Nas comemorações dos 100 anos da Revolução Russa é comum a posição de que a repressão de Kronstadt foi o grande erro dos bolcheviques. Traduzimos para português artigo em que Leon Trotsky, um dos principais dirigentes da revolução, examina os motivos do alarde em torno do tema no final dos anos de 1930.

Uma “Frente Popular” de Denunciantes
A campanha em torno de Kronstadt está sendo realizada com irredutível vigor em certos círculos. Se poderia pensar que Kronstadt ocorreu não há dezessete anos, mas ontem. Anarquistas, mencheviques russos, social-democratas de esquerda do Bureau de Londres, alguns desentendidos, o jornal de Miliukov e, ocasionalmente, a grande imprensa capitalista, participam da campanha com igual zelo e sob o mesmo mote. Uma “Frente Popular” peculiar!

Ontem mesmo eu me deparei com a seguinte frase em uma revista semanal mexicana que é ao mesmo tempo católica reacionária e “democrática”: “Trotsky ordenou o tiroteio de 1500 (?) marinheiros de Kronstadt, estes puros dos puros. Sua política, quando no poder, não foi de modo nenhum diferente da política atual de Stalin”. Como se sabe, os anarquistas de esquerda chegam à mesma conclusão. Quando, pela primeira vez na imprensa, eu respondi brevemente as perguntas de Wendelin Thomas, membro da Comissão de Inquérito de Nova York, o jornal russo dos mencheviques imediatamente se colocou em defesa dos marinheiros de Kronstadt e … de Wendelin Thomas. O artigo de Miliukov apareceu com o mesmo espírito. Os anarquistas me atacaram com ainda mais vigor. Todas essas autoridades afirmam que minha resposta foi completamente inútil. Esta unanimidade é tanto mais notável já que os anarquistas defendem, usando Kronstadt de símbolo, um verdadeiro comunismo anti-estatal; os mencheviques, no momento do levante de Kronstadt, defendiam abertamente a restauração; e Miliukov defende o capitalismo até agora.

Como pode a revolta de Kronstadt causar tal desgosto aos anarquistas, mencheviques, e contrarrevolucionários “liberais”, tudo ao mesmo tempo? A resposta é simples: todos esses agrupamentos estão interessados em comprometer a única corrente genuinamente revolucionária, que nunca desistiu de sua bandeira, que nunca capitulou aos seus inimigos, e que sozinha representa o futuro. É por isso que entre os denunciantes tardios de meu “crime” em Kronstadt estão tantos antigos revolucionários ou semi-revolucionários, pessoas que abandonaram seu programa e os seus princípios e que consideram necessário desviar a atenção da degradação da Segunda Internacional ou a traição dos anarquistas espanhóis. Por enquanto os stalinistas não podem se juntar abertamente a essa campanha em torno de Kronstadt, mas mesmo eles, é claro, esfregam suas mãos de prazer; pois os golpes são dirigidos contra o “trotskismo”, contra o marxismo revolucionário, contra a Quarta Internacional!

Por que, em particular, essa fraternidade heterogênea se apoderou precisamente de Kronstadt? Durante os anos da revolução, não foram poucas as vezes que nos confrontamos com cossacos, com camponeses, e mesmo com certas camadas de trabalhadores (certos grupos de trabalhadores dos Urais organizavam um regimento voluntário no exército de Kolchak!). O antagonismo entre os trabalhadores enquanto consumidores e os camponeses enquanto produtores e vendedores de pão estava, em grande parte, na raiz desses conflitos. Sob a pressão da necessidade e da privação, os próprios trabalhadores foram divididos esporadicamente em campos hostis, dependendo de laços mais fortes ou mais fracos com o campo. O Exército Vermelho também se viu sob influência do campo. Durante os anos da guerra civil foi necessário mais de uma vez desarmar regimentos descontentes. A introdução da “Nova Política Econômica” (NEP) chegou a atenuar o conflito, mas longe de eliminá-lo. Pelo contrário, abriu o caminho para o renascimento dos kulaks e liderou, no início dessa década, a renovação da guerra civil no campo. O levante de Kronstadt foi apenas um episódio história das relações entre a cidade proletária e o campo pequeno-burguês. Só é possível entender esse episódio ligado com o curso geral do desenvolvimento da luta de classes durante a revolução.

