremos que ela fique evidente.

Sim, vivemos em uma sociedade de classe. Sim, ela é centrada na exploração. E sim, sem acabar com a exploração não teremos direitos democráticos. E essa verdade, precisa ser resgatada e dita aos quatro cantos do vento. Então, o conteúdo a ser recolocado é o conteúdo de classe. É o conteúdo que específica a sociedade capitalista, frente as demais formas de sociedade e que nos faz entender quem é homem na contemporaneidade.

Não defendemos direitos democráticos pelo bem comum. Não defendemos direitos democráticos, pois nossa consciência ficará em paz a noite sabendo que fizemos o certo. Defendemos direitos democráticos para construir um caminho de completa transformação social, o caminho da revolução, uma vez que sabemos que sem revolução não teremos direitos.

O mais curioso da esquerda cristã é que ela cita a frase do Heine presente na obra de Marx “a religião é o ópio do povo” para criticar a massa da população mas ela mesma sofre da doença que tanto ataca. Quanto a direita, em breve trataremos dela. Enquanto isso, lutemos para superar esse maniqueísmo que tomou conta das lutas em nosso país.

Ana Godoi