A compreensão do que vem a ser economia no pensamento de Marx deu margem a um sem-número de elaborações. Qual seria, afinal, o estatuto da economia em seu pensamento? Dessa última questão emerge uma outra, não menos importante: que papel teriam e em que consistiriam os domínios estruturais e superestruturais? É sabido que esses dois termos, apesar de utilizados umas poucas vezes pelo autor de O Capital, se transforaram na pedra filosofal da maior parte dos manuais sobre marxismo publicados nas últimas décadas, não sem influência do stalinismo. No entanto, mais recentemente, tais noções têm sido recorrentemente negadas pela grande maioria dos autores e correntes políticas, dentro e fora do marxismo.1
De um lado, vemos o famigerado economicismo que se caracteriza por subordinar os aspectos conjunturais e políticos da realidade a uma esfera dita “econômica”, que seria essencial e causadora dos demais domínios da realidade. Nessa interpretação, a economia seria uma esfera particular da realidade, predominante sobre as demais. No outro polo, grande parte das correntes marxistas contemporâneas que procuraram fugir desse economicismo, não sem alguma influência do pós-modernismo, tenderam, sob distintos caminhos, a autonomizar as esferas superestruturais, tais como a política, a cultura, a comunicação, bem como as determinações específicas de um dado país ou nação.
Apesar disso, nos textos de Marx, pensamos, não encontramos sustentação nem para uma abordagem, nem para a outra. Ao mesmo tempo que estudou ao longo de toda sua vida os nexos objetivos do modo de produção capitalista, se se quiser estruturais, como atesta O Capital e seus diversos esboços e manuscritos preparatórios, seus textos destinados a análise de casos particulares – como aqueles sobre a Índia, Espanha, China e Irlanda – se baseiam em uma análise minuciosa de todo o tipo de dados empíricos disponíveis, das características particulares no desenvolvimento históricos dos países considerados, dos acontecimentos políticos e diplomáticos que se desenrolam a cada dia, das elucubrações parlamentares, em suma, todo tipo de informação que esteja ao alcance de sua mão. Como conciliar a análise econômico universal de O Capital com suas investigações dos casos particulares e conjunturais – marcados por tantos detalhes e pormenores? É tendo em mira lançar luz sobre a presente questão que pretendemos, nessa breve nota, esclarecer alguns aspectos do pensamento de Marx quanto a esse tema.
Economia e determinações estruturais
Marx escreve no Prefácio a Contribuição a crítica da economia política de 1859 que “o conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social”. Por esse motivo, o “modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (MARX, 1971a, p. 28).
Ora, muito se tem escrito a respeito de qual ou tal esfera da vida humana é preponderante. Alguns argumentam ser a linguagem e a comunicação. Para outros, trata-se da razão ou, ainda, a religião, a arte, a cultura. Apenas para mencionar um exemplo, Feuerbach argumenta que o traço distintivo do homem é sua capacidade de abstração, de pensar o gênero e não apenas intuir instintivamente os seres singulares que se mostram aos sentidos. Alguns marxistas, procurando se contrapor a tais abordagens, afirmaram ser o trabalho a esfera central a partir da qual todas as demais florescem. Chegando ao ponto de, em algumas abordagens mais extravagantes, fundamentar a argumentação no possível fato de o trabalho ter se originado em um momento anterior ao demais domínios da vida humana. Na versão cristalizada pelo stalinismo, teríamos, de um lado, a estrutura ou a economia determinando, quando não, causando as demais esferas da vida social.
Em todos esses casos temos sempre um princípio dogmático posto no começo como mais fundamental que os demais, a partir do qual se desdobra toda uma teorização do essencialmente humano. Pensamos que nada disso se faz presente nos escritos de Marx. Mas se é assim, em que sentido ele pôde afirmar que as relações de produção constituem a base concreta, a estrutura econômica da sociedade sobre a qual se eleva os demais domínios humanos?
A resposta a tal questão foi obscurecida por uma acepção equívoca do que seria, para Marx, economia. Embebida por sua significação recente, em que a Economia se transmutou em uma disciplina específica das assim chamadas ciências humanas, aos olhos dos estudiosos contemporâneos, a mera postulação do papel fundante ou estrutural desse domínio da realidade sobre os demais, de imediato ganha ares de determinismo, reducionismo, unilateralismo e uma imensidão de outros qualificativos depreciativos.
