Memória e História de uma aldeia Palestina nos 66 anos da Nakba

Em 15 de maio de 1948 foi criado o Estado de Israel, mediante limpeza étnica deliberada do povo palestino. Para os árabes, anakba (catástrofe), uma vez que foram expulsos 800 mil palestinos de suas terras e destruídas cerca de 500 aldeias. O deslocamento forçado dos habitantes árabes nativos, a colonização e a fragmentação de sua sociedade foram resultado da implementação de projeto sionista – movimento político que surgiu em fins do século XIX e visava constituir um estado homogêneo, exclusivamente judeu, na Palestina. Contudo, mesmo após as primeiras ondas de imigração para aquelas terras, os judeus perfaziam menos de 30% da população total. Para o sionismo, transformar essa realidade somente seria possível mediante limpeza étnica. Nur Masalha apresenta uma série de citações de lideranças sionistas que demonstram a predominância da ideia de “transferência voluntária ou compulsória” da população árabe local desde cedo[1]. Ao que foram traçados planos militares, sendo o derradeiro e o mais agressivo denominado Plano Dalet[2]. Situada a seis quilômetros a Noroeste do distrito de Tulkarm, na Palestina ocupada, Qaqun foi uma das aldeias incluídas nesse plano de limpeza étnica, como afirma o historiador israelense Ilan Pappé. Segundo ele,

como no caso de todas as outras vilas, há agora suficiente documentação militar que descreve como a vila foi ocupada, como os soldados iraquianos tentaram defendê-la e há indícios de duas atrocidades maiores – uma concerne à execução de soldados iraquianos e outra, a um caso de estupro. Qaqun foi um caso clássico no qual a vila foi cercada de três lados e um ficou aberto para a população sair debaixo de fogo e bombardeio pesados.[3]

A aldeia rural de Qaqun tinha à época cerca de 2 mil habitantes. Até 1945, os habitantes árabes dispunham de 35.611 dunums de terras (cada um equivale a mil metros quadrados[4]), ante 4.642 dos judeus e 1.514 públicas. A área cultivável era de 35.700 dunums – com plantações de cereais em 34.777, além de oliveiras, cítricos e outros. A área não cultivável perfazia apenas 1.281 dunums.[5] Ao início de maio, como escreve Khalidi (2006: 560), o vilarejo era um dos últimos da costa remanescente ao longo da faixa norte de Jaffa:

Oficiais de inteligência da Haganah reuniram-se em 9 de maio para decidir seu destino. Concordaram em “expulsar ou subjugar” Qaqun e certo número de outras vilas na planície costal, de acordo com registros da Haganah consultados pelo historiador israelense Benny Morris. Porém, aparentemente esse plano não foi implementado imediatamente, uma vez que a vila fora ocupada no mês seguinte em uma ofensiva lançada especificamente para capturá-la. Cerca de uma semana antes do primeiro traço da guerra, o comando israelense aparentemente decidiu que possuía forças insuficientes para ocupar a cidade de Tulkarm, de modo que virou sua atenção para alvos menores como Qaqun. History of the War of Independence [História da Guerra da Independência] relata que a vila fora atacada na noite de 4-5 de Junho de 1948, principalmente pelo 3º Batalhão da Brigada Alexandroni.

A Brigada Alexandroni[6] foi criada pela Haganah em 1º de dezembro de 1947 e funcionou por aproximadamente dois anos. Passou depois a integrar as Forças de Defesa de Israel[7]. Segundo consta em site oficial da Brigada Alexandroni, elaborado com o intuito de homenagear os “449 heróis que tombaram na Guerra da Independência”, a tomada de Qaqun se deu como parte do Plano Dalet. O objetivo seria “expandir o controle das áreas para melhor preparar-se contra os exércitos árabes regulares”[8]. Ainda segundo essa fonte de informação, Qaqun ficava em local estratégico que permitia o controle das forças árabes de todo o entorno. No site da Brigada Alexandroni, é citado ainda um ataque que teria sido feito aokibbutz próximo, em março de 1948, como razão para a ofensiva contra Qaqun[9]. Abder Raouf Ibrahim Yusuf Misleh garante que tal ataque não aconteceu. Nascido nessa aldeia palestina em 1935, ele foi expulso de suas terras aos 13 anos de idade, juntamente com sua família. Afirma que não havia problemas com os judeus que viviam na Palestina antes de o projeto sionista começar a ser posto em prática:

A gente tinha ligações com colonos judeus que viviam pertinho da aldeia, a uns 5, 6km. Eles começaram a comprar terra em 1940, compraram por intermédio de vendedores libaneses terra que tinham comprado dos palestinos e revendiam com lucro de quatro, cinco vezes. A gente brincava com judeu, cristão, muçulmano, nunca nenhuma criança perguntou: “Você é judeu? Você é muçulmano? Você é cristão?” Isso não existia. Antes de 1948, os judeus e os palestinos sempre viviam muito bem. (…) A gente vivia muito bem com os judeus, o problema foi o sionismo. Mas esses judeus apoiaram de maneira violenta. […]

Walid Khalidi (2006: 560) cita apenas uma colônia existente na região antes de 1948, a três quilômetros a noroeste de Qaqun: o Kibbutz ha-Ma´pil, construído em 1945. Esse é o kibbutzcitado nominalmente no site da Brigada Alexandroni. A afirmação de Abder Raouf de que “o problema foi o sionismo” – que teve o apoio de colonos – é corroborada por Pappé:

Pactos com comunidades judaicas vizinhas não garantiram que aldeias ficassem ilesas, muito embora isso tenha acontecido de forma isolada. Também se salvaram algumas poucas vilas por assegurarem mão de obra barata a assentamentos sionistas. (2008: 174)

 

O lugar das memórias
Seguem os relatos dos palestinos sobre a ocupação de Qaqun em 1948. Segundo Tawfic Abder Rahim, que nasceu em 1938 em Qaqun, e hoje vive em campo de refugiados na Jordânia:

Mesmo com a ocupação inglesa, não nos faltava nada. Vivíamos de forma tranquila, mas reivindicávamos liberdade e recebíamos de volta tortura e repressão desumana. Se um palestino carregava uma faca, era morto, enquanto os judeus tinham a força das armas, fogo e ferro. A Inglaterra começou a aterrorizar os palestinos e fortaleceu os judeus para expulsar os nativos. O mandato britânico proibia os palestinos de carregarem faca, se eram pegos, eram torturados até a morte. A Inglaterra abriu caminho para a colonização da Palestina e criação do Estado de Israel, mas mesmo com toda falta de preparo e armamento palestino, Israel pediu duas vezes o cessar-fogo. Mesmo as armas antigas dos palestinos, sem expressão nenhuma, fizeram com que tivessem medo e tentassem se reforçar. Em 1946-47, as coisas começaram a piorar, os ingleses facilitaram a ocupação e colonização, facilitaram a entrada de toda forma das forças sionistas e a maioria foram pessoas que presenciaram a Segunda Guerra Mundial, tinham alguma experiência de lutar na guerra, tinham em 15 de maio de 1948 mais de 100 mil homens, entre soldados e judeus juntos. Se você contar os árabes das sete nações que lutaram, tinha no máximo 40 mil soldados e outros palestinos juntos. Com essa força e terror, expulsaram os palestinos de suas terras. Na noite de 5 de junho de 1948, eu me lembro que minha mãe estava nos levando para o banheiro trocar a roupa suja por uma limpa. Testemunhei três ou quatro bombas vindo do oeste, de cor vermelha, meia hora antes do nascer do sol. A primeira bomba atingiu as pessoas em volta; a segunda, terceira e quarta mataram 50 a 60 pessoas. A base do exército iraquiano estava estabelecida na minha casa, na parte alta da cidade, de frente para o lado oeste. O comandante iraquiano tinha entre 20 e 30 anos, lembro bem do rosto e voz dele. Ele pediu ajuda várias e várias vezes. Um dos meus tios veio e falou que meu pai, um dos responsáveis por cuidar das pessoas na aldeia, tinha sido martirizado. O comandante ordenou que o exército iraquiano atirasse em quem estava matando as pessoas. Estava vindo uma quinta coluna para tentar baixar a guarda dos iraquianos, mas o comandante disse: “Não, estamos aqui com vocês até o fim.” Meu tio acompanhou os soldados iraquianos até uma trincheira. Mas as armas desse exército eram poucas e as dos palestinos, arcaicas. As armas que se encontravam nas mãos da população eram de fazer rir. A população vendia tudo para comprar um rifle antigo chamado borduquia, que tinha uma faca na ponta. Custava 100 ginés palestinos naquela época, o equivalente a 120 ginés de ouro inglês. As pessoas cortaram tudo, até alimentação, para poder se defender e às suas famílias, não para atacar alguém. As armas eram de diversos tipos. Vinham da Polônia, Tchecoslováquia, Inglaterra, Espanha, América, Itália. Se o companheiro morresse do seu lado, você não podia pegar a arma dele, porque não sabia usar. Testemunhei com meus olhos um homem que viveu uma história, ele está vivo até hoje. Antes do último ataque à noite, os judeus faziam revezamentos, ameaçavam invadir a aldeia e recuavam, tentavam descobrir o tamanho da resistência na aldeia, o número de combatentes, o tipo de armamento. Os judeus tinham munição ainda com cheiro de fábrica e cheia de pólvora até a boca. Os palestinos pegavam balas no chão, metade estragava, metade não funcionava, era da Primeira Guerra Mundial. Meu pai abria a bala, botava a pólvora no saco e no sol para secar e devolvia para dentro da bala de novo. Meu pai tinha uma arma turca e não tinha como comprar munição para ela, então pegava essas balas, de outras armas, e socava dentro da arma. Isso ia proteger a gente do avanço de um exército com armas automáticas e cheiro de óleo de fábrica? Eu fico batendo nessa tecla para que entendam que as armas nas mãos dos palestinos não eram nada, e não encontramos ninguém que nos ajudasse, só tinha a gente para nos defender, o nosso dinheiro para compra de nossas armas, o sangue de nossos parentes. Mesmo assim resistimos e fomos fortes. Se os países árabes simplesmente entregassem armas para nós, estava bom. Mas o que fazer se nossas armas atingiam no máximo ¼ da força delas? Meu tio tinha uma borduquia italiana, tinha terra na arma, então cerrou o cano para poder continuar a usar, e usou. Ele não podia atirar à noite, porque ela emitia um flash que tornava mais perigoso para os palestinos. Não se pode fazer frente com isso. Quando começaram a atirar, a bala não ia há mais de 20 metros, um pedaço de pau seria melhor. Em 5 de junho de 1948, entre o exército iraquiano e o pessoal da aldeia, havia umas 120 a 130 pessoas defendendo Qaqun. O que ouvimos depois é que havia mais de 3 mil judeus cercando a aldeia. Isso durou a noite inteira, quando amanheceu, ficamos expostos. Ficou claro para eles que éramos poucos e para nós como eram muitos. Tivemos que fugir, os que ficaram morreram ou foram presos. Qaqun tinha 2 mil pessoas, crianças, mulheres, idosos, e os que não tinham armas se afastaram aproximadamente mil metros da cidade. Como saíram sexta-feira à noite, pareciam pombas espalhadas, com as mulheres vestindo branco. Realmente, quando eles entraram na cidade, teriam feito absurdos escandalosos. Sábado a cidade caiu na mão de gangues israelenses, especialistas na morte, vindas de outras guerras. Todos os mortos foram jogados numa cova comum. Como meu pai morreu antes, foi o único enterrado separadamente. As aldeias no entorno tentaram recuperar a cidade, sem êxito. Dos 60 a 70 membros do exército iraquiano, restaram seis ou sete. O comandante Mohamad morreu dentro da trincheira, incentivando a resistência e pedindo calma, que o apoio viria. Ele levou um tiro na testa, falou “ah” e caiu no chão. Meu tio estava do lado dele, foi ferido nos dois braços. Os feridos viram que havia uma única saída e se foram. Só meu tio, três palestinos e sete iraquianos escaparam, fugindo sentido oeste, dali para o sul, do sul para o leste, até chegarem em Tulkarm. O exército israelense tinha cercado Qaqun formando a letra “U”, deixando apenas o lado oeste aberto. Como eu disse, minha mãe estava nos levando ao banheiro, nós tivemos que sair com a roupa suja. Minha mãe hoje tem mais de 90 anos, está viva. Morávamos na casa do meu avô, eu e dois irmãos. Era a terceira casa vizinha do meu tio. Quando começaram os ataques e movimentos estranhos, lembro que estávamos andando pela lateral da aldeia. Minha mãe achou que iam ter ataques no centro. Vimos pessoas saindo. Eu me lembro de uma pessoa da nossa aldeia com o corpo inteiro coberto de sangue, que perguntou de quem éramos filhos. Quando respondemos que era do Abder Rahim, ele se espantou, porque meu pai já tinha morrido. Andamos dois quilômetros a oeste para um vilarejo próximo chamado Bir Il Siki (Poço do Trilho) e ficamos esperando os acontecimentos para poder retornar. A noite inteira ouvimos barulhos de armas. No fim, sabíamos que a coragem seria derrotada pela superioridade militar. A cidade caiu, fomos obrigados a sair.

Em seu relato, Abder Raouf descreve com detalhes eventos traumáticos que vivenciou em Qaqun no ano de 1948:

A Palestina era uma colônia da Inglaterra. […] Até que fizeram uma divisão da Palestina em 1947[1] e o cemitério da aldeia faria parte do futuro Estado de Israel. Meu pai falava: “Não é possível, a gente tem parente enterrado, não pode nem visitar mais?” Em 1948, os líderes árabes venderam a Palestina. Muitas aldeias pequenas na Palestina foientregue pro Haganah, um grupo terrorista. E os palestinos foram expulsos da casa deles, da terra deles, inclusive a minha aldeia. A população saiu sem recurso, criança, mulher, foi tudo conduzido pelos terroristas judeus até o Rio Jordão e depois jogados por essa grupo terrorista, e tudo isso foi fruto da manipulação que foi feito com o povo palestino pelos líderes árabes, judeus, ingleses e americanos. […] As mínimas forças que os palestinos tinha não passava de um revólver, uma espingarda, era uma coisa insignificante. Os palestinos estavam sem armas, sem proteção, sem força para reagir. […] Um poeta palestino falava assim: “venderam nós como vende animais, um burro, uma vaca.” Lembro exatamente de quando entraram na minha aldeia. Eu tinha mais ou menos 12 anos, a minha aldeia tinha uma mesquita, tinha uma praça só. […]Naquele praça, sempre juntava muita gente no fim do dia, pra conversar, pra trocar ideia, toda aquele coisa de aldeão. Aquele dia, mais ou menos era cinco, seis horas da tarde, os judeus bombardearam aquele praça e mataram 38 pessoas. Trinta e oito pessoas mortos na praça! Nós estávamos jantando, a comida ficou no prato. Eu vi mulheres que a bomba explodiu, eu vi gente com barriga tudo aberta. Eu pessoalmente vi um amigo meu, a gente estudava junto. Eu vi, com minha idade. Eu passei a mão no rosto dele, na testa dele, pra reconhecer ele, tinha sangue pra tudo lado, a cabeça dele cortada, o rosto todo branco e eu passei a mão na testa dele pra reconhecer ele, eu nunca esqueço essa cena. O Rei do Iraque mandou um batalhão do exército iraquianopra proteger nossa aldeia. Mandou 30 soldados, os exércitos árabes foram lá praproteger a população em nome da legado sanguíneo, da raça, só que essas exércitos quando entraram lá foram comandados por traidores. Então soldado morre, o comandante manda ele recuar. […] De Bagdá, de Amman, eles disseram: “não tem ordem!” Os soldados não tinham ordem dos comandantes ligados à Inglaterra praavançar. A minha aldeia tinha 30 soldados e tinha um comandante, eu lembro dele, nós fizemos uma cerca, fortificação em volta da aldeia e ficou na cidade quase 200 homens e mais 30 ou 40 soldados iraquianos pra proteger ela, mas só tinha arma leve. O que aconteceu? Quando o Haganah, o grupo terrorista dos judeus, cercou a cidade, o comandante iraquiano pediu ajuda do Comando-Geral que estava em Tulkarm, que respondeu para ele se retirar. Ele não quis sair de lá, jogou o rádio de comunicação e começou a incentivar essas 200 homens da aldeia com aqueles 30, 40 soldados a resistir. Todos essas soldados e 80% daqueles palestinos aldeões morreram na batalha, porque não tiveram ajuda de ninguém. Minha aldeia e outras caíram nas mãos deles, mataram até os animais. […] Essa é o drama dos palestinos, foi tudo negociata, os palestinos pagaram muito caro por confiar nos lideres árabes, porque líderes árabes foram muito mais prejudicial à causa palestina e usaram causa palestina em benefício próprio. […] Eu tenho dois irmãos que foram feridos, um deles perdeu a orelha, outro foi ferido na espinha, ficou a vida inteira sem poder fazer força, sem poder fazer nada, porque recebeu um tiro durante a batalha. Uma semana antes, eu levei um tiro de raspão nas costas por judeus que faziam um reconhecimento da área em volta da aldeia. Outro irmão meu foi preso, ficou seis meses preso em uma cidade a 11km de distância da minha aldeia. Depois, eles liberaram ele, entregaram ele pra Cruz Vermelha Internacional. Meu irmão voltou totalmente sem articulação, absolutamente sem articulação e não demorou muito, não passou mais do que três, quatro meses ele morreu. Foi torturado, essas prisioneiros eram colocados em um estábulo, terra úmida, terra molhada, e à noite não deixavam eles dormir, faziam barulho, usavam todos os meios pra não deixar dormir, a comida era menos de que um terço do essencial prasobrevivência de um ser humano. Por isso que meu irmão voltou, viveu poucos meses e faleceu, não tinha mais mente, eles atingiram a mente dele, fisicamente, tudo. […] Tomaram nossa casa e nossa terra, a cidade, tudo.

Em sua narrativa, Abdul Qader Yousef Al-Hafi (Abu Adnan)[2] fala sobre perdas e deslocamento:

Eu saí com todos os membros da minha família, meus pais e o resto dos habitantes do vilarejo. Nosso vilarejo tinha terra fértil e nós tínhamos um campo próximo a ele; o Mar Mediterrâneo ficava a apenas oito quilômetros de distância. Nós tivemos problemas com os judeus por mais de cinco anos antes da expulsão. Nós tentamos não sair, mas no final eles trouxeram milícia armada com tanques e um grande número de pessoas armadas e lançaram um ataque contínuo sobre nosso vilarejo; eles queriam limpar toda a população de nosso vilarejo. Eles queriam nosso vilarejo em particular porque era uma posição importante estrategicamente. Nós pensamos no que deveríamos fazer e decidimos que tínhamos que evacuar mulheres e crianças do vilarejo; apenas os homens jovens ficaram para trás. Nós tínhamos certo suporte militar das vilas vizinhas, mas realmente não podíamos fazer muito contra a milícia judaica, do modo como estavam tão bem armados. Assim, à tarde, deixamos nossa aldeia e fomos para os campos em torno da aldeia vizinha, esperando para ver o que aconteceria. Nós já sabíamos que a milícia judaica estava vindo para nos atacar com o objetivo de ocupar nossa terra. Então, durante a noite, em torno da meia-noite de fato, os homens da resistência armada deixaram a vila também. A propósito, nós tínhamos perdido cerca de 50 membros do exército iraquiano e da resistência palestina nesse estágio. Esses homens defendiam a vila enquanto as milícias judaicas a bombardeavam. Nós tínhamos mais de 100 soldados iraquianos em nossa aldeia, e havíamos construído túneis em torno da aldeia também. A resistência estava comprando armas na Síria e as contrabandeando para dentro do país. Um único rifle custava 100 libras – e sem munição. A libra palestina valia bastante dinheiro nesse momento: uma libra valia cerca de quatro ou cinco dólares americanos. Então nós dividiríamos o custo de um rifle com outra família; nós tínhamos que defender nosso vilarejo com um orçamento limitado. […] O primeiro míssil a acertar nossa vila não causou danos – caiu fora da cidade. Mas quando as pessoas foram até lá para ver o dano, a milícia judaica as bombardeou, matando e ferindo quase 50 pessoas. Isso forçou as pessoas a fugirem. Nós não vimos os judeus quando eles entraram na vila, mas os homens da resistência viram. Nós estávamos vivendo em paz em nossa vila; as terras eram férteis e nós erámos capazes de viver bem com isso. Alguns dos habitantes dos vilarejos haviam construído novas casas, mas eles não tiveram a chance de desfrutá-las. […]

Walid Khalidi (2006: 560) descreve a ofensiva:

O ataque em duas frentes começou por bombardeio e artilharia pesada e encontrou resistência em unidades do exército iraquiano defendendo os entornos do norte do vilarejo. Por volta do amanhecer, uma grande parcela dos defensores iraquianos ainda segurava suas posições fortificadas, mas um “violento ataque à luz do dia decidiu a batalha” em favor da ofensiva, de acordo com relato israelense. O New York Timesconsiderou a batalha como “uma das mais sangrentas a serem datadas” e reportou que a defensiva iraquiana havia tomado posições em três linhas de trincheiras no entorno do vilarejo: “Foi aqui que a real batalha tomou lugar. [Os iraquianos]… recusaram-se a dar espaço e por várias horas lutaram como homens possuídos. Fora um combate corpo a corpo com ambos os lados utilizando facas, atirando granadas e esmagando cabeças com coronhadas dos rifles.” A versão oficial israelense é de que um batalhão iraquiano completo (450 homens) havia sido dizimado no confronto, embora inicialmente estimasse suas perdas em 12 mortos. Também dizia que ambos os lados haviam usado suas forças aéreas na batalha. “Todas as outras tentativas de ocupação de vilarejos árabes falharam [nesta área]”, de acordo com History of the War of Independence [História da Guerra da Independência]. Porém, linhas de tiro persistiram em torno de Qaqun por vários dias. Apenas dois dias após a ocupação, em 7 de junho, um alto oficial do Fundo Nacional Judaico consideraria a questão de se a vila deveria ser destruída. […] Referindo-se a Qaqun e a certo número de outras vilas, o Ministro das Relações Exteriores, Moshe Sharett, observou, em 28 de julho de 1949: “Neste momento… os árabes aprenderam a lição.”

Pappé (2008: 202) escreve que Qaqun foi citada como exemplo de operação exitosa no diário de Ben Gurion. O historiador israelense afirma: “A ONU sustenta que na tomada de Qaqun se produziu uma violação, algo que corroboram os testemunhos das tropas judias.” (Ibidem: 182)

 

A vida como refugiados
A maioria da população de Qaqun saiu com a roupa do corpo, não teve tempo de levar nada. Mesmo assim, muitos palestinos fizeram questão de carregar consigo a chave de suas casas, na esperança do retorno, como foi possível constatar em visita a campos de refugiados na Palestina ocupada e na Jordânia. Abder Raouf conta como foi a saída de sua aldeia e a luta por sobrevivência após o deslocamento:

Depois daqueles bombas que caíram no fim da tarde, a população começou a sair, a distância da próxima aldeia era de 1km, 1,5km. Saímos pensando que amanhã, depois que acaba o bombardeio, a gente voltava pra casa, mas nunca mais voltou. Meu pai chorava como uma criança e cantava, eu não esqueço nunca: “Minha casa, minha casa, um dia se eu volto lá, eu pintarei você como uma noiva.” Quando saímos, fomos numaaldeia chamada Balaa. Saímos sem nada, nada, nada, única coisa que minha mãe carregou foram as joias dela. A única coisa que salvou nós pra não passar fome é que foi instituído pela ONU um organização humanitária pra distribuir comida para os refugiados palestinos e uns campos com tendas de lona. […] Nós não ficamos nessacampo, porque nós tinha uma tia, um tio que morava nessa aldeia na montanha, naleste de nossa cidade, que não foi invadida em 1948 porque era nas montanhas. Os casados, cada um achou um lugar, só um irmão meu casado, o mais velho, morou em campo de refugiados. Nós fomos para Balaa, meus tios tinha uma casa grande e a gente se acomodou lá. Pra gente sobreviver, esse meu tio, minha tia tinham plantação. A ajuda humanitária da ONU correspondia a um dólar para cada palestino por mês. Era distribuído por mês 1kg de feijão, 1kg de farinha, um pedacinho de sabão, 200g de óleo de soja. Cada família, nós por exemplo tinha cinco mais minha mãe e meu pai, então a gente chegava lá, fazia uma fila pra receber aquele mínimo de mantimento para matar a fome. Minha família tinha plantação de milho branco em Qaqun, perto da fronteira, em um vale. A gente usava aquele milho pra dar pros animal. […] Meu irmão mais velho, pra gente não morrer de fome, disse: “nós vamos tentar tirar essa plantação de lá, cortar ele.” Ele avisou os irmãos, avisou todo mundo, a família: se a gente começar a cortar agora, os judeus não vão atacar porque eles vão esperar que todo mundo começa a entrar pra matar mais. Então a primeira noite nós levamos 25 empregados mais sete, oito irmãos com dois caminhões estacionados dentro do vale, que quando não tava chovendo era um buraco só. Nós conseguimos recolher quase cinco caminhões em dois noites e aquele milho, mais o dote que a minha mãe tinha de ouro quando casou, salvou a minha família. […] Com aquele lá, cada um de nós, eu lembro como se fosse hoje, cada um conseguiu sete sacos de milho de 50kg e nós vendemos aquele milho e começamos a trabalhar no comércio. Com 12, 13 anos eu levantava cinco horas da manhã, pegava o burro, colocava fruta e legumes em dois cestos em cima dele e levava pra cidade de Nablus pra vender pra mais tarde a gente levar alguma coisa pra comer. […] Todos os meus irmãos trabalharam dessa maneira. A única família que conseguiu tirar da nossa terra todo o milho que plantou foi a minha, porque depois de uma semana, todos os aldeões viram que nós trouxemos bastante milho e começaram a entrar lá pra cortar na terra dele, pra se salvar. Aí os judeus começaram a bombardear, começaram a matar, muita gente morreu cortando milhodele pra levar pra família dele pra comer, não é um, dois. Fizeram como se fosse uma armadilha: deixa entrar primeiro, quando entrar bastante, nós vamos matar mais. […] Depois que meu pai morreu, dois irmãos meus vieram pro Brasil e depois eu vim, por causa das dificuldades, para mandar dinheiro pra família sobreviver. Eu tinha 21 anos de idade. Eu tinha dez dólares no bolso e uma pequena mala, praticamente vim com a roupa do corpo, em uma viagem de 12 dias de navio. Meu plano era voltar para a Palestina em poucos anos, mas não consegui… Nunca ninguém voltou, porque a dramatava tudo construído, isso que aconteceu. Essa aqui é uma parte pequena da drama palestino.

A vida de Tawfiq Abder Rahim e sua família também foi totalmente transformada:

No outro dia, fomos para as montanhas, ficamos embaixo de árvores. Quem tinha parentes ou amigos em outras aldeias, foi recebido. A população se espalhou. Fomos para Tubas, no norte de Nablus, em que amigos do meu pai nos receberam. Não íamos ficar vivendo o resto da vida na casa dos outros. Fomos para Faro´un, no sul de Tulkarm, onde estudei o ginásio. Em 1949, a ONU veio e montou campos de refugiados. Saímos da cidade e fomos morar no campo. Eu, minha mãe e meus dois irmãos recebemos uma tenda de 15 metros quadrados com um pedaço de pau no meio. Os palestinos tiveram que sair de suas casas, seu aconchego, suas plantações. Tinham trigo, comida, bens, azeites, cabras, ovelha, tinham tudo o que precisavam. Tudo isso não existia mais. Na tenda de 15 metros quadrados, tínhamos que esperar para receber o pão da ONU e da Cruz Vermelha, assim como a distribuição de azeite, trigo, açúcar e arroz. A Cruz Vermelha inicialmente entregava os mantimentos, depois a ONU mudou a forma como recebíamos os mantimentos. Ficávamos em filas, como mendigos, o que destruiu nosso orgulho humano. Éramos tratados como animais. Na nossa cidade, vivíamos felizes, alimentados, com dignidade. Não precisávamos de nada, tínhamos o suficiente. No campo, passamos fome, ninguém olhava para a gente, só recebíamos ajuda humanitária. O trigo, açúcar, arroz não eram suficientes. Recebíamos apenas alguns pedaços de sabonete. Tínhamos que sobreviver conforme a pena que tinham da gente. Abriram escolas, então fui estudar. Mas a ONU abriu três classes, de primeira, segunda e terceira séries. Alunos da sétima série foram obrigados a voltar para a terceira série. A ONU dizia que não podia abrir outra sala de aula. Como assim? Palhaçada! Depois, montaram outro campo, num acordo do governo jordaniano com a ONU, em que pude completar o segundo grau. Nesses campos, passamos frio, calor, fome, humilhação. Quem é responsável por isso? O povo palestino provou do amargo e do amargo. Passamos o inferno, mas suportamos, aguentamos. Li numa entrevista de um jornalista libanês que a ONU dava a cada um 1,5 dinar jordaniano por mês. Com toda essa dificuldade, suportamos e tiramos água de pedra. Esse povo se viu convicto a aprender, se educar, resistiu e afirmou sua existência. Um dia na minha aldeia vale por tudo o que a ONU nos ofereceu nesses 63 anos. Nos deixem em casa e Deus vai premiar vocês. Não queremos nada de vocês. A tragédia palestina não foi provocada pelo povo palestino, a responsabilidade é de toda a humanidade. Todo mundo tem que ser julgado por esse crime, esse povo tem uma história, sua cultura compõe a da humanidade. É a terra dos mensageiros, sagrada, dos escritos. A humanidade tem que ser julgada por esse crime, por nos colocar como objetos numa estante. Sofremos muito, mesmo aqueles que saíram, se educaram, enriqueceram, viveram em outra sociedade, têm a alma palestina. É a terra dos nossos avós, nossos pais morreram com um grande vazio. Quem vai devolver o orgulho vazio de nossos pais? Minha terra, minha terra… Se me derem todo o mundo, não aceito, só a minha terra… Saímos há 63 anos, três irmãos, e há duas semanas enterramos um deles, o do meio[3]. O último tinha uma casa boa na região de Amman, mas o olhar dele seguia a Palestina. Conheci um sheik aqui em Baqaa que não se sentava entre as pessoas senão com o rosto virado para a Palestina. Morreu, e com ele seu sonho. Eu fui para a Palestina, andei que nem um louco entre Haifa e Jaffa questionando, pensando. O povo judeu tem mais direito do que nós sobre a Palestina? A Palestina é um nome e um corpo, uma coisa amável que jamais se esquece. A Palestina é diferente, se eu usar o mesmo forno em outro lugar, o gosto é diferente. A Palestina é sagrada. Tudo na Palestina é lindo. Deus vai ter que nos ajudar.

No refúgio, sentimentos e dificuldades semelhantes são descritos por Abu Adnan:

Eu não voltei à minha aldeia, mas algumas pessoas voltaram – elas se esgueiraram noite adentro para coletar alguns de seus pertences. Nós não carregamos nada conosco – deixamos tudo. Deixamos nosso dinheiro e nossa terra. Muitos refugiados viveram em cavernas e barracas. As barracas eram quentes no verão e miseráveis no inverno. Não havia água, eletricidade ou banheiros; o esgoto era [a céu] aberto. Chovia sobre as pessoas no inverno e algumas vezes nevava. Então a UNRWA[4] construiu algumas unidades para os refugiados… Cada família tinha uma, mas nós não tivemos suprimento de eletricidade até 1963. Algumas doações vinham aos campos deocidentais, mas nós não tínhamos suprimento de água encanada – nós tínhamos que fazer um grande esforço carregando água até que um foi instalado. Mesmo quando tínhamos um suprimento de eletricidade, o povo era pobre demais para pagar por ele, ou por tratamento médico. Após a guerra de 1967, eu fui trabalhar em Israel, que era Palestina, mas eu não fui visitar minha aldeia. Meus pais também não a visitaram até este dia. Sonhei que estava indo até lá e a vendo livre da ocupação. Eu estaria preparado para caminhar por lá – não demoraria mais de um dia. Eu conheço a estrada; levaria apenas algumas horas para chegar lá. Nós mantemos contatos com nossos vizinhos que se tornaram refugiados. Eles foram para lugares diferentes – alguns para o Kuwait, outros para outros lugares no Golfo e na Jordânia. Quanto a nós, bem, a primeira vez que saímos fomos para a aldeia de Shweikeh, próxima a Tulkarm. Então fomos para a aldeia de Burqa e ficamos lá por dois anos. Pessoas de lá nos ajudaram, mas não havia trabalho. Nós ficamos com amigos de meu pai por sete meses. Eles tomaram conta de nós, mas nós tínhamos que continuar procurando trabalho. Nós nos mudamos para Tulkarm por três anos. A vida era difícil: não havia agricultura por lá. Nós existíamos, porém não vivíamos; tínhamos que depender da UNRWA por comida, e só sobrevivíamos pelo que pegávamos deles. Então nos mudamos para Nablus e ficamos por lá até 1960. Nós ficamos na Cidade Velha, onde não havia eletricidade e nós realmente não podíamos dar conta do aluguel do apartamento. Nós tivemos que esperar até 1965 por trabalhos na cidade, depois que as pessoas começaram a se mudar para o Golfo Árabe para trabalhar. Muitos morreram no deserto, mas aqueles que conseguiram chegar ao Kuwait eram capazes de prover às suas famílias um subsídio mensal. Isso permitiu às pessoas construírem suas casas e melhorarem sua condição de vida na Cisjordânia. A situação continuou assim enquanto estávamos sob o domínio da Jordânia, até 1967, quando vimos a milícia judaica que se tornou exército israelense ocupar o resto da Palestina. Em 1967, a ocupação israelense abriu sua administração civil e impôs tributos a nós. Eles atacaram o negócio, as companhias, lojas e armazéns e isso afetou a vida sob ocupação. Muitas pessoas eram detidas, então pessoas começavam a trabalhar em Israel como empregadas. Elas iam trabalhar em suas terras, mas não como proprietárias, e sim como empregadas.

No site Alakhbar English[5], consta que na parede da casa de Abu Adnan tem um mapa detalhado da vila de Qaqun cobrindo uma parede:

Abu Adnan está diante dele e aponta para sua casa, seus vizinhos, a escola. Ele nos mostra o caminho que costumava fazer para vender sua colheita dos pomares na cidade costeira de al-Khudeira. Ele continua olhando para o mapa, e lembra os últimos dias em sua aldeia: “As cidades costeiras foram caindo uma após a outra, até que foi a nossa vez. Nos escondemos nos pomares assistindo as batalhas entre o exército iraquiano e os rebeldes, de um lado, e as gangues sionistas do outro, até que a notícia da derrota chegou a nós. As laranjas de nossos pomares eram mais do que suficientes – hoje, pedimos por nossa comida. Simplificando, essa é a nossa história.” Ele acredita que foi a liderança árabe que os traiu. “Os soldados iraquianos eram ferozes […]”, disse. “Mas havia pouco que pudessem fazer.” Não tinham ordens. Sobre o direito de retorno, não há o que questionar: “Se eles me dessem todos os tesouros deste mundo, em vez de um pequeno pedaço de terra da Qaqun, eu recusaria.” […]

Ao término da segunda fase do Plano Dalet, em que se inseriu a tomada de Qaqun, o problema dos refugiados era gritante. A ONU aprovou em 11 de dezembro de 1948 a Resolução 194, que lