Combatendo no terreno do inimigo: para uma interpretação das Teses sobre Parlamentarismo da Terceira Internacional

A expressão de uma verdadeiro partido político revolucionário, mais do que qualquer outro, não está em seu programa em abstrato, mas na forma como esse programa se transforma em ação cotidiana, em política. É nas respostas as contingências históricas pelo partido da classe operária que este demonstra quais seus objetivos históricos. É no terreno político que a luta de classes pode ser decidida, mas é necessário demonstrar para a classe trabalhadora que este partido, que pretende ser o seu partido, é digno de cumprir sua tarefa histórica.

A atuação parlamentar, é uma dessas experiências formidáveis que permitem demonstrar na prática as diferenças entre um autêntico partido operário marxista e todos os demais partidos da ordem. Não é o objetivo deste artigo demonstrar a necessidade dos socialistas atuarem nas eleições. Em nossa compreensão, essa é uma discussão praticamente superada entre a vanguarda brasileira hoje. Na realidade, em geral, hoje temos que explicar porque não somos pragmáticos como todos os outros partidos da ordem.

Todos dos dias ouvimos argumentos do tipo: “Seu partido não tem chances eleitorais”. Ou então: “Vocês tem boas ideias, mas precisam ser mais flexíveis”. Hora ou outra nos tomamos pesando com seriedade nestes argumentos, talvez quase concordando com eles. O argumento que levantamos é justamente que o partido revolucionário, em sua atividade eleitoral-parlamentar, é caracterizado fundamentalmente não só por resistir a essas pressões, mas também em ajudar a classe operária a superá-las a partir de sua política e de sua prática. Para tentar demonstrar isso utilizaremos um documento histórico muito caro aos marxistas revolucionários: As Teses Sobre Parlamentarismo do Segundo Congresso da Terceira Internacional.1

Os socialistas e o parlamento
A atividade eleitoral-parlamentar é um terreno contraditório para os revolucionários, tendo em vista que atuamos no parlamento não para construí-lo ou melhorá-lo, pelo contrário, queremos utilizar a atuação dentro do parlamento para demonstrar aos trabalhadores a podridão da própria Repräsentative Demokratie atual. O socialistas,  sempre atuaram no parlamento para demonstrar a incapacidade dessa instituição resolver os problemas sociais. Esse objetivo obviamente envolve algumas dificuldades que não podem ser desconsideradas, mas está totalmente consonante com a estratégia marxiana: destruir o estado burguês e construir um novo estado de transição. Resumindo: a atuação dos revolucionários deve ser no sentido de denunciar de forma incansável o regime, o sistema e a própria instituição parlamentar.

Nos parece bastante esclarecedora a explicação dada por Rosa Luxemburgo sobre a atuação eleitoral e parlamentar dos revolucionários:

“A ação eleitoral e a tribuna desse parlamento contrarrevolucionário devem ser um meio para educação, a concentração, a mobilização da massa revolucionária, uma etapa na luta pelo estabelecimento da ditadura do proletariado.”2

Não nos propomos a encontrar aqui uma resposta fechada para o problema, mas indicar ponto na tentativa de fomentar um debate. Desde Marx e Engels, o terreno da política sempre foi uma preocupação central dos marxistas. Ao contrário do que afirma Hobsbawm,  se é verdade que Marx e Engels nunca se preocuparam em escrever tratados sobre política, não foi pelo fato de considerarem o tema de menor importância, ao contrário, esse tema conferia unidade a sua produção intelectual3. Tanto é assim que a atuação política estava no centro da sua batalha contra os hegelianos de esquerda e posteriormente contra os anarquistas da Primeira Internacional.

Contudo, foram os debates iniciados sobre este tema na Segunda Internacional, incluindo a atuação parlamentar – em geral, marcada pelo oportunismo – dos Social-democratas, que permitiram na Terceira Internacional os revolucionários pudessem tirar conclusões mais objetivas sobre a atuação eleitoral parlamentar.

Essas conclusões são resumidas nas teses sobre parlamentarismo do segundo congresso da Terceira Internacional. Não cabe aqui reproduzir integralmente as teses, apenas é importante situar que elas se dividem em três partes, sendo a primeira um texto introdutório de autoria de Leon Trotsky intitulado Época Atual e o Novo Parlamentarismo. Nessa introdução, se faz uma rápida análise das características mutantes do novo parlamentarismo da Época imperialista em relação ao parlamentarismo do período anterior.

A segunda parte são as teses propriamente ditas. Essa parte, de autoria de Nicolai Bukharin e Lênin, é subdividida em três secções. A primeira é uma síntese sobre a teoria marxista do Estado e sobre o papel do parlamento no Estado Burguês. A segunda subdivisão trás as teses sobre a importância de aproveitar as brechas do Estado Burguês para realizar a luta política. Aí se destaca que as principais organizações de luta dos trabalhadores não devem ser o parlamento, mas os Sindicatos, o Partido e os Soviets, reiterando que a estratégia dos comunistas não pode ser outra que não a insurreição. Nesse sentido, se reafirma que a essa estratégia deve subordinar a utilização da tribuna parlamentar. Na décima tese, estão descritas as linhas gerais no caso dos partidos comunistas ganharem as eleições para as municipalidades.

Ao fim desta seção há exemplos de atuação parlamentar que devem ser seguidos com a finalidade de concretizar as ideias presentes nas teses:

“15º) Essas condições e aquelas indicadas numa instrução especial, uma vez observadas, colocarão a ação parlamentar em completa oposição com a nauseante pequena política dos partidos socialistas de todos os países, nos quais os deputados vão ao Parlamento para sustentar esta instituição “democrática”, e, no melhor dos casos, para “conquistá-la”. O Partido Comunista só pode admitir a utilização exclusivamente revolucionária do parlamento, à maneira de Karl Liebknecht4, de Höglund5 e dos bolcheviques;”6

A terceira sessão trata da independência dos partidos da internacional quando se define os pormenores da política eleitoral parlamentar. Afirma-se, dentre outras coisas, que seria uma falta grave causar rupturas em qualquer partido comunista em virtude de divergências sobre atuação eleitoral-parlamentar, visto que esse era um tema secundário para os comunistas.

Há ainda uma última parte das teses, um apêndice, relacionadas com as discussões e polêmicas travadas naqueles tempos no interior do nascente movimento comunista. Trata-se de um trecho fundamental. Abordaremos um pouco dos temas desse trecho mais adiante. Antes disso, achamos importante tomar mais detidamente os exemplos históricos citados na tese 15 do documento visto que por meio deles se pode entender o significado prático das teses.

A experiência dos Bolcheviques
No início do século XX, uma questão central na atuação parlamentar dos social democratas de esquerda era a questão do militarismo e da luta contra a guerra imperialista, veremos que esse era o traço central, tanto da atuação dos bolcheviques, quanto dos comunistas alemães e também na Suécia.

Porém a luta contra o militarismo visava sempre extrapolar as fronteiras do parlamentarismo e da legalidade burguesa com a finalidade de trazer as massas para o centro do debate político através de sua própria mobilização, de forma que muitas vezes esses parlamentares andaram no fio da navalha, por assim dizer, entre legalidade e ilegalidade, mas sempre subordinado ao segundo, sempre subordinado a luta direta das massas7.

Mas de que forma isso se dá? Aparentemente, para muitos dos quadros revolucionários essa atuação parlamentar deve ser aquela que serve às lutas, ou seja, nossos parlamentares devem ser aqueles que mais estão presentes em greves, ocupações e etc. Mas será que era realmente isso que diferenciava a atuação dos parlamentares acima citados? Pensamos que não. Participar das lutas é fundamental, no entanto, não é isso que nos diferencia do reformismo, ou mesmo do ultraesquerdismo. Todos eles participam de muitas lutas e como não são centralizados, em muitos momentos, participam, de forma oportunista, de mais lutas que os revolucionários de um ponto meramente quantitativo. O que então diferencia a atuação dos revolucionários?

Vejamos um exemplo importante da atuação bolchevique na VI Duma com os seus 6 deputados:

  1.  Aleksei Egórovitch Badáiev (1883-1951), membro do Partido desde 1904, do CC desde 1925. De origem camponesa, serralheiro de profissão, foi eleito deputado da IV Duma e integrou o Buro da Rússia do CC do POSDR. Em 1915 foi deportado devido levantar a palavra de ordem “O principal inimigo em casa” chamando os operários a transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária contra a própria burguesia Russa, regressou a Petrogrado apenas em 1917.
  2. Grigóri Ivánovitch Petróvski (1878-1958), membro do Partido desde 1897, do CC em 1912 e entre 1921 e 1939, candidato do Politburo entre 1926 e 1939. Participante na revolução de 1905-1907 foi deputado da IV Duma (1912-1914). Deportado na Sibéria de 1914 até 1917 por incitar os operários contra a Guerra e à pegar em armas contra a burguesia.
  3. Matvei Konstatíonovitch Muránov (1873-1959), membro do Partido desde 1904, do CC (1917-18 e 1919- 20), candidato (1920-21 e 1923-24). Filho de camponeses, ferroviário, deputado da IV Duma, foi deportado em 1915.
  4. Fiódor Nikítitch Samoílov (1882-1952), membro do Partido desde 1903, candidato do CC (1922-23). Filho de tecelão, participa na revolução de 1905, torna-se presidente do sindicato dos tipógrafos (1906-07) e é eleito em 1912 deputado da IV Duma. Preso e deportado em 1914.
  5. Nikolai Románovitch Chágov (1882-1918), membro do Partido desde 1905, participante na primeira revolução russa, eleito deputado da IV Duma. Preso com cinco outros deputados bolcheviques em 1914, foi deportado no ano seguinte, regressando a Petrogrado em 1917.
  6. Roman Vatsávovitch Malinóvski (1876-1918), torneiro mecânico, foi condenado por roubo em 1899. Entre 1901 e 1905 foi soldado no regimento de Izmaílov, aderiu ao Partido em 1906 e trabalhou no Sindicato dos Metalúrgicos de Petersburgo. Após a prisão torna-se agente da polícia secreta. Entre 1912 e 1914 foi membro do CC e deputado da IV Duma. Após a prisão dos deputados bolcheviques abandona o país, sendo expulso do Partido por deserção. Ingressa no exército durante a I Guerra, regressando a Petrogrado em 1918, onde é condenado a fuzilamento pelo Tribunal Supremo.

Lênin assim traduzia a atuação dos parlamentares revolucionários frente ao início da 1ª guerra mundial:

“Que os oportunistas preservam as organizações legais ao preço de trair suas convicções; os social-democratas, ao contrário, utilizarão seu espírito organizativo e seus vínculos com a classe operária para criar as formas de luta legais, tendentes ao socialismo e à maior coesão proletária, que correspondem à crise. Criarão tais formas de luta ilegal não para combater junto com a burguesia patriota de seu país, mas para lutar ombro a ombro com a classe operária de todos os países. A Internacional proletária  não sucumbiu nem irá. As massas operárias criarão uma nova internacional apesar de todas as dificuldades”8. (grifo nosso)

Os parlamentares bolcheviques não hesitaram em defender uma política revolucionária mesmo ao preço de sofrerem as piores repressões. É assim, porque para os bolcheviques o fundamental era mostrar para os operários a farsa do poder burguês e criar neles o ódio necessário contra as instituições da classe dominante. Tanto é assim, que Lênin considerou a repressão aos parlamentares bolcheviques da IV Duma como tendo sido muito importante para o desenvolvimento posterior da consciência proletária contra a guerra e que a grande campanha na imprensa czarista contra os bolcheviques só serviu para mostrar para os operários quem realmente estava do seu lado.

A experiência do socialismo de esquerda na Suécia
O caso do sueco Zeth Höglund não é diferente do exemplo dos bolcheviques, embora se tratasse de um país considerado “exemplo” da democracia. Höglund era membro das juventudes socialistas e foi várias vezes preso por suas posições revolucionárias no início do século XX, principalmente pela sua defesa do direito de autodeterminação da Noruega em relação a Suécia, sendo eleito para o parlamento Sueco em 1914, onde seguiu incansavelmente apoiando a luta do povo Norueguês contra a opressão nacional.

A atuação parlamentar de Höglund também foi importante para ajudar a proteger os militantes revolucionários que se refugiavam na Suécia, especialmente bolcheviques. Por conta disso, várias vezes se colocou em risco.

A Suécia tomou uma posição de neutralidade frente a 1ª Guerra, mesmo assim o jovem Höglund foi tão veemente em sua posição contra a guerra e contra a farsa da democracia sueca. Por esse motivo foi preso em 1916 por “traição ao reino”. Estava preso quando em fevereiro/março 1917 Lênin passa pela Suécia voltando para a Rússia, oportunidade que Lênin aproveita para saudá-lo, embora não tenha tido tempo para visitá-lo na prisão.

O gigantismo revolucionário de Karl Liebknecht
Karl era filho do grande marxista Wilhelm Liebknecht discípulo de Marx e de Engels – com quem eles tiveram frequentes rusgas, é verdade – que ajudou a fundar o Partido Social Democrata Alemão juntamente com Bebel. Advogado, militante anti-guerra e parlamentar, Karl Liebknecht foi o grande companheiro de armas de Rosa Luxemburgo, com o apoio dela foi a voz da batalha contra o oportunismo na social democracia alemã ficando célebre para a história do movimento operário pela votação dos créditos de guerra, ocorrida em 4 de agosto de 1914 no parlamento alemão (Reichstag ou câmara baixa).

A votação dos créditos para que o Estado Alemão pudesse levar a cabo sua política que culminaria na primeira guerra mundial foi um divisor de águas entre os socialistas e talvez em toda a história da esquerda política. Desde vários meses o governo alemão vinha fazendo uma grande propaganda militarista e anti-russa, a unificação alemã levada a cabo no final do século 19 havia feito a industria alemã crescer como nenhuma outra e em pouco tempo a Alemanha se tornou, de fato, uma das principais potências capitalistas da Europa, isso gerou uma contradição: Os mercados mundiais já estavam divididos entre as grandes potências da época, com clara hegemonia da Inglaterra e França. Para continuar crescendo a Alemanha precisava “tomar” mercados das suas competidoras imperialistas, tanto consumidores quanto fornecedores de matérias primas.

A guerra mundial era iminente e a burguesia alemã tratou de ganhar as massas de seu país para o seu lado, aliás como também fizeram seus amigos ingleses e franceses. Sobre as acusações mais diversas começaram a se formar os blocos militares e de fato a maioria das massas começava a ver a guerra como uma necessidade do povo e não da burguesia alemã. O nacionalismo em todas as partes parecia estar mais forte do que nunca.

Apoiado nisso os líderes da social democracia alemã defenderam a necessidade de votar a favor dos créditos de guerra para não se isolar das massas9. Em 3 de agosto de 1914 se reúne a fração parlamentar do SPD para decidir como vão se posicionar na votação em relação aos créditos de guerra que aconteceriam no dia seguinte. Apenas um pequeno grupo de 14, dos 92 deputados socialistas, se opõe10, entre eles, Karl Liebknecht. Porém após perderem a votação, a minoria resolve não romper a unidade do partido e também iria votar a favor dos créditos.

Após conferenciar-se com Rosa Luxemburgo, Liebknecht vence sua hesitação inicial e vai ao Reichstag em 4 de agosto para entrar para a história como único deputado socialista do Ocidente Europeu a votar contra os suplementos ao orçamento militar. Talvez para a geração atual de revolucionários não seja tão evidente o signo histórico do feito de Karl Liebknecht, mas não foi um acaso que das centenas de deputados socialdemocratas Europeus ele foi o único a ter essa ousadia.

A postura de Liebknecht em 4 de agosto não foi uma exceção na sua trajetória política, mas apenas uma demonstração da firmeza ideológica e programática que sempre marcaram sua atuação parlamentar. Frente a legalidade burguesa, Karl nunca se importou com a possibilidade de perder seu mandato, ou de sofrer processos na justiça burguesa e utilizou todas as oportunidades possíveis para educar as massas para revolução, de fato, chegando a passar, muitas vezes, pela cassação de seu mandato e pela prisão.

Muito antes do episódio da votação dos créditos de guerra, Liebknecht se destacou na luta contra a propaganda belicista levada a cabo pelo governo alemão, seus escritos contra o militarismo renderam-lhe uma condenação a 18 meses de prisão em 1906 por traição, sendo solto depois de poucos meses.

Após o início efetivo da guerra, sua situação ficou ainda mais complicada com alternância entre curtos períodos preso, depois solto apenas para voltar a ser preso logo depois, Karl teve uma vida parlamentar de privações e sacrifícios11. Em meados de 1916, Karl foi preso novamente e ficou mantido em cárcere até a véspera da revolução alemã de outubro 1918.12

Justamente nesse período mais longo em que ficou mantido preso os operários e soldados alemães começaram a perceber a farsa da guerra e a recordar-se de quem durante anos apontou na direção correta, assim Karl Liebknecht começava a ganhar imenso respeito e admiração dos operários, especialmente em Berlim. Em 23 de outubro o governo, pressionado por importantes mobilizações operárias e de soldados, resolve libertar vários prisioneiros, ao saber que Liebknecht seria solto, os operários metalúrgicos de Berlim, que realizavam um congresso, cantaram a Internacional de forma entusiástica em comemoração.13

No dia seguinte, milhares de operários esperavam em Berlim para receber seu parlamentar sem mandato, mas legitimamente reconhecido. Logo de sua chegada ele toma a palavra, celebra o exemplo revolucionário russo que completava um ano, e chama os operários a fazerem a revolução também na Alemanha.14 Porém, pela imaturidade do proletariado alemã e falta de um partido testado e temperado na luta a revolução alemã falha, Liebknecht, Rosa Luxemburgo e vários outros revolucionários são mortos em um verdadeiro banho de sangue levado a cabo pelo governo dos social-traidores Ebert e Scheidman e do SPD.

Mas a importância do exemplo de Liebknecht não havia sido esquecida. Para Trotsky, o revolucionário marxista alemão se caracterizava por uma “natureza impulsiva, apaixonada, cheio de abnegação, de iniciativa, de sentido das [necessidades das] massas e das situações e uma valentia incomparável na ação”15. Mais que um parlamentar, um verdadeiro tribuno do proletariado mundial.

Não é por acaso, que após seu assassinato pelo governo socialdemocrata de Ebert, no qual também foi assassinada Rosa Luxemburgo, Lênin afirmou tombaram na Alemanha “os melhores chefes da Internacional Comunista”. E Trotsky durante a fundação da IV internacional afirmou que a nova organização estava baseada nos três “L’s de Liebknecht, Luxemburgo e Lênin”.

Que lições tirar?
Ora, pensamos que a atualidade das teses da Terceira Internacional não se resume a uma experiência histórica específica e nem de um único país. Elas sequer estão baseadas, em primeiro lugar, na experiência vitoriosa dos bolcheviques, mas especialmente nas experiências derrotadas nos países da Europa ocidental. Além disso, como temos percebido atualmente, os perigos asseverados pelos autores das teses seguem uma infortuna realidade. Basta lembrarmos o exemplo do Sryza, maior demonstração do caráter enganoso das ilusões no regime democrático burguês.

Apesar disso, mesmo que a atividade parlamentar não seja o campo prioritário dos revolucionários, ela é um ponto de apoio para “educação das massas” no programa do socialismo e na ditadura do proletariado. A atuação no parlamento pode servir de forma acessória à luta direta da classe operária contra o poder burguês. É possível a partir da leitura séria das Teses retirar várias conclusões importantes e de grande atualidade.

Uma destas conclusões é que a atividade dos revolucionários em relação ao parlamento não é no sentido de ocupar o maior número de cadeiras, aliás, em geral, os comunistas serão bem pouco numerosos no parlamento16. Essa difícil tarefa, normalmente deverá ser levada a cabo com um reduzido número de parlamentares, que tenham o máximo de abnegação e capacidade para resistir às maiores dificuldades causadas tanto pela repressão, quanto pela consciência atrasa das próprias massas.17 Esse é um dos motivos pelos quais o já citado apêndice às Teses, ou teses complementares, afirma:

“Os partidos comunistas devem renunciar ao velho hábito social-democrata de eleger exclusivamente parlamentares “experimentados” e sobretudo advogados. Em geral, os candidatos serão escolhidos entre os operários. Não se deve temer a designação de simples membros do partido sem grande experiência parlamentar.

Os partidos comunistas devem rechaçar com desprezo, sem piedade os arrivistas que se aproximam com o único objetivo de entrar no parlamento. Os comitês centrais só devem aprovar as candidaturas de homens [e mulheres] que durante longos anos tenham dado provas indiscutíveis de sua abnegação pela classe operária;”

Ou seja, não bastavam promessas de sangue e suor, como um juramento a bandeira. É pela experiência prática da luta de classes que a organização política centralizada dos revolucionários pode determinar quem são os indivíduos aptos a exercer uma das tarefas mais difíceis18. Também não é pelas capacidades subjetivas que se determina os mais aptos: os de melhor oratória ou os que conhecem mais sobre teoria e sobre a história, mas os indivíduos mais disciplinados, os mais abnegados e testados, que falassem a língua dos explorados e oprimidos. Em síntese, os candidatos e parlamentares comunistas deveriam ser os melhores revolucionários. Essa era a única condição aceitável, e como temos visto – não só pelos exemplos históricos acima, mas também nos exemplos cotidianos atuais, onde os partidos de esquerda, mesmo da esquerda radical, estão tomados por arrivistas – esse critério em nada carecia de sentido.

Escolhidos os indivíduos, que devem representar os comunistas e caso seja eleito, segundo as teses, o mandato parlamentar deve apresentar regularmente “projetos de lei puramente demonstrativos concebidos não visando a sua adoção pela maioria burguesa, mas sim para a propaganda, a agitação e a organização” dos trabalhadores. Por fim, gostaria de frisar essa parte das teses, visto que é muito fácil cairmos na tentação querer resolver os problemas da classe trabalhadora através do parlamento. É comum, entre parlamentares da esquerda, a disputa para ver, no final do exercício, quem apresentou mais projetos, quem mais apresentou emendas, etc.

Em primeiro lugar, o parlamento não pode pelas suas próprias características resolver o problemas mais imediatos da classe trabalhadora. Em segundo lugar, a pressão que sofremos da própria classe trabalhadora para resolvermos tudo, mesmo que um parlamentar não tenha essa prerrogativa, é parte da educação burguesa sobre as massas, que cria uma relação dependente dos trabalhadores aos parlamentares ligados aos governos e, que por isso, tem mais condições de conseguir ganhos concretos.

Compreendemos que as Teses Sobre Parlamentarismo estão entre os documentos políticos mais importantes produzidos na história do marxismo, pois, apesar de se referirem ao tema especifico do parlamentarismo, as Teses demarcam claramente a natureza política da militância revolucionária: nunca se adaptar a opinião pública burguesa, ao senso comum burguês e de esquerda. Sempre combater as ilusões da classe trabalhadora no regime democrático burguês e nas direções traidoras. Se é verdade que os tribunos socialistas devem ter o senso político muito mais aguçado do que todos, todos os militantes marxistas devem desenvolver esse mesmo senso em alta medida. Cada militante revolucionário deve, em alguma medida, ser um tribuno da classe operária.


Notas

1 Teses sobre parlamentarismo. Segundo congresso da IC.

2 Sobre as eleições para assembléia constituinte na Alemanha em 1918. Publicado em 23 de dezembro de 1918. Em Rosa Luxemburgo: textos escolhidos. Editora UNESP. 2011. pag. 327.

3 Ver Marx, Engels e a política. In: Como Mudar o Mundo: Marx e o marxismo, de Eric Hobsbawm. Pag. 53-87. São Paulo. Companhia das Letras, 2011.

4 Companheiro de Rosa Luxemburgo na luta contra o oportunismo na social democracia alemã, junto com Rosa, Franz Mehring, Clara Zetkin e outros ajudou a fundar a liga espartaquista e posteriormente o Partido Comunista Alemão.

5 Parlamentar comunista sueco, várias vezes elogiado por Lênin devido sua defesa incansável da auto-determinação da Noruega frente a Suécia e também pela sua defesa contra a primeira guerra mundial, Lênin o considerava um exemplo de parlamentar revolucionário. Nunca capitulou ao stalinismo e por conta disso passou seus últimos anos no ostracismo, mas morreu defendendo o legado revolucionário de Lênin e Trotsky.

6 Teses sobre parlamentarismo. Segundo congresso da IC.

7 “9º) O método fundamental da luta do proletariado contra a burguesia, isto é, contra seu poder governamental, é antes de tudo o das ações de massa. Essas últimas são organizadas e dirigidas pelas organizações de massa do proletariado (sindicatos, partidos, sovietes), sob a condução geral do Partido Comunista, solidamente unido, disciplinado e centralizado. A guerra civil é uma guerra. Nesta guerra, o proletariado deve ter bons quadros políticos e um bom estado-maior político dirigindo todas as operações em todos os domínios da ação” O fundamental da atividade comunista é a luta direta, por isso, o trabalho parlamentar deve antes de tudo servir para luta revolucionária do proletariado. Em seu ponto “12º) Esta ação parlamentar, que consiste sobretudo em usar a tribuna parlamentar para fins de agitação revolucionária, para denunciar as manobras do adversário, para agrupar em torno de certas idéias as massas que, principalmente nos países atrasados, consideram a tribuna parlamentar com grandes ilusões democráticas, deve estar totalmente subordinada aos objetivos e ás tarefas da luta extra-parlamentar das massas;” as teses da internacional comunista seguem muito evidente que a forma prioritária de atuação do partido é extraparlamentar e que sua atividade parlamentar subordina-se à ela.

8 Citado por Pierre Broué em O Partido Bolchevique. Cap. IV O partido e a revolução.

9 Valério Arcary. 1914-2014: Os cem anos da primeira guerra mundial e uma lição teórica. http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2641

10 Pierre Broué. Revolución en Alemania Vol. 1. 1971.

11 Vale ressaltar que Liebknecht não fazia parte de uma organização centralizada e bem preparada para resistir a repressão e às prisões, ele seria ganho para as posições de Lênin sobre a fundação de um partido comunista na Alemanha apenas um pouco antes de ser assassinado, assim como Rosa Luxemburgo. (Pierre Broué. Revolución en Alemania Vol. 1. 1971.)

12 Pierre Broué. Revolución en Alemania Vol. 1. 1971. pag. 88.

13 Idem.

14 Idem.

15 Trotsky. Mi Vida, pag. 253.

16 “Nos países em que alguns reformistas ou semi-reformistas, isto é, simplesmente arrivistas, tenham conseguido introduzir-se no grupo parlamentar comunista ( isso já aconteceu em vários países), os comitês centrais dos partidos comunistas deverão proceder a uma depuração radical desses grupos, inspirando-se no princípio de que um grupo parlamentar pouco numeroso mas realmente comunista seve muito melhor aos interesses da classe operária do que um grupo numeroso mas carente de uma firme política comunista;”. Teses sobre parlamentarismo. Segundo congresso da IC.

17 Teses sobre parlamentarismo. Segundo congresso da IC.

18 Neste caso cabe perfeitamente uma máxima destes tempos: “se está fácil é porque provavelmente algo não está certo”.

Marlon Whistner