Kronstadt foi diferente de uma longa série de outros movimentos e revoltas pequeno-burgueses apenas pelo seu maior efeito externo. O problema aqui envolvia uma fortaleza marítima sob a própria Petrogrado. Durante o levante, declarações foram publicadas e emissões de rádio foram feitas. Os social-revolucionários e os anarquistas, fugindo de Petrogrado, enfeitaram o levante com frases e gestos “nobres”. Tudo isso deixou traços. Com a ajuda desses materiais “documentais” (isso é, falsos rótulos), não é difícil construir uma lenda sobre Kronstadt, tanto mais exaltada desde 1917, o nome Kronstadt foi cercado por um aroma revolucionário. Não à toa a revista mexicana citada anteriormente, de forma irônica, chama os marinheiros de Kronstadt de “os mais puros dos puros”.

O jogo sobre a autoridade revolucionária de Kronstadt é uma das características distintivas dessa campanha verdadeiramente charlatã. Anarquistas, mencheviques, liberais, reacionários, tentam apresentar a questão como se no começo de 1921 os bolcheviques tivessem voltado suas armas para aqueles mesmos marinheiros de Kronstadt que garantiram sua vitória na insurreição de outubro. Aqui está o ponto de partida de todas as falsidades subsequentes. Quem quiser desvendar essas mentiras deve primeiro ler o artigo do camarada J.G. Wright na New Internacional (fevereiro de 1938). Meu problema é outro: desejo descrever o caráter do levante de Kronstadt de um ponto de vista mais geral.

Agrupamentos Sociais e Políticos em Kronstadt
Uma revolução é “feita” diretamente por uma minoria. Contudo, o êxito de uma revolução só é possível se essa minoria encontrar mais ou menos apoio, ou pelo menos neutralidade amigável, por parte da grande maioria. A mudança dos diferentes estágios da revolução, como a transição da revolução para a contrarrevolução, é determinada diretamente pela mudança das relações políticas entre a minoria e a maioria, entre a vanguarda e a classe.

Entre os marinheiros de Kronstadt havia três esferas políticas: os revolucionários proletários, alguns com um sério passado e instrução; a maioria intermediária, principalmente de origem camponesa; e finalmente os reacionários, filhos de kulaks, lojistas e sacerdotes. Nos tempos do czarismo, a ordem nos navios e na fortaleza só poderia ser mantida se os oficiais, agindo através das seções reacionárias dos pequeno-oficiais e marinheiros, submetessem a ampla camada intermediária à sua influência ou terror, isolando assim os revolucionários, principalmente os maquinistas, artilheiros, e eletricistas, isso é, predominantemente os trabalhadores da cidade.

O curso da revolta no navio de guerra Potemkin em 1905 baseava-se inteiramente na relação entre essas três camadas, isso é, na luta entre extremos de reacionários pequeno-burgueses e proletários pela influência na camada camponesa média mais numerosa. Quem não compreendeu esse problema, que acompanha todo o movimento revolucionário na frota, era melhor ficar em silêncio sobre os problemas da revolução russa em geral. Pois era inteiramente, e em grande medida ainda é, uma luta entre o proletariado e a burguesia pela influência sobre o campesinato. Durante o período soviético, a burguesia apareceu principalmente sob a forma de kulaks (ou seja, o estrato superior da pequena-burguesia), a intelligentsia “socialista” e agora sob forma de burocracia “comunista”. Tal é o mecanismo básico da revolução em todas as suas etapas. Na frota assumiu uma expressão mais centralizada e, portanto, mais dramática.

A composição política do Soviete de Kronstadt refletia a composição da guarnição e das tripulações. A direção dos sovietes já no verão de 1917 pertencia ao Partido Bolchevique, que se apoiava nas melhores partes dos marinheiros e incluiu em suas fileiras muitos revolucionários do movimento clandestino que haviam sido libertados das prisões de trabalho duro. Mas me lembro que até nos dias da insurreição de Outubro os bolcheviques constituíam menos da metade do Soviete de Kronstadt. A maioria constitua de SRs e anarquistas. Não havia mencheviques em Kronstadt. O Partido Menchevique odiava Kronstadt. Os SRs oficiais, aliás, não tinham uma atitude melhor em relação a ela. Os SRs de Kronstadt passaram rapidamente para a oposição a Kerensky e formaram uma das brigadas de choque dos chamados SRs de “esquerda”. Eles se assentavam na parte camponesa da frota e na guarnição da costa. Quanto aos anarquistas, eles eram o grupo mais heterogêneo. Entre eles estavam verdadeiros revolucionários, como Zhuk e Zhelezniakov, mas esses eram os elementos mais próximos dos bolcheviques. A maioria dos anarquistas de Kronstadt representava a pequena-burguesia da cidade e se situava em um nível revolucionário abaixo dos SRs. O presidente do soviete era um apartidário, “simpatizante dos anarquistas” e, em essência, um pequeno e pacífico balconista que antes era subordinado às autoridades czaristas e estava agora subordinado… a revolução. A ausência total dos mencheviques, o caráter “esquerdista” dos SRs e atonalidade anarquista dos pequeno-burgueses foram devido à nitidez da luta revolucionária na frota e à influência dominante das seções proletárias dos marinheiros.

Mudança Durante Os Anos de Guerra Civil
Essa caracterização social e polícia de Kronstadt, que, se desejado, poderia ser sustentada por muitos fatos e documentos, já é o suficiente para iluminar os tumultos que ocorreram em Kronstadt durante os anos da guerra civil e, como resultado da qual, a mudança de sua fisionomia para além de reconhecimento. Precisamente sobre esse aspecto importante da questão, os acusadores tardios não dizem uma única palavra, em parte por ignorância, em parte por malevolência.

Sim, Kronstadt escreveu uma página heroica na história da revolução. Mas a guerra civil começou um despovoamento sistemático de Kronstadt e de toda a frota do Báltico. Já nos dias da insurreição de outubro, destacamentos de marinheiros de Kronstadt foram enviados para ajudar Moscou. Outros destacamentos foram então enviados a Don, Ucrânia, para requisitar pão e organizar o poder local. Parecia, no início, como se Kronstadt fosse inesgotável. De diferentes frentes, enviei dezenas de telegramas sobre a mobilização de novos destacamentos “confiáveis” entre os trabalhadores de Petersburgo e marinheiros do Báltico. Mas, começando já em 1918 e, em todo caso, até 1919, as frentes começaram a reclamar que os contingentes de marinheiros de “Kronstadt” eram insatisfatórios, indisciplinados, não confiáveis em batalhas, e fazendo mais mal que bem. Após a liquidação de Yudenich (no inverno de 1919), a frota do Báltico e a guarnição de Kronstadt foram despojadas de todas as forças revolucionárias. Todos os elementos entre eles que eram de qualquer utilidade foram lançados contra Denikin no sul. Se em 1917-18 o nível do marinheiro de Kronstadt era consideravelmente superior ao nível médio do Exército Vermelho e formou a coluna vertebral de seus primeiros destacamentos, bem como do regime soviético em muitos distritos, os marinheiros que permaneceram na “pacífica” Kronstadt até o início de 1921, que não se incorporaram em nenhuma das frentes da guerra civil, tinham agora um nível consideravelmente menor, em geral, que o nível médio do Exército Vermelho, e incluía uma grande porcentagem de elementos completamente desmoralizados, vestindo calças de sino-fundo pomposas e cortes de cabelo esportivos.

Desmoralização causada pela fome e a especulação tinha, no final da guerra civil, sofrido um grande aumento. Os chamados “portadores de sacos” (pequenos especuladores) tornaram-se uma praga social, ameaçando sufocar a revolução. Precisamente em Kronstadt, onde a guarnição nada fez e tinha tudo que precisava, a desmoralização assumiu dimensões particularmente grandes. Quando as condições se tornaram muito críticas na faminta Petrogrado o Bureau Político discutiu mais de uma vez sobre a possibilidade de obter um “empréstimo interno” de Kronstadt, onde uma quantidade das provisões antigas ainda se encontrava. Mas os delegados de Petrogrado responderam: “Você não receberá nada deles por bondade. Eles especulam em cima do pano, carvão e pão. E atualmente apareceram em Kronstadt todo tipo de canalhas”. Essa era a situação real. Não como as idealizações românticas depois do evento.

Deve ainda se acrescentar que os antigos marinheiros da Letônia e da Estônia, que temiam que fossem enviados para a frente e se preparavam para cruzar para as suas novas pátrias burguesas, a Letônia e a Estônia, se juntaram à frota do Báltico como “voluntários”. Esses elementos eram em essência hostis à autoridade soviética e manifestaram essa hostilidade plenamente no levante de Kronstadt… Além disso, havia muitos milhares de trabalhadores da Letônia, principalmente antigos trabalhadores ruarais, que mostraram heroísmo sem igual em todas as frentes da guerra civil. Não devemos, por conseguinte, pintar os trabalhadores da Letônia e os marinheiros de Kronstadt com a mesma cor. Devemos reconhecer diferenças sociais e políticas.

Os Motivos Sociais para o Levante
O problema de um estudante sério consiste em definir, com base nas circunstâncias objetivas, o caráter social e político do motim de Kronstadt, e seu lugar no desenvolvimento da revolução. Sem isso, a “crítica” é reduzida a uma lamentação sentimental do tipo pacifista no espírito de Alexander Berkman, Emma Goldman e seus últimos imitadores. Esses cavalheiros não têm a menor compreensão dos critérios e métodos de pesquisa científica. Citam as declarações dos insurgentes como pregadores piedosos citando as Escrituras Sagradas. Reclamam, além disso, que eu não levo em consideração os “documentos”, isso é, o evangelho de Makhno e os demais apóstolos. Levar “em consideração” os documentos não significa tomá-los por seu valor nominal. Marx disse que é impossível julgar os partidos ou os povos pelo que dizem sobre si mesmos. As características de um partido são determinadas consideravelmente mais pela sua composição social, seu passado, sua relação com as diferentes classes e estratos, do que por suas declarações orais e escritas, especialmente durante um momento crítico de guerra civil. Se, por exemplo, começássemos a tomar como ouro puro as inúmeras declarações de Negrin, Garcia Oliver, e Company, teríamos que reconhecer esses cavalheiros como fervorosos amigos do socialismo. Mas na realidade são seus traiçoeiros inimigos.

Em 1917-18, os operários revolucionários dirigiram as massas camponesas, não só da frota, mas de todo o país. Os camponeses tomaram e dividiram a terra com a maior frequência sob a direção dos soldados e marinheiros que chegavam em seus distritos nativos. As exigências por pão mau começavam e eram, principalmente, em relação aos senhorios e os kulaks. Os camponeses as toleravam como um mal necessário. Porém a guerra civil se prolongou por três anos. A cidade não dava praticamente nada à aldeia e tirava quase tudo dela, principalmente para as necessidades da guerra. Os camponeses aprovavam os “bolcheviques”, mas se tornavam cada vez mais hostis aos “comunistas”. Se no período anterior os trabalhadores haviam dirigido os camponeses para frente, agora os camponeses arrastavam os trabalhadores para trás. Somente por causa dessa mudança de humor que os Brancos conseguiam atrair para seu lado parcialmente os camponeses, e até mesmo os meio-camponeses-meio-trabalhadores, dos Urais. Esse humor, isso é, a hostilidade à cidade, alimentou o movimento de Makhno, que apreendeu e saqueou os trens marcados para as fábricas e o Exército Vermelho, quebrou trilhos de ferrovias, atirou contra comunistas, etc. Naturalmente, Makhno chamou isso de a luta anarquista contra o “Estado”. Na realidade, essa foi um a luta do proprietário da pequena propriedade enfurecido contra a ditadura proletária. Um movimento semelhante surgiu em vários outros distritos, especialmente em Tambovsky, sob a bandeira dos “social-revolucionários”. Finalmente, em diferentes partes do país, os destacamentos camponeses chamados “verdes” estavam ativos. Eles não queriam reconhecer nem os Vermelhos nem os Brancos e evitavam os partidos da cidade. Os “Verdes” às vezes se encontravam com os Brancos, e recebiam severos golpes deles, mas eles, obviamente, não receberam nenhuma misericórdia dos Vermelhos. Assim como a pequena-burguesia se baseia economicamente entre os pesos do grande capital e do proletariado, os destacamentos partidários camponeses foram esmagados entre o Exército Vermelho e o Branco.

Somente uma pessoa inteiramente superficial pode ver nas bandas de Makhno ou na revolta de Kronstadt uma luta entre princípios abstratos do anarquismo e do “socialismo de Estado”. Na verdade, esses movimentos eram convulsões da pequena-burguesia camponesa que, naturalmente, desejava se libertar do capital, mas que, ao mesmo tempo, não consentiu em se subordinar à ditadura do proletariado. A pequena-burguesia não sabe concretamente o que quer, e em virtude de sua posição não pode saber. É por isso que prontamente cobriu sua confusão de suas exigências e esperanças, ora com o mote anarquista, ora com o populista, e agora simplesmente com o “Verde”. Se opondo ao proletariado, ela tentou, se apoiando em todos esses motes, girar a roda da revolução para trás.

O Caráter Contrarrevolucionário do Motim de Kronstadt
Não havia, evidentemente, nenhuma linha que dividisse as diferentes camadas sociais e políticas de Kronstadt. Havia ainda em Kronstadt um certo número de trabalhadores qualificados e técnicos para cuidar da maquinaria. Mas mesmo eles foram identificados por um método de seleção negativa como politicamente não confiáveis e de pouco uso para a guerra civil. Alguns “dirigentes” do levante vieram desses elementos. No entanto, essa circunstância completamente natural e inevitável, que alguns acusadores apontam triunfalmente, não muda em nada o caráter anti-proletário da revolta. A menos que nos enganemos com slogans pretensiosos, falsos rótulos, etc., veremos que o levante não foi senão uma reação armada da pequena-burguesia contra as dificuldades da revolução social e a severidade da ditadura proletária.

Esse foi precisamente o significa do slogan “Sovietes sem Comunistas”, que tomado imediatamente não apenas pelos SRs, como também pelos burgueses liberais. Como um bastante audacioso representante do capital, o professor Miliukov entendia que libertar os sovietes da direção dos Bolcheviques significaria, dentro de pouco tempo, destruir os próprios sovietes. A experiência dos sovietes russos durante a direção dos mencheviques e SRs e, mais claramente, a experiência dos sovietes alemães e austríacos sob o domínio dos social-democratas, provou isso. Sovietes social-revolucionários e anarquistas poderiam servir apenas como uma ponte entre a ditadura revolucionária e a restauração capitalista. Eles não podiam empenhar nenhum outro papel, independentemente das “ideias” de seus participantes. O levante de Kronstadt teve, assim, um caráter contrarrevolucionário.

Da perspectiva de classe, que – sem ofensa aos honrosos ecléticos – continua a ser o critério básico não só para a política, mas para toda a história, é extremamente importante verificar a diferença entre o comportamento de Kronstadt e o de Petrogrado naqueles dias críticos. Todo o estrato principal de trabalhadores também havia sido retirado de Petrogrado. A fome e o frio reinavam na capital deserta, talvez mais ferozmente do que em Moscou. Um período heroico e trágico! Todos estavam famintos e irritados. Todos estavam insatisfeitos. Nas fábricas havia um maçante descontentamento. Organizadores secretos enviados pelos SRs e os oficiais Brancos tentavam ligar o levante militar com o movimento dos trabalhadores descontentes.

O jornal de Kronstadt escreveu sobre barricadas em Petrogrado, sobre milhares de mortos. A imprensa do mundo inteiro anunciou a mesma coisa. Na verdade, ocorreu exatamente o oposto. O levante de Kronstadt não atraiu os trabalhadores de Petrogrado. Ele os repeliu. A estratificação prosseguiu ao longo das linhas de classes. Os trabalhadores sentiram imediatamente que os insurrectos de Kronstadt estavam no lado oposto das barricadas – e eles apoiavam o poder soviético. O isolamento político de Kronstadt foi a causa de sua incerteza interna e de sua derrota militar.

Victor Serge que, ao que parece, está tentando fabricar uma espécie de síntese do anarquismo, do POUMismo, e do marxismo, interviu de maneira muito infeliz na polêmica sobre Kronstadt. Na opinião dele, a introdução da NEP um ano antes poderia ter evitado o levante de Kronstadt. Podemos admitir isso. Mas conselhos como esse são fáceis de dar após o evento. É verdade, como Victor Serge lembra, que eu havia proposto a transição para a NEP já em 1920. Mas eu não tinha nenhuma certeza prévia sobre seu sucesso. Não era nenhum segredo para mim que o remédio poderia revelar-se mais perigoso que a doença em si. Quando me encontrei na oposição aos dirigentes do partido, não recorri à base para evitar mobilizar a pequena-burguesia contra os trabalhadores. A experiência dos doze meses seguintes foi necessária para convencer o partido da necessidade do novo curso. Mas o notável é que foram precisamente os anarquistas do mundo inteiro que consideravam a NEP uma… traição ao comunismo. Mas agora os defensores do anarquismo nos denunciam por não termos introduzido a NEP um ano antes.

Em 1921, Lênin mais de uma vez reconheceu abertamente que a obstinada defesa do partido dos métodos do comunismo de guerra tornou-se um grande erro. Mas isso muda alguma coisa? Quaisquer que fossem as causas imediatas ou remotas da rebelião de Kronstadt, ela era em sua essência um perigo mortal para a ditadura do proletariado. Simplesmente por ter sido culpada de um erro político, a revolução proletária realmente devia ter cometido suicídio para punir a si mesma?

Ou talvez seria suficiente informar os marinheiros de Kronstadt dos decretos da NEP para pacificá-los? Ilusão! Os insurgentes não tinham um programa consciente e não podiam ter tido por causa da sua própria natureza de pequeno-burgueses. Eles próprios não entendiam claramente que o que seus pais e irmãos precisavam antes de tudo era o livre-comércio. Eles estavam descontentes e confusos, mas não viam saída. Os mais conscientes, isso é, os elementos direitistas, agindo nos bastidores, queriam a restauração do regime burguês. Mas não disseram isso em voz alta. A ala “esquerda” queria a liquidação da disciplina, “sovietes livres”, e rações melhores. O regime da NEP só poderia gradualmente pacificar o camponês e, depois dele, as seções descontentes do exército e da frota. Mas para isso era necessário tempo e experiência.

Mais infantil ainda é o argumento de que não houve insurreição, que os marinheiros não faziam ameaças, que “apenas” tomaram a fortaleza e os navios de guerra. Parece que os bolcheviques marcharam com o peito despojado através do gelo contra a fortaleza apenas por causa de seus personagens malignos, sua inclinação para provocar artificialmente conflitos, seu ódio aos marinheiros de Kronstadt, o seu ódio à doutrina anarquista (sobre a qual ninguém, diga-se de passagem, se importava naqueles dias). Não é uma piada infantil? Sem ligações nem ao tempo nem ao lugar, os críticos diletantes (dezessete anos depois!) sugerem que tudo terminaria em satisfação geral se a revolução deixasse os marinheiros insurgentes em paz. Infelizmente, a contrarrevolução mundial não o teria. A lógica da luta faria predominar na fortaleza os extremistas, isso é, aos elementos mais contrarrevolucionários. A necessidade de suprimentos tornaria a fortaleza diretamente dependente da burguesia estrangeira e de seus agentes, os emigrados Brancos. Todos os preparativos necessários para esse fim já estavam sendo feitos. Sob circunstâncias semelhantes, apenas pessoas como os anarquistas espanhóis ou os POUMistas esperavam passivamente um resultado feliz. Os bolcheviques, felizmente, pertenciam a uma escola diferente. Eles consideraram que era seu dever extinguir o incêndio assim que ele começou, reduzindo assim ao mínimo o número de vítimas.

Os Marinheiros de Kronstadt Sem Uma Fortaleza
Em essência, os veneráveis críticos são oponentes da ditadura do proletariado, e por essa razão, oponentes da revolução. Nisso reside todo o segredo. É verdade que alguns deles reconhecem a revolução e a ditadura – em palavras. Mas isso não ajuda as coisas. Desejam por uma revolução que não leve à ditadura ou a uma ditadura que não faça uso da força. Claro, essa seria uma ditadura muito “agradável”. Existe, entretanto, algumas condições: um desenvolvimento igual e, além disso, extremamente alto, das massas trabalhadoras. Mas em tais condições a ditadura seria, em geral, desnecessária. Alguns anarquistas, que são pedagogos realmente liberais, esperam que, em cem ou mil anos, os trabalhadores alcançassem um nível tão elevado de desenvolvimento que a coerção se revelará desnecessária. Naturalmente, se o capitalismo pudesse levar a tal desenvolvimento, não haveria razão em derrubá-lo. Não haveria necessidade nem de uma revolução violenta nem da ditadura, que é uma consequência inevitável da vitória revolucionária. No entanto, o capitalismo decadente de nossos dias deixa pouco espaço para ilusões pacifistas humanitárias.

A classe operária, para não falar das massas semi-proletárias, não é hegemônica, nem social nem politicamente. A luta de classes produz uma vanguarda que absorve os melhores elementos da classe. Uma revolução é possível quando a vanguarda é capaz de dirigir a maioria do proletariado. Mas isso não significa que as contradições internas entre os trabalhadores desapareçam. No momento do mais alto pico da revolução, eles são naturalmente atenuados, mas apenas para aparecer mais tarde em uma nova etapa com toda a sua nitidez. Tal é o curso da revolução como um tudo. Tal foi o curso de Kronstadt. Quando os moderados tentam marcar um caminho diferente para a Revolução de Outubro, depois do evento, só podemos respeitosamente pedir-lhes que nos mostrem onde e quando exatamente seus grandes princípios foram confirmados na prática, pelo menos parcialmente, pelo menos na tendência? Onde estão os sinais que nos levam a esperar o triunfo desses princípios no futuro? É claro que nunca obteremos uma resposta.

Uma revolução tem suas próprias leis. Há muito tempo nós formulamos aquelas “Lições de Outubro” que têm não apenas uma significância russa, mas internacional. Ninguém mais tentou sugerir outras “lições”. A revolução espanhola é uma confirmação negativa das “Lições de Outubro”. E os críticos severos são silenciosos ou equívocos. O governo espanhol da “Frente Popular” sufoca a revolução socialista e atira em revolucionários. Os anarquistas participam desse governo ou, quando são expulsos, continuam a apoiar os carrascos. E seus aliados estrangeiros e advogados ocupam-se enquanto isso com uma defensa… do motim de Kronstadt contra os duros bolcheviques. Uma vergonhosa travessura!

As disputas atuais em torno de Kronstadt giram em torno do mesmo eixo de classe que o levante de Kronstadt, em que as seções reacionárias dos marinheiros tentaram derrubar a ditadura proletária. Conscientes de sua impotência na arena da política revolucionária, os desentendidos e ecléticos pequeno-burgueses tentam usar o antigo episódio de Kronstadt para lutar contra a Quarta Internacional, isso é, contra o partido da revolução proletária. Esse “povo de Kronstadt” dos últimos dias também será esmagado – verdade, sem o uso de armas já que, felizmente, eles não têm uma fortaleza.

15 de janeiro de 1938


Original: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1938/01/kronstadt.htm

Traduzido por: Juventude do PSTU