A crise do capital e a intensificação das opressões sobre os LGBTs

No ano de 2018 verificamos 420 mortes de LGBTs. Ainda que seja um pouco menor do que os números de 2017 (445), estes números são superiores aos de 2014, 2015 e 2016. As causas dessas mortes? Armas de fogo, asfixia, espancamentos, pauladas etc., e, de número bem elevado, suicídio (23,8% dos casos), que fica em segundo lugar entre as causas. Como se não bastasse, a cada 20 horas alguém morre no Brasil por conta da LGBTfobia. São estes os dados recentes apresentados pelo Relatório GGB (Grupo Gay da Bahia) de 2018. Ainda assim, como apontado no Relatório de 2017, não se trata de dados oficiais, mas dados contabilizados a partir de de jornais, informações pessoais e internet. Isto ocorre em consequência da ausência de informações por parte dos governos. Por isso mesmo, trata-se de uma grande referência nacional sobre os dados de LGBTfobia. Outra organização que procura transmitir fontes sobre a questão, no caso da transfobia, é a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Somente em 2018, cerca de 163 pessoas trans foram assassinadas, sem falar nos casos não contabilizados pela mídia.

Diante de fatos como estes, não é possível afirmar que o preconceito e a opressão são inexistentes ou inexpressivos. Cada vez mais, pessoas são assassinadas pelo fato de não se encaixarem no padrão de sexualidade “exigido”. E se estamos a falar sobre padrão, devemos discutir aquilo que fundamenta as opressões, que se trata de uma questão histórica. Nesse cenário, impossível não associar a questão à exploração.

Como afirma Cecília Toledo:

Há uma integração dialética entre opressão e exploração, mas são dois conceitos distintos. Para efeitos de entendimento, classifica-se a opressão como um componente cultural, ou seja, de utilização de diferenças naturais entre os seres humanos – o sexo, a nacionalidade, a cor da pele e outras características físicas – para tirar proveito delas, para colocá-las numa situação, de humilhação e inferioridade, de forma que estejam mais vulneráveis e disponíveis a obedecer ordens e a se colocar a serviço de outrem. A opressão, portanto, significa aproveitar-se de uma situação de inferioridade em que o outro se encontra para obter vantagens e privilégios (2017. p. 30).

É evidente que não se trata de uma inferioridade da mulher ou mesmo das populações LGBTs em função de aspectos naturais. O que acontece é que a opressão é se desenvolve com base nessas diferenças, o que dá contornos e conteúdo específico a suas formas de manifestação. Sob a base dessas diferenças naturais,  é construída um discurso que procura explicar as relações sociais sob o prisma da inferioridade. Assim, justifica-se a opressão ao atribuir características originadas socialmente a algo dado por natureza e, assim,  encaixar tais diferenças em uma hierarquia marcada pela subalternidade. Quase sempre tal subalternidade se baseia em uma naturalização. Afinal, se é natural, tem-se algo eterno, já que tal concepção de natureza se fundamenta em uma “ordem” própria, independente das mudanças sociais. Ou seja, baseado no gênero da mulher e suas características específicas, como a força física, cria-se mitos como menos inteligente, menos capaz etc. No caso do negro, uma característica natural, como a cor da pele, fundamenta outros preconceitos. No caso do LGBT, isso se dá por aquilo que foge de um padrão tido como natural, que é a heterossexualidade. Pois acredita-se que o contrário disso é anti-natural.