Esse quadro é, devemos admitir, compreensivo. De fato, a economia contemporânea, aquela praticada pela academia, pelos gestores de empresas e governos, presente nas revistas especializadas e em cadernos específicos dos jornais, que faz senão reduzir o conjunto das relações sociais, do emaranhado de acontecimentos cotidianos, perpassados pelo suor, energia e embates de todos os tipos, em um conjunto de regularidades abstratas, números e fórmulas matemáticas, algorítimos e sofisticados modelos, para, somente então, oferecer a via mais adequada para gerir a sociedade e suas partes constituintes? Realmente. A economia, assim entendida, de redução em redução, de abstração em abstração, pode até ter alguma serventia para gerir o capital, com suas formas gélidas e silenciosas, mas jamais pode servir de base para um movimento revolucionário, jamais pode ser uma fonte viva para um programa de transformação social.
Com isso, ganhou coro entre os próprios marxistas que a economia, essa disciplina específica e entediante, constitui apenas um domínio específico da realidade, acessível apenas a um seleto grupo de intelectuais um tanto excêntricos. Para analisarmos a realidade e, a partir daí, extrairmos a forma e o modo de intervenção, deve-se se somar a economia uma série de outros domínios só tenuemente conectados: a política, a cultura, o direito, a comunicação e outros tantos. Todos eles justapostos e arbitrariamente articulados uns aos outros, quando não, completamente isolados e autonomizados. Essa justaposição de partes sem qualquer nexo objetivo, essa articulação de domínios diversos por artifícios puramente subjetivos, alguns acreditam se tratar de uma “síntese de múltiplas determinações”. Nada poderia ser mais vulgar.
De fato, o que observamos em O Capital é o exato oposto daquele procedimento que acabamos de indicar sobre a economia corrente. O que Marx procura mostrar é que por trás dos números impressos em cada mercadoria nas prateleiras das lojas e dos supermercados; por trás dos números que acompanham cada célula de papel-moeda, bem como títulos de pagamento, ações, contracheques; por trás dos números um tanto misteriosos que quantificam as taxas de juros, o PIB e o que mais que se queira; oculta-se certos tipos específicos de relações entre pessoas que os explicam, que lhes conferem sentido, ou ainda, mais precisamente, estabelecem que tais relações entre pessoas apareçam por meio desses signos abstratos e não de outra forma. Mais fundamentalmente, na forma capitalista em que Marx se detém, por trás da relação entre indivíduos abstratos, sempre mediadas pelo capital em suas várias formas igualmente abstratas, encontra-se a relação entre classes sociais, grupos de pessoas que partilham certas determinações sociais em comum e cujos interesses objetivamente e necessariamente se opõem e, por isso mesmo, classes sociais em luta.
Nesse sentido, antes de reduzir a sociedade à sua dimensão econômica, o percurso trilhado por Marx é o exato inverso: explicitar a dimensão social do econômico, tipos específicos e bem determinados de relações entre pessoas velados por trás da forma acabada e estática dos números impressos em mercadorias, contratos e estatísticas, assim como da materialidade mesma do emaranhado de produtos do trabalho que lhe dão suporte. Nessa direção, ao explicitar as relações sociais por detrás dos fenômenos econômicos de todo o tipo, tais como preço, valor, capital, lucro, salário; Marx não reduz as demais relações sociais à categorias econômicas, pelo contrário, explicita, como temos dito, que as categorias econômicas são relações sociais. O fato de que esse percurso teórico de Marx tenha sido, tão comumente, tomado como reducionista é a asseveração cabal de que fora pouco ou nada compreendido.
