A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer
(…)
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
Arnaldo Antunes/Sérgio Brito/Marcelo Fromer
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos
Chico Buarque
Localização do problema
Levantar o tema da arte na sociedade de classes é um começo. Há uma antropologia das origens necessária. Estudar as sociedades tribais e comunitárias. Analisar as forças produtivas, a divisão do trabalho, o intercâmbio comercial, a transição para o domínio patriarcal, as origens da propriedade privada, das classes sociais e do Estado. O começo da sociedade de classes coincide com a transformação da aldeia tribal em cidade-Estado. (ENGELS, 2010)
De um sentido de unidade entre o homem e a natureza, uma magia, a arte capta e expressa um momento inicial de alienação, visando repor a correspondência entre o social, o cósmico e as suas formas e estruturas nascentes. Apanha uma unidade social primeira, quase uterina. Uma unidade entre o homem, o animal, a planta, a pedra, entre a vida e a morte, entre a sociedade e a individualidade.
Mas vem uma cisão. Os homens vão se separando cada vez mais da natureza. A unidade tribal passa por uma destruição. A divisão do trabalho e a propriedade privada se estabelecem. O equilíbrio entre o indivíduo e o mundo se rompe. A hora da histeria, dos transes e da loucura, chega. O cortejo dos humilhados e ofendidos aumenta.
As crises ganham formas. Extremadas e contrastantes, elas transitam pelas idades.
Ouve-se a fala dos possessos. Na possessão, o conteúdo de violência social se reproduz no interior dos indivíduos. A arte, por diferenciação e alienação – separação – se produz na sociedade a se configurar.
A sociedade de classes – ponto central
“Numa sociedade dividida em classes, as classes procuram recrutar a arte – a poderosa voz da coletividade – a serviço de seus propósitos particulares.” (FISCHER, s/d, p. 51) Nem poderia ser de outro modo. Aparece o domínio dos sacerdotes e a valorização do sagrado em muitas dimensões. Louvação aos dirigentes como prática constante. A glorificação do poder, no estabelecimento de formas de reverência aos reis, aos príncipes, à famílias aristocráticas e à ordem social estabelecida como se fosse universal.
De baixo para cima, a voz da antiga comunidade destruída encontra refúgio em sociedades e cultos secretos. A violação e a fragmentação da sociedade, a propriedade privada e o horror estrutural da dominação de classe, convivem com os sonhos do retorno de uma idade de ouro e da chegada de outra idade preciosa escondida nos tempos futuros. A arte põe-se no fogo das contradições. Traços apolíneos e dionisíacos forjam a arte em unidade contraditória.
A configuração histórica da sociedade de classes incide sobre o coletivo e a divisão do trabalho. A divisão do trabalho e a manufatura é um par em consolidação no capitalismo entre os séculos XVI e XVIII. (MARX, 2013, p. 411) A arte vai articular-se à dupla origem da manufatura no trabalhador parcial e em sua ferramenta apresentando as duas formas fundamentais – manufatura heterogênea e manufatura orgânica. À divisão do trabalho na manufatura corresponde uma divisão do trabalho – e da arte também – na sociedade. O caráter capitalista da sociedade de classes começa a se consolidar.
A divisão social em classes
Na sociedade agora dividida em classes separam-se os papeis do artista, do sacerdote, do médico, do cientista, do filósofo…
O artista, no entanto, continua a ser uma voz da sociedade. Um vínculo com o culto se mantém, mas começa a ser rompido. Ou seja, “por sua habilidade em fazer-se o eco e o reflexo da experiência comum, dos grandes eventos e ideias do povo, da sua classe e do seu tempo” (FISHCER, s/d, p. 52), o artista exerce uma relevante função, nesta fase da sociedade, embora diferenciada de outros tempos.
Ou, nas palavras de Fischer:
Cabia-lhe elevar o sentido de autoproteção do povo da sua cidade, da sua classe, da sua nação; cabia-lhe libertar da insegurança de vida e das angústias de uma individualidade ambígua e fragmentada os homens que tinham emergido da sólida comunidade primitiva para o mundo da divisão do trabalho e dos conflitos de classe; cabia-lhe conduzir a vida individual de volta à existência coletiva, unir o pessoal ao universal; cabia-lhe restaurar a unidade humana perdida. (sd, p. 52; itálicos no original)
As exigências da elevação aumentam: “o homem pagou um preço colossal por sua elevação a formas de maior complexidade e maior produtividade social.” (FISCHER, sd, p. 52) As divisões nas habilidades, no trabalho e das classes sociais, em conjunto, levaram – o homem – à alienação de si e da natureza. O crescimento da riqueza da sociedade associou-se ao empobrecimento do homem. As relações humanas entraram em dissolução.
A individualização e as utopias
A individualização comutou-se em tragédia, nostalgia, perda, e na utopia de retorno aos tempos anteriores e felizes. E na utopia de tempos novos, quando a felicidade pudesse se estabelecer na sociedade – tensão entre o estabelecer e o restabelecer o convívio humano, em negação das relações humanas desumanizantes e desumanizadas do presente.
A individualização, as artes e as classes sociais se interpenetram.
Da gênese das classes sociais, da aristocracia, ao mundo da mercadoria, um largo percurso histórico ocorre. Nele, a arte, a alienação e a individualidade ganham características em desdobramentos e consolidação na sociedade de classes.
O dinheiro e o comércio desumanizaram o mundo feudal. As relações entraram em desagregação. A estrutura da sociedade alterou-se.
Nas raízes da subjetivação e da literatura, do mito, “o reflexo de uma coletividade na qual o indivíduo não passava de partícula anônima – gradualmente tornou-se uma ficção formal da experiência individual”. FISCHER, sd, p. 55)
As relações entre o individualismo e o coletivo entram em novos momentos. O papel da arte se refaz: “A arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total” (FISCHER, sd, p 57) Permite ao ser humano ir do em si ao para si. A arte estabelece capacidades novas em confirmação da humanidade dos seres.
Mais que isto: “A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação do torna-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade”. (FISCHER, sd, p 57) A arte é social, é sociedade: interseccionam-se os dois termos e os dois conceitos.
O artista em retrato
A sociedade necessita do artista; o artista necessita, e adquire, uma consciência a um tempo da arte e da sociedade.
O papel do artista vem ao primeiro plano. Vem ao plano da consciência social e artística. Os períodos da história da arte e as classes sociais ganham concretude. “Tem sido quase sempre uma característica dos grandes períodos da arte o de que as ideias da classe dominante ou as ideias de uma classe revolucionária em ascensão coincidam com o desenvolvimento das forças produtivas e com as necessidades gerais da sociedade” (FISCHER, sd, p 58) Equilibram-se os interesses de uma classe particular com os demais interesses na sociedade.
O antagonismo inconciliável entre as classes, no entanto, desintegra a unidade anterior, e explode o conflito, “na medida em que as contradições e as injustiças da nova situação se tornaram mais agudas”, mais problemáticas e exigem um desfecho transformador. A arte em suas formas articula-se, reflexiva e ativamente, às formas sociais.
“Mas, a menos que queira ser infiel à sua função social, a arte precisa mostrar o mundo como passível de ser mudado. E ajudar a muda-lo”. (FISCHER, sd, p 58) Isto evidencia um dos temas fundamentais ao pensamento sobre, e na, a arte.
REFERÊNCIAS
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 2. ed São Paulo: Expressão Popular, 2010.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Tradução Leandro Konder. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. (Marx-Engels)