Assim, não é nenhuma novidade o fato das populações LGBTs sofrerem, em seu cotidiano, opressão. Tratando-se de uma questão de sexualidade, para além disso, de uma particularidade do gênero1, precisamos lidar com uma sociedade binária: ou homem ou mulher, ou isso ou aquilo, ou preto ou branco, etc. Tudo que foge à tal lógica, ao padrão, tende a cair em estranhamento, tal como a sociedade binária (em aparência) se fundamenta por esse estranhamento. Tal estranhamento é presente numa sociedade de classes como a nossa. Isso porque o ser humano, diante de seu trabalho, de sua produção (aquilo que lhe torna humano), fica apartado de seu produto, de sua objetividade e exteriorização. Nega-se em seu trabalho, consequentemente, nega-se a sua própria humanidade e seu gênero humano. Isso porque quando tratamos do gênero humano não estamos a tratar somente de um indivíduo, ou de uma pessoa, mas a tudo o que faz menção ao ser humano em geral. Assim, o não reconhecimento de seu trabalho, a sua não exteriorização, consequentemente, faz com que o indivíduo não se reconheça, também, no trabalho de outros. Logo, de sujeito torna-se objeto. A propriedade privada é expressão do trabalho estranhado (MARX, 2010). O indivíduo não reconhecendo nem a si mesmo, nem ao outro, tampouco considera as várias particularidades de um gênero que lhe é estranho. Neste sentido toma os demais indivíduos pela sua dimensão biológica, animal; não reconhecendo, a princípio, sua dimensão social e histórica. “Nessa relação se mostra também até que ponto o comportamento natural do ser humano se tornou humano, ou até que ponto a essência humana se tornou para ele natureza” (Ibidem. p. 105).

Nesta sociedade em que os indivíduos se estranham mutuamente, oferece a base mais geral  que sujeita os LGBTs à violência. Sofrem assédio e preconceito. Muitas vezes, ao negarem a si mesmos por pressão do esterior, não conseguem ser quem realmente são. Quando conseguem precisam lidar com um perigo iminente: a morte. Quando se trata do LGBT que é trabalhador a situação é ainda mais grave, já que a sua “liberdade” sexual torna-se ainda mais difícil pela ausência de subterfúgios que o dinheiro propicia. Assim, um LGBT burguês ou pequeno-burguês que, por mais que não deixe de sofrer a opressão LGBTfóbica, suas condições de classe podem fazer amenizar essa opressão, tendo acesso, muitas vezes, aos “outsiders”2.

O LGBT trabalhador, por sua vez, fica preso às condições do mercado. O fato de ser LGBT, muitas vezes, o faz receber menores salários. No caso das mulheres trans, grande parte encontra-se fora do mercado produtivo. São obrigadas a vender o seu próprio corpo a fim de sobreviver. Fica nítido que a opressão está relacionada a exploração. Quando se trata de um contexto de crise do capital, a situação se agrava. Como expõe Marx (Ibidem), ocorre uma inversão. De sujeito, o ser humano se enxerga como objeto diante de sua produção, objetifica-se. Logo, a particularidade de gênero, como no caso do LGBT, também se objetifica. Num período de crise, tal inversão tende a ocorrer com mais intensamente. As pessoas se veem diante de um desespero ainda maior relacionado à sobrevivência e à situação de ter que atender as necessidades mais imediatas: comer, morar, vestir etc. Assim, a opressão é apropriada pelo capital.

O que vemos é a opressão numa relação dialética com a exploração. Logo, é um estranhamento do qual a burguesia se aproveita para explorar ainda mais o LGBT. É justamente em um contexto de crise que torna-se necessário estabelecer ataques mais agudos à classe trabalhadora e, nesse contexto, temos um campo fértil para fazer disseminar todos os discursos de inferioridade natural, de relações sexuais normais baseadas em uma relação binária. Não é à-toa que um governo populista de extrema-direita, como o de Bolsonaro, tem buscado atacar, veementemente, minorias que já são oprimidas na sociedade capitalista, como mulheres, quilombolas, indígenas e, inclusive, os LGBTs. Em seu primeiro dia de governo o que vemos? A Medida Provisória n°870/19 que exclui os LGBTs das pautas do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Isso provoca maiores dificuldades e entraves para a luta pela criminalização da LGBTfobia, tal como coloca em risco a segurança dos LGBTs.

Mas não podemos ter nenhuma ilusão! Nenhum governo capitalista, mesmo os ditos de esquerda, dará fim à LGBTfobia. Não é o capitalismo que vai garantir direitos. Como podemos ver, a questão da opressão está entrelassada a da exploração. É inconcebível o fim das opressões enquanto existir a exploração do homem pelo homem. Por mais que hajam conquistas históricas, estas nunca se mostram totalmente garantidas. Enquanto existir capitalismo, haverá opressão. Enquanto existir propriedade privada, a inversão da relação humana e a objetificação permanecerão.

Por isso, a questão nos fica: “Quais são as perspectivas para acabar com todas as atitudes anti-homossexuais e construir uma sociedade sem opressores e oprimidos, sem exploradores e explorados” (OKITA, 2015. p. 83)? E, por resposta, temos do próprio que:

… só a transformação total da sociedade em seu conjunto, desde as suas raízes, pode destruir a organização econômica e social que permite que uma pequena parcela da população, alguns empresários e generais, controlem e se aproveitem das riquezas produzidas pela sociedade” (Ibidem).

Porém, diferente do que fez o stalinismo3, não podemos ser sectários e negar a necessidade de travar as lutas contra a LGBTfobia sobre as próprias bases do capitalismo. Como pensa Hiro Okita. Não se trata de deixar a luta contra a LGBTfobia como um simples apêndice da luta dos trabalhadores. Esta concepção se reflete naqueles que pensam ser uma questão a se resolver apenas após a revolução. Negamos a própria necessidade de emancipação humana quando negamos as particularidades das opressões em meio as lutas de classes. O stalinismo negou o direito de organização, assim como, depois das primeiras conquistas da Revolução Russa, fez retroceder os direitos dos LGBTs, os encaixando como meros doentes e subprodutos da decadência burguesa. O mesmo erro histórico não pode ser cometido. Assim como as demais opressões, é preciso combater a LGBTfobia para unir a classe. Para isso, nos referenciamos na ponte entre o programa mínimo e máximo, compreendidos no Programa de Transição:

É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado (TROTSKY, 2019. p. 3).

Logo, é necessário estabelecer a ponte entre as reivindicações atuais dos LGBTs e a revolução socialista, sob a qual deverá ter sua liberdade. Por isso, é mais do que necessário lutar por melhores condições de vida das populações LBGTs, bem como pela criminalização da LGBTfobia, pelo direito de auto-organização, pelo fim da ideologia anti-homossexual, pelo fim da repressão policial etc. São pautas extremamente importantes, que não podem ser abandonas. Estas não podem estar apartadas da luta contra o capitalismo e a sociedade de classes. Neste sentido, os interesses dos LGBTs trabalhadores devem se vincular aos interesses da classe trabalhadora em geral. Não haverá emancipação enquanto houver opressão. Por uma Revolução Socialista! Por um governo dos trabalhadores associado aos interesses desses setores que hoje são oprimidos.


Referências

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.

OKITA, Hiro. Homossexualidade: da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2015.

TOLEDO, Cecília. Gênero e Classe. São Paulo: Sundermann, 2017.

Notas

1 Preferimos tratar de uma particularidade do gênero, considerando que “gênero” faz menção a ser social, a sujeito histórico. Trata-se, assim, de algo não para se referenciar a um particular, de princípio, mas ao universal e suas várias particularidades.

2 Conceito desenvolvido pelo sociólogo Howard Becker a fim de compreender os espaços de moralidade e como eles se definem por uma comunidade desviante do padrão, como é o caso dos LGBTs. Assim, nesses espaços, desenvolvem a sua própria moralidade. Um LGBT trabalhador dificilmente tem acesso a tais espaços.

3 Termo que faz referência à política que fez retroceder as conquistas históricas e direitos dos trabalhadores com a Revolução de Outubro, assim como os LGBTs, mulheres etc. Conquistas que se perderam diante de uma política sectária, que negava as reivindicações mínimas e as colocavam para “depois” da revolução.

Daniel Rodrigues