Mas se paramos por aqui não explicamos absolutamente nada. A pergunta a ser respondida é a seguinte: por que motivo Marx parece dar ênfase aos nexos estruturais ou econômicos das relações sociais ou, ao menos, conferir a esses um estatuto particular dentre o emaranhado dos demais fenômenos igualmente sociais? Isto é assim, antes de tudo, porque as relações econômico-sociais ou as relações de produção expressam um tipo especifico e fundamental de relações sociais. A especificidade dessas determinações ditas econômicas ou estruturais é que traduzem nexos ou características necessárias em uma forma de organização social qualquer. Diversamente, por exemplo, da política, do Estado, da cultura, da técnica que, em uma mesma forma de sociedade, podem se exprimir em formas diversas, as relações de produção expressam aqueles nexos fundamentais que fazem de uma dada forma de sociedade aquilo que é, aquilo que ela tem necessariamente que reproduzir para continuar a existir. Por esse motivo, as determinações que especificam uma dada forma histórica de relações de produção constituem a base para compreensão dos demais domínios da realidade2. Além disso, existe outro motivo que leva Marx a se deter nas relações de produção. Se se quiser conduzir a sociedade para além do capital, são justamente elas que necessitam ser destruídas e reconfiguradas. Por esse motivo, a busca pelos aspectos fundantes do capital, sua articulação histórica e necessária para além daqueles aspectos de superfície, está intimamente relacionada a posição de classe do autor.
Nessa direção, a análise das determinações universais e necessárias inerentes à forma histórica capital constituem um pressuposto para análise de toda situação particular e nacional, bem como de todos demais domínios da vida social, justamente por constituírem aqueles nexos que perfazem o conjunto da estrutura social em uma forma determinada, objetiva e independente da vontade dos indivíduos nela imersos. Explicar, portanto, uma situação particular ou nacional, bem como um período histórico, a partir de elementos puramente subjetivos, políticos ou ideológicos, assim como pelos traços nacionais específicos em sua autonomia constitui, e sempre constituiu, na matriz das concepções burguesas e marxistas vulgares. Essas indicações são sumarizadas pelo próprio Marx em uma passagem pouco comentada do livro terceiro de O Capital. Citamo-la integralmente:
A forma econômica específica na qual trabalho não-pago se extorque dos produtores imediatos exige a relação de domínio e sujeição tal como nasce diretamente da própria produção e, em retorno, age sobre ela de maneira determinante. Aí se fundamenta toda a estrutura da comunidade econômica oriunda das próprias relações de produção e, por conseguinte, a estrutura política que lhe é própria. É sempre na relação direta entre proprietários dos meios de produção e os produtores imediatos (a forma dessa relação sempre corresponde naturalmente a dado nível de desenvolvimento dos métodos de trabalho e da produtividade social do trabalho) que encontramos o recôndito segredo, a base oculta da construção social toda e, por isso, da forma política das relações de soberania e dependência, em suma, da forma específica do Estado em uma época dada. Isto não impede que a mesma base econômica, a mesma quanto às suas condições fundamentais, possa apresentar em virtude de inumeráveis circunstâncias empíricas diferentes, de condições naturais, de fatores étnicos, de influências históricas de origem externa, etc. infinitas variações e gradações que só análise dessas condições empiricamente dadas permitirá entender (grifo nosso)(MARX, 1981, p. 907)
Assim concebido, Marx supera a concepção empirista que, mergulhada no oceano caótico dos fenômenos e percepções sensíveis, dos fatos ditos concretos e das impressões, cria certas generalizações sempre abstratas, conceitos puramente mentais sem correspondente algum na realidade. É preciso analisar cada fenômeno e cada dado empírico tendo em vista o entrelaçamento social que este manifesta. Somente assim é possível descortiná-lo para além de sua manifestação, isto é, da unilateralidade com o qual aparece. Ao mesmo tempo, Marx supera a filosofia típica do idealismo alemão que se pretende a uma racionalidade válida independentemente dos acontecimentos particulares e empíricos. A análise dos casos particulares é crucial e o ponto de chegada de todo um longo percurso investigativo, afinal, sob a base de um dado tipo de relações de produção temos “infinitas variações e gradações que só análise dessas condições empiricamente dadas permitirá entender”.
Temos, assim, de um lado, teorizações que ditam a priori um método de análise histórica ou o curso da história mesma e, por conseguinte, transformam a análise das situações particulares em uma configuração possível no interior de uma estrutura conceitual já dada, de algum modo, de antemão. Ou então, do outro lado da moeda, temos teorias empiristas que veem em cada caso particular uma sucessão de causas que nada indicam a respeito de fenômenos transcorridos em outro tempo e lugar, cabendo apenas certas generalizações abstratas sujeitas à alterações na medida que fatos de natureza diversa são inseridos na análise ou se verifique, sem qualquer conexão interna, que os fatos simplesmente não se adéquam mais ao antigo conceito. O caminho indicado por Marx não tem relação alguma nem com uma nem com outra perspectiva. A análise universal de O Capital, e universal não por exigência metodológica, mas porque o capital mesmo se efetiva como e enquanto universalidade, serve de base para subsequente análise e compreensão das particularidades as mais diversas.
A dimensão programática da elaboração de Marx
Tudo isso fica mais claro quando se leva em conta que a apreensão das determinações universais – estruturais e econômicas – ou particulares – políticas e superestruturais – jamais foram feitas, por Marx, no mero intuito de compreender o capitalismo. O objetivo central que rege toda sua investigação não é a compreensão distante e pretensamente imparcial de seu objeto, mas o objetivo estratégico de sua destruição ou negação. Por isso, as determinações estruturais, os nexos necessários desse modo de produção em reprodução, são justamente aqueles que devem ser dilacerados se se quiser atingir esse objetivo estratégico.
Nesse sentido, nunca se tratou, como vulgarmente se interpreta, de deduzir todas esferas da vida social a partir da dita “estrutura”. Ou ainda, esclarecer toda e qualquer especificidade – como aquelas das demandas democráticas pendentes em um dado país, da opressão de gênero, raça e orientação sexual – partindo das classes sociais. Como se tratasse de um axioma matemático a partir do qual tudo se deduz. O problema é outro. Se se tem por meta destruir o capitalismo, esse modo de produção com seus nexos estruturais e necessários, deve-se buscar uma elaboração programática que vincule tais especificidades com as classes sociais, que vincule os aspectos particulares de um dado tempo e lugar com a universalidade da revolução socialista. Assim Marx nunca propôs um método universal para compreensão da realidade social no geral, mas indicou um caminho que possibilita encontrar as vias da destruição do modo de produção capitalista em sua incontornável universalidade.
Nesse sentido, nos parece certeiras as considerações de Lênin na conclusão de seu livro Esquerdismo, a doença infantil do comunismo. Ali ele dirá que enquanto “existirem diferenças nacionais e estatais entre os povos e países […] a unidade da tática internacional do movimento operário comunista de todos os países exige não a supressão da variedade, nem a eliminação das diferenças nacionais”. Pelo contrário, “investigar, descobrir, predizer, captar o que há de particularmente nacional e especificamente nacional nas abordagens concretas de cada país da solução da tarefa internacional comum, da vitória sobre o oportunismo e o doutrinarismo de esquerda no seio do movimento operário, do derrubamento da burguesia, da instauração da República Soviética e da ditadura do proletária eis a principal tarefa do momento histórico que atravessam todos os países avançados (e não só os avançados)” (LENIN, 1986, p. 330).
Referências bibliográficas
LENIN, Wladimir Ilitch. La obra principal del oportunismo aleman acerca de la guerra. In: Obras Completas, tomo 26. Moscú: Progreso, 1984. p. 292–296.
____. A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo. In: Obras Escolhidas. Vol 3. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986.
MARX, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Lisboa: Editorial Estampa,
1971.
____. O Capital. Livro 3 Volume 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
____. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
____. Grundrisse. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2011.
____. O Capital – Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.
PREOBRAJENSKY, Eugênio. A Nova Econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
1O texto em questão é uma adaptação de trecho de um livro de nossa autoria, ainda não publicado, cujo título será: Marx e a História: o problema das particularidades nacionais.
2Em diálogo com oponentes que autonomizavam a política na análise dos problemas da Rússia no período posterior à revolução, Preobrajensky relata que se apoiavam em “uma frase que Lênin gostava de repetir, segundo a qual a política é a economia concentrada. Entretanto eles não mostram como, para compreender esta concentração, é possível evitar a análise prévia do que se concentra na política” (PREOBRAJENSKY, 1979, p. 70).