Em termos históricos e sociológicos e, porque não, científicos, há uma diferença significativa entre o que seja um conceito e o que seja uma noção. Enquanto o conceito se sustenta sobre as bases de um esforço sistemático de delimitação e é amplamente reconhecido por isso, as noções são evasivas em termos de definição. Genéricas e um tanto abstratas, as noções têm sua importância, é verdade. Desde que compartilhadas minimamente por um grupo, noções ajudam sim na construção do entendimento. Mas não sem consequências, é verdade. Há muita diferença do que seja o conceito marxista de exploração do que é a noção genérica no senso comum que muitas vezes a trata como algo quase imoral. “O mal patrão explora seus funcionários” tem conotações de assédio moral, por exemplo.

Nesse texto quero polemizar um termo que, em meu entendimento, usamos sem muito compromisso e como uma noção vaga e genérica. É o termo “massa”. Não quer dizer que não podemos usá-lo, mas tenho receio de que mudanças recentes no mundo podem estar tornando seu uso um tanto problemático, o que pode ter consequências políticas. Portanto, desde meu ponto de vista, é preciso fazer ressalvas.

Cotidianamente acabamos usando massa em dois sentidos que se complementam. Sentidos que podem ser entendidos no binômio quantidade-qualidade. O primeiro deles, mais intuitivo, é o sentido do volume de pessoas. Quer dizer, a noção quantitativa de massa. Quando nos referimos “às massas”, não estamos nunca nos referindo a um punhado de pessoas ou grupos. Aqui, massa se liga a um incontável número de pessoas. Quando dizemos, por exemplo, que determinada música ou time de futebol “é de massas”. Pertencer à massa significa ter ampla e significativa aceitação ou pertencimento a uma grande quantidade de pessoas. Mas na medida em que a quantidade se torna incontável, opera a dialética quantidade-qualidade. Mas não no sentido empregado por Marx ao destrinchar a ideia de população, desmontando-a sistematicamente para operar um retorno a uma ideia menos caótica do todo1. Na medida em que vão se abstraindo as determinações, o sentido operado é justamente o contrário, é o da generalização. O retorno é para a ideia caótica de um todo abstrato, homogeneizado e disforme. Justamente a ideia de massa. Um volume amorfo, homogêneo e necessariamente genérico.

Igualmente, conforme são diluídos e homogeneizados os diferentes setores sociais da população para compor a massa, são diluídos também os respectivos níveis de consciência. E esse é justamente o segundo sentido: o uso de massa como nível de consciência. Uma consciência sempre mediana para baixo. É sentido que se aplica quando usamos massa em sua acepção qualitativa. É o caso quando qualificamos um único indivíduo como uma “pessoa da massa”. Não significa uma massa de uma pessoa só, mas uma pessoa que expresse o nível de consciência médio, mais ou menos baixo, mais ou menos atrasado que é a “consciência da massa”. É o indivíduo exemplar genérico da população. Não por acaso a noção de vanguarda é sempre apartada da de massa. A vanguarda não pode existir na massa. Pelo contrário, existe à parte, fora dela, derivada de um processo social e político específico, como é uma greve de uma determinada categoria em um determinado local. Vanguarda é especificidade, nunca generalidade.

Para entender um pouco dessa problemática e suas implicações, acho pertinente um resgate histórico da origem desse termo, seu caminho até aqui e para onde ele aponta. Jesús Martín-Barbero, apesar de suas diferenças e críticas ao que chama de “ortodoxia marxista”, fez talvez o mais sério resgate sobre essa noção no seu clássico Dos meios às mediações, que praticamente reproduzo a seguir e ao qual tenho muito pouco a acrescentar. Isso não significa um alinhamento com o autor e, ao final, as diferenças serão pontuadas.

A Liberdade guiando o povo”, Eugène Delacroix – 1830

Revolução burguesa e o povo como fiador

Durante séculos a Europa permaneceu organizada em feudos e pequenos reinos. Se por um lado esses reinos se mantinham por um precário monopólio da força, por outros se legitimavam ideologicamente pelo discurso religioso. Além do poder da própria instituição Igreja, era também derivado de Deus o poder dos próprios reis. Na medida em que as bases materiais desse monopólio vão se erodindo, com o renascimento comercial e filosófico, mudanças nas formas de produção e a ascensão de uma nova classe – a burguesia -, abre-se também uma fissura ideológica. Se o poder não emana de Deus, e é justo que os reis sejam derrubados por isso, de onde surgiria, ideologicamente falando, a força que legitimaria as novas formas de poder?

Claro, as coisas não foram colocadas nesses termos. Mas é justamente sobre esse debate que se debruçaram diferentes correntes filosóficas dentro do que chamamos de Iluminismo. Surge aqui a noção política de povo. E ressalto a noção política porque aqui o povo é conclamado apenas para emprestar legitimidade política às novas formas de governo, mas nunca para ocupar o papel de sujeito político. Há uma contradição gritante aqui. Pois apesar de legitimar o novo poder, esse “povo” representa tudo o que as luzes rejeitam: misticismo, superstição e ignorância (MARTÍN-BARBERO, 2015).

Abordagens contratualistas como a de Rousseau, por exemplo, só se sustentam em um contrato em abstrato compactuado por um povo em abstrato. Não existe processo histórico muito menos contradições na formação disso que ele chama de povo. Igualmente nas ideias de vontade do povo ou opinião pública que, em seu sentido habbermasiano, se aproxima, quando muito, dos cafés burgueses onde se discutia questões filosóficas. O povo aqui é sempre uma coisa etérea, abstrata, por mais apaixonadas que fossem as defesas em seu nome.

Essa paixão toda pelo povo e a vontade popular diminui quando se reconhece que talvez ele não seja apenas qualidades. A entidade povo continua como fiadora do regime político mas não mais por suas virtudes ou direitos naturais, mas por seus defeitos. É o caso do “homem é o lobo do homem” de Thomas Hobbes que, não coincidentemente, acaba defendendo modelos políticos mais centrados na autoridade. Vale mencionar o dilema de Tocqueville que via com preocupação alguns aspectos do estabelecimento de sociedades democráticas e mais igualitárias. Para o pensador, o individualismo em uma sociedade baseada na vontade da maioria e que caminha cada vez mais para a igualdade de seus membros, acabaria dando origem a um novo tipo de poder despótico constituído pela permanente tutela da maioria. Essa difusa tirania pouco a pouco destruiria as bases da liberdade individual. Quem poderia defender um indivíduo que, porventura, se visse vítima de uma injustiça da maioria?, se questiona o filósofo liberal.

A Primeira Missa no Brasil”, quadro de Victor Meirelles (1860), apresenta o episódio de maneira esterilizada, sem conflitos ou contradições. Uma espécie de precursor do mito da democracia racial.

O povo-mito fundador no Romantismo

A contradição entre o povo como fiador mas excluído enquanto sujeito político permeia toda a filosofia burguesa posterior e no Romantismo, movimento político, estético e filosófico, algumas tentativas de superação dessa contradição aparecem. A dissolução dos feudos e a constituição de estados nacionais é o mote de fundo sobre o qual opera essa mudança no imaginário. O povo, além de fiador de sistemas políticos, ganha um status cultural. No romantismo, o povo ignorante do iluminismo dá lugar a um povo mítico, fundador da nação e fonte originária da cultura nacional e de suas raízes étnicas. Em síntese, a “alma” da nação nasce do povo que é também seu fundador. É por isso que para o Romantismo o povo tem características heróicas, especialmente na releitura do passado operada por essa corrente, colocando-o como corpo coletivo homogêneo e unido, destinado, lutando pela sua independência e constituição de um Estado nacional próprio. Apesar de superar o problema do povo ignorante dos iluministas, o povo romântico é igualmente abstrato. Não existem aqui impurezas, leia-se, contradições, conflitos e choques na formação da etnia e da cultura, como se a formação de povos não fosse a história das guerras, dominações e conflitos. Não à toa hoje usamos o termo romantizar, forma verbal para o Romantismo, para nos referir à completa idealização, muitas vezes inocente. Uma coisa romântica é uma coisa abstrata e higienizada de suas contradições.

É nesse contexto, quando o povo ignorante iluminista ganha direitos culturais, que surgem noções como a de cultura popular (e também do folclore2). Noção que, ainda que vista sob um prisma positivo, mantém traços do elitismo burguês ao manter a separação entre cultura popular e cultura erudita.

Mas essa ideia de pureza originária do povo é cotidianamente questionada pelo avanço da industrialização, a formação de grandes centros e deterioração do modo de vida provocada pelo avanço do capitalismo industrial. Aqui os românticos se chocam com os ideais iluministas de progresso contínuo e linear. Esse progresso não gerou bem-estar para todos. Não é isso que eles vêem pelas janelas de suas casas e pelas ruas dos grandes centros. Por isso parte da mudança no imaginário operada pelo romantismo consiste em uma utopia projetada para o passado, de volta às origens, fugindo da cidade e mirando na bucólica vida camponesa (fugere urbem). A romantização do povo fundador não se sustenta na realidade dos grandes centros industriais, a utopia do passado traz em si a distopia do presente.

O quarto Estado”, de Giuseppe Pellizza da Volpedo (1901). O povo é a fonte da justiça social.

O romantismo anarquista

Essa noção romântica de de povo-mito é em partes compartilhada pelo Anarquismo. É verdade que os anarquistas tentam romper com o culturalismo estrito dos românticos, que viam o povo apenas como berço da cultura, politizando a ideia de povo, rompendo também com o assujeitamento da idéia povo-fiador dos iluministas. Ou seja, para o anarquismo o povo ganha status de sujeito histórico e político. Alguns traços se mantêm, especialmente da idealização romântica. O povo continua como uma entidade essencialmente boa e também como matriz, berço de virtudes e qualidades, mas que agora não são apenas culturais, mas também políticas. A vontade do povo passa a ser a vontade de justiça. O que em partes justifica o fetiche anarquista com tudo que seja espontâneo ou espontaneísta, tido como genuinamente justo. Ora, se o povo é a fonte da vontade de justiça, tudo que emana do povo é justo, tudo que é espontâneo é também antiautoritário (essa é a fonte da estética anarquista). Poder popular e, especialmente, cultura popular, passam a ser instrumentos da luta política pela emancipação. E essa unidade do povo-mito anarquista se sustenta por uma ideia, igualmente difusa e genérica de que a opressão atinge a todos. Opressão generalizada que opera entre blocos de poder, ou seja, da elite contra o povo. A exploração econômica, de classe, por exemplo, é apenas uma das muitas maneiras de se oprimir o povo.

Uma opressão genérica, portanto, que abstrai suas determinações históricas e especificidades para um sujeito político igualmente genérico, abstrato e sem historicidade, “o povo”, em uma noção igualmente genérica de poder.

Ecce Homo”, Mihály Munkácsy (1896). O turba é instintiva, impulsiva e violenta.

Do povo mítico à multidão-psíquica

Concomitante às idealizações anarquistas, alguns outros setores passavam a ver com menos entusiasmo o crescimento de populações marginalizadas nos grandes centros urbanos e industriais. Conservadores, reacionários e a própria burguesia, que de classe revolucionária já tinha se estabelecido como classe dominante, sentiam-se ameaçados pelo crescimento desses grupos sociais. A experiência recente da Revolução Francesa, com todos seus excessos, assombrava a consciência desses liberais.

Se românticos e anarquistas viam com bons olhos o povo-mito, esses filósofos fazem um retorno ao povo ignorante dos iluministas, mas agora apoiados em novas noções do positivismo científico em voga época, especialmente da Psicologia. A passagem vai do povo-mito, heróico por natureza, à turba, à multidão violenta, impulsiva, instintiva e movida por crenças, não pela razão. É o caso de abordagens como a de Gustav Le Bon, diplomata francês, que escreveu livros como A psicologia das multidões e As opiniões e as crenças. Para Le Bon, a formação de multidões significava a constituição de um estado psíquico primitivo, que deixava florescer a “alma da raça”, facilmente seduzida por um líder carismático. Notem o componente biológico e a meio passo de conclusões racistas. Segundo ele, as multidões seriam essencialmente violentas, irracionais, sugestionáveis, desprovidas de culpa e, portanto, criminosas. Na verdade, o que essas teses psicologizantes escondem sob as roupagens científicas é todo o medo e preconceito burguês contra as multidões insurgentes.

O próprio Freud faz um diálogo com as teses de Le Bon em seu Psicologia das massas e análise do eu, quando analisa a formação de grupos como a Igreja e o Exército (FREUD, 1976). Em sua crítica, Freud relativiza o efeito do contágio, da sugestionabilidade e do próprio papel do líder atribuído por Le Bon. Para ele o que emergiria na psicologia de grupos não seria nada mais do que já se encontra no inconsciente do indivíduo, mas de forma reprimida. A diferença é sutil mas é significativa perante outros teóricos, mais elitistas, que se achavam acima dessas questões. Freud, como os românticos, reconhece que as multidões são capazes de virtudes também, como é o caso da criação das línguas. Essa passagem da multidão para o indivíduo psicologizado é continuada por Wilhelm Reich, por exemplo, quando se questiona sobre a submissão do indivíduo à autoridade.

Outro autor que também busca certa compreensão sobre o fenômeno das multidões em uma perspectiva psicológica é Adorno. Em seu Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista, por exemplo, o frankfurtiano chega a mencionar padrões libidinais e hipnose para explicar os padrões psicoanalíticos do movimento fascista. Em seu interesse sobre a ascensão do nazifascimo, Adorno inclusive coordenou os Estudos sobre a personalidade autoritária, um dos grandes estudos tentando uma compreensão sobre o preconceito e outras ideias de ódio. Apesar disso tudo, Adorno argumentava que nunca tomou “essas coisas como primariamente psicológicas” (2020). Isso, todavia, não nos faz escapar do fato de que esses estudos frankfurtianos, especialmente os de Adorno, Reich e também de Herbert Marcuse, estão na base do discurso contemporâneo que vê o fascismo como um problema moral, psicológico e de desvio autoritário de personalidade. Daí tudo ser chamado de fascismo, independentemente das bases sociais e econômicas.

Homenagem à Marilyn Monroe, por Andy Warhol (1962)

Meios de comunicação e a massa-cultural

Os frankfurtianos, é preciso mencionar, estão em um momento posterior ao de Freud e Le Bon. Com a virada do século XX a humanidade assistiu ao surgimento de uma série de meios de comunicação, como o rádio, cinema e televisão. E o estudo dos impactos sociais desses novos meios implica em uma mudança significativa sobre o entendimento das multidões. Gradativamente, o que em Le Bon era multidão e crença, passa a ser entendido como público e como opinião. É justamente a ideia de que esses novos meios levariam à homogeneização da opinião é que faz com que a multidão-público se converta em massa.

Na ideia de massa estão contidos elementos de todas as concepções que a precederam. Mas destaca-se aqui certo preconceito em relação a ela. A massa é abordada de um ponto de vista da cultura e do consumo de informação e, tal como o povo-fiador iluminista, é essencialmente ignóbil. A cultura popular romântica passa a ser a cultura de massa, industrializada e, por isso, empobrecida. A massa, tal como uma massa de pão, é igualmente manipulável, tal como Le Bon acreditava serem sugestionáveis as multidões. A sugestão não viria mais do líder, mas dos meios de comunicação de massa, reproduzindo uma cultura enlatada ou a propaganda ideológica dos monopólios estatais. Ou seja, a abordagem culturalista dos românticos se funde com aspectos da abordagem psicologizante em uma síntese formada pela tríade meios de comunicação de massa, cultura de massa e manipulação das massas. E o uso feito pelos regimes autoritários da propaganda no início do século XX só catalisou essa compreensão. Como disse Domenach, a propaganda política moderna pressupõe duas coisas: as massas e os meios de comunicação em massa.

Vale mencionar estudos como o do behaviorista Sergei Tchakhotine: A mistificação das massas pela propaganda política, dedicado ao condicionamento do comportamento humano pelas propagandas repetitivas e uniformes. Também a direita liberal reagiu a isso, como é o caso de Ortega y Gasset, em seu A rebelião das massas, em que cunha a noção do homem-massa. Para o liberal espanhol, o homem-massa representava a ditadura da maioria contra as liberdades individuais (massificação). Ortega y Gasset assistia com desdém o que via como decadência cultural ocidental com a ascensão da cultura de massas, o que o levou a fazer uma espécie de releitura cultural do dilema tocquevilliano. É nesse contexto que surgem também concepções como a de “populismo”, baseada em uma ideia genérica de certo povo-massa.

Como não se pode falar em uma definição conceitual amplamente aceita do que seja a massa, todas essas abordagens, mais ou menos difusas e imprecisas, atravessam essa noção genérica e descompromissada que chamamos de massa. Quando dizemos “massa”, isso tudo existe ali de forma latente. Um volume enorme de pessoas, abordados do ponto de vista cultural, do consumo da informação e do nível de consciência, mais ou menos homogeneizadas (pelo menos percebidas assim), pobres culturalmente e manipuláveis tanto em termos psicológicos quanto políticos, para o bem e para o mal. Meramente passivas, as massas absorvem tudo e, no máximo, apenas reagem violentamente.

 

Aclamação de Bergoglio como Papa Francisco (2013)

Comunicação digital: da massa à bolhas culturais

É preciso dizer, por fim, que na segunda metade do século XX em diante algumas outras abordagens culturais apareceram no contexto do consumo de massa. O indivíduo passa a ser tratado não mais como uma folha em branco, em abordagens meramente behavioristas. Mas como portador de uma cultura e de valores ideológicos prévios aos meios de comunicação de massa. Seu papel deixa de ser o de mero receptor passivo e a construção dos sentidos das mensagens passa a ser compreendido como o resultado de uma troca entre suas concepções e as propagadas pelos meios de comunicação. É um processo dialógico. O sentido da comunicação não está dado a priori, como acreditavam os primeiros teóricos da comunicação de massa, mas é construído no processo em meio a uma disputa.

Esse novo entendimento reconhece que dentro daquilo que antes se chamava de massa existem, na verdade, distintos grupos culturais e ideológicos que disputam as construções do sentido. O próprio Martín-Barbero incorpora a ideia gramsciana de hegemonia para deslocar o problema da comunicação dos meios técnicos para as experiências de vida. A medição (cultural) é aquilo que existe entre a produção e a recepção. Essa é uma abordagem, digamos, etnográfica-comunicacional, que centra seus estudos no problema da codificação e decodificação das mensagens, para mencionar o trabalho de Stuart Hall. É a antessala de certas concepções pós-modernas que deslocam a luta de classes do campo econômico para o campo subjetivo, simbólico e ideológico. O sujeito deixa de ser a classe e passa a ser o ecossistema de grupos identitários. Para além da emissão da mensagem, esses teóricos estão preocupados em entender como ela é recebida e interpretada. Isso tudo culminará na ideia contemporânea de “disputa narrativa”, disputa pela linguagem e outras abordagens.

Essas concepções ganham enorme impulso com o advento dos meios de comunicação digital. A possibilidade de hipersegmentação proporcionada pelas redes vai de encontro com a ideia de distintos grupos culturais e identitários. A TV e o rádio, voltados para milhões e milhões, começam a dar lugar à comunicação de nicho, em termos de conteúdo, forma e linguagem. A proliferação de dispositivos, meios e redes sociais põem o que foi a comunicação do século XX de cabeça para baixo. A internet não é chamada de meio de comunicação de massa, pois a lógica da massa não existe na rede. A prova cabal disso tudo é que cada vez mais as técnicas de publicidade se baseiam em uma coisa chamada persona, como nome e biografia bem especificadas. Não existem mais noções genéricas e abstratas. A velha noção de massa explode na noção de bolhas culturais, identitárias ou de qualquer outro recorte possível. A homogeneidade e disformidade da massa passa a ser substituída pela extrema heterogeneidade e pela hipersegmentação.

Indo ao trabalho”, de Laurence Stephen Lowry (1959)

O marxismo perante isso tudo

O povo-fiador mas assujeitado politicamente; o povo-mito, fundante e berço da cultura; a multidão psicologizada, violenta, instintiva e ignorante; a massa empobrecida culturalmente mas inserida em um circuito de consumo… Ora, e o que é que falta em todas essas abordagens? Exatamente aquilo que é central para o marxismo: o entendimento de classe social. Não é preciso grande esforço teórico para entender que a noção de massa tem muito pouco a ver com o conceito de classe. Igualmente, a noção de bolha nas redes, que também escapa à noção de classe social. Só usamos esse termo, sem culpas, justamente porque ele é vazio o suficiente para nos permitir isso. E tampouco acho que todas essas abordagens devem ser simplesmente descartadas. A questão é justamente como os marxistas devem olhar para isso, e não como eles devem fechar os olhos.

É verdade que a existência determina a consciência. Não se trata de questionar isso. Igualmente, que a classe social determina em última instância o grau de acesso à informação e à cultura na medida em que, sob o capitalismo, ambos não passam de mercadorias. Mas é verdade também que o conceito de classe, como um conceito social e, sobretudo, da esfera da produção, não explica por si só a heterogeneidade do proletariado, especialmente no que diz respeito ao consumo da informação. Tampouco parece promissora a disjuntiva ou economia ou cultura. De um lado os que descartam o conceito de classe e as bases materiais da produção da consciência. Que entendem tudo como subjetivo, simbólico, cultural, ideológico e caminham, inevitavelmente, para o entendimento de que a luta política é a luta pela narrativa e pela consciência. Do outro, os que fecham os olhos para o subjetivo, para o ideológico, e se encastelam no determinismo mecânico e materialista vulgar, de uma pretensa pureza e homogeneidade (igualmente romântica, diga-se de passagem) do que seja a classe social.

Os impactos disso na agitação e propaganda

A ideia de um proletariado ideal, genérico e abstrato, a propósito, não passa de uma versão obreirista do mito do bom selvagem. De consequências políticas nefastas, especialmente no terreno da agitação e da propaganda política, atravessadas por todas as transformações sociais e tecnológicas do século XX. Não se trata de estar “atrasado” em relação à comunicação digital. O risco que corremos é o de não compreender sequer a realidade e os fatos concretos. Após um século de desenvolvimento tecnológico comunicacional é preciso reconhecer que, se não mudaram as bases estruturais do capitalismo, mudou a dinâmica de circulação de mercadorias, mudou o tempo de rotação do capital, mudaram a sociabilidade entre os setores sociais, a dinâmica cultural e o consumo de informação. E que isso tudo são bases materiais concretas de processos sociais reais com impactos políticos. Vide a rapidez com que evapora a reputação de um político que teve áudios vazados, para citar um exemplo. Ou então a repercussão da entrevista ao vivo com o Altino, metroviário. As bases concretas para esses fenômenos é a existência de um ecossistema comunicacional muito superior do que existia há 20 anos atrás. E que muda diariamente em ritmo acelerado.

Os meios comunicacionais do presente século não aposentaram os do século anterior. Mas, isso sim, os forçaram a uma nova dinâmica. O ecossistema comunicacional expandiu-se exponencialmente, se complexificou, e o que chamamos hoje de Comunicação é a síntese dos usos e da coexistência de todos esses meios em simultâneo. Síntese que não é a soma de todos, mas em sentido dialético, de mudança de qualidade. E quando nos referimos à mudança qualitativa, isso implica, necessariamente, em mudança de entendimento, de lógica e de raciocínio. Os novos meios não exigem apenas o domínio tecnológico e operacional. O que eles exigem, sobretudo, é uma outra compreensão do que seja a Comunicação.

Pensar Agitação e Propaganda hoje exige levar tudo isso em conta. E aqui surgem as questões. É possível falar ainda em um “jornal de massas”? Será que é apenas um jornal de grande tiragem e venda, ou existe alguma outra concepção contrabandeada nas entrelinhas? Ou então, propaganda para as massas? Será que ainda conseguimos pensar a Comunicação pressupondo uma ideia de distribuição em e para a massa? O que isso significa, concretamente, em termos conceituais e políticos? Talvez a noção de massa nunca tenha se adequado formalmente ao marxismo. Agora sequer se adequa ao contexto comunicacional. Será que é prudente continuar a se basear em um raciocínio comunicação-massa? Quais os impactos políticos da manutenção dessa lógica? Há um século inteiro que nos precede. Não podemos mais nos dar ao luxo de usar isso descompromissadamente.

Como reconhecer todos esses nuances, essa nova forma que se apresenta o velho capitalismo, sem abrir mão dos fundamentos do marxismo e do programa político, escapando aos determinismos vulgares, sejam eles tecnológicos ou economicistas, e sem se furtar ao embate em relação às ideologias pós-modernas? Existem pistas, mas ainda não começamos a nos dedicar a isso.


Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

______. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

DOMENACH, Jean-Marie. A propaganda política.

FREUD, Sigmund. Livro 15: Psicologia de grupo e a análise do Ego e Dois verbetes de enciclopédia. In: Pequena coleção das obras de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

MARTÍN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.

MARX, Karl. Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política. In: https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm. Acesso em: 9 Mar 2022.


Notas

1 “A população é uma abstração quando, por exemplo, deixamos de lado as classes de que se compõe. Por sua vez, estas classes serão uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que se baseiam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem os preços, etc.

Por conseguinte, se começássemos simplesmente pela população, teríamos uma visão caótica do conjunto. Por uma análise cada vez mais precisa chegaríamos a representações cada vez mais simples; do concreto inicialmente representado passaríamos a abstrações progressivamente mais sutis até alcançarmos as determinações mais simples. Aqui chegados, teríamos que empreender a viagem de regresso até encontrarmos de novo a população – desta vez não teríamos uma idéia caótica de todo, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações.”

Karl Marx, Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política

2 A noção de folclore se aplica apenas aos povos antigos europeus. Asiáticos, africanos e latinos se enquadram na noção etnocêntrica de culturas primitivas e atrasadas.