* Texto escrito conjuntamente com Rafael Borges

O debate sobre o fascismo, assim como a necessidade de combatê-lo, tomou as redes sociais no último período. Organizações de esquerda, intelectuais e jovens trabalhadores, preocupados com as provocações de grupelhos protofascistas e as investidas autoritárias do governo Bolsonaro, lançaram-se à luta antifascista. No entanto, o que é fascismo? Quais os interesses de classe por trás desse fenômeno político? Todo governo autoritário é fascista? A democracia é o antídoto ao fascismo?

Acreditamos que as respostas para tais indagações podem ser extraídas das lições deixadas pelo revolucionário russo Leon Trotsky em seus escritos sobre a Alemanha entre o fim da década de 1920 e início de 1930. Estudar e compreender em que bases se dá o movimento fascista, tal como localizar seu papel histórico, longe de um debate presumido, é condição sine qua non para desenvolver um programa e uma política capaz de combatê-lo de forma eficaz.

PARTE I: FASCISMO E DEMOCRACIA
A democracia é o regime político burguês para os períodos em que a luta entre as classes sociais ainda não atingiu seu grau mais agudo. Em tempos de relativa paz social, a burguesia exerce sua dominação por meio do parlamento e das demais instituições democráticas, como o judiciário e o executivo. Permite, ainda, a liberdade de imprensa para que as distintas frações da burguesia expressem suas opiniões livremente; garante algumas liberdades democráticas formais para o conjunto da população, possibilita que as massas escolham mediante ao voto qual fração da burguesia administrará o Estado e, inclusive, tolera a existência de sindicatos, ainda que muitas vezes sob a tutela do Estado.

De forma alguma, isso significa que a luta de classes não exista em tempos de democracia. Pelo contrário, grandes batalhas protagonizadas pela classe trabalhadora ocorreram durante os regimes democráticos. As limitadas liberdades democráticas permitem que os trabalhadores se organizem e tenham uma margem de manobra maior para suas ações, com greves e manifestações. Por isso, os regimes democráticos também possuem seus próprios meios de repressão, militares-policiais, para esmagar as mobilizações da classe trabalhadora. Todas as constituições democráticas preveem medidas repressivas para dissuadir as ações organizadas pelos trabalhadores e pelo povo pobre que ousam transpor os limites da propriedade privada e do regime burguês.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF, 1988), comumente chamada pela doutrina jurídica de Constituição Cidadã, também prevê mecanismos de limitação das liberdades democráticas e utilização intensiva de meios militares policiais, tais como o Estado de Defesa e Sítio e o uso das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem. O art.136 da CF de 1988, a título de exemplo, prevê que

O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

É evidente que as mobilizações da classe trabalhadora e do povo pobre cabem inteiramente nesses conceitos vagos de ameaça a instabilidade institucional e a paz social. O parágrafo primeiro do mesmo artigo indica as medidas que podem ser tomadas durante o estado de defesa: restrição ao direito de reunião, de sigilo de correspondência e de comunicação telefônica.

Todavia, a luta de classes impulsionada por condições objetivas, como crises, cracks financeiros e guerras, pode atingir um grau de ebulição que tornam insuficientes os meios de controle e repressão previstos no regime democrático. Como aponta Trotsky (2011, p.152)

A hora do regime fascista chega no momento em que os meios militares-policiais normais da ditadura burguesa, com a sua capa parlamentar, se tornam insuficientes para manter a sociedade em equilíbrio. Por meio da agência fascista, a burguesia põe em movimento as massas da pequena burguesia enfurecida, os bandos desclassados, os lumpen-proletários desmoralizados, todas essas inumeráveis existências humanas que o próprio capital financeiro levou ao desespero e à fúria.

Por isso, Trotsky (2011, p. 152), com o devido rigor metodológico que lhe é peculiar, explica que “para a burguesia monopolista, o regime parlamentar e o regime fascista não representam senão diferentes instrumentos de sua dominação: recorre a um ou outro, segundo as condições históricas”.

Vale indicar que há uma forte tendência no debate atual realizado por ativistas e intelectuais em identificar o fascismo com determinadas características e formas, tais como a existência de um líder carismático, relações com setores religiosos fundamentalistas, ameaças às liberdades democráticas e aumento da repressão ao movimento de massas. Dessa forma, teríamos um regime ou governo fascista se tais elementos estiverem presentes. É evidente que tais elementos podem estar, e em geral estão, presentes em regimes fascistas, todavia não explicam a essência do fascismo.

Trotsky, aplicando o método materialista-histórico, localiza o fascismo a partir da dinâmica da luta de classes. De tal modo, insistia que a

fascistização do Estado significa não apenas mussolinizar as formas e os processos de Direção – neste domínio as mudanças desempenham, no final de contas, um papel secundário – mas, antes de tudo e sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e esteja destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisto que consiste a essência do fascismo (TROTSKY, 2011, p.152).

A intensificação da repressão ao movimento de massas, que no Brasil ganha contornos ainda mais dramáticos com o genocídio da juventude pobre e negra, por si só, ainda não é suficiente para caracterizar um governo ou regime como fascista. Isso porque

… o fascismo não é simplesmente um sistema de repressão, de atos de força e de terror policial. O fascismo é um sistema de Estado particular, baseado no extermínio de todos os elementos da democracia proletária na sociedade burguesa. A tarefa do fascismo não consiste somente em destruir a vanguarda proletária, mas também em manter toda a classe num estado de fragmentação forçada. Para isto, a exterminação física da camada operária mais revolucionária é insuficiente. É preciso destruir todos os pontos de apoio do proletariado e exterminar os resultados do trabalho de três quartos de século da social-democracia e dos sindicatos. (TROTSKY, 2011, p. 140).

Em síntese, as definições e as análises de Trotsky nos permitem chegar a algumas conclusões importantes. Para os marxistas revolucionários não existe uma contradição de classe entre democracia e fascismo. Trata-se de duas formas distintas de dominação da mesma classe social: a burguesia.

A democracia não é um regime que paira acima das classes sociais como um valor universal. Tampouco, como indicamos, é um regime pacífico e desprovido de mecanismos de repressão. Dessa forma, o marxismo revolucionário não luta contra o fascismo sob a bandeira da democracia, pois o mais democrático dos regimes no modo de produção capitalista, ainda é uma ditadura social da burguesia sobre o proletariado.

A luta da classe trabalhadora contra o fascismo – ou contra os regimes bonapartistas e autoritários – é para preservar as liberdades democráticas mínimas que lhe permitam lutar pelo seu projeto histórico – o socialismo – em melhores condições. A liberdade de imprensa, de reunião, de locomoção e legalização dos partidos de esquerda e sindicatos não são direitos que devem ser negligenciados pelos revolucionários, porém não são um fim em si mesmo.

Em contrapartida, ainda que fascismo e democracia sejam regimes de dominação da mesma classe social, o advento de um pressupõe a destruição de outro. O fascismo, mesmo quando é alcançado por via eleitoral, se apoia em milícias contrarrevolucionárias para destruir pela força as instituições da democracia burguesa e as organizações dos trabalhadores. Desse modo, é uma gritante contradição que organizações políticas e intelectuais de esquerda caracterizem determinado governo como fascista, enquanto propõem combatê-lo por meio de frentes amplas eleitorais. Isto é, propõem combater com métodos parlamentares um fenômeno que se baseia em métodos essencialmente extraparlamentares.

Não podemos desprezar que entre o regime democrático e o fascismo existem mediações, tais como regimes bonapartistas e semi-bonapartistas. Em um próximo artigo será desenvolvido as diferenças entre fascismo e bonapartismo, assim como a política de frente única operária, que Trotsky – a partir da tradição do partido bolchevique e da III internacional – desenvolveu e defendeu à luz dos acontecimentos na Alemanha durante a ascensão do nazismo.


Bibliografia:

TROTSKY, Leon. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Ed. Sundermann, 2011.

CF, 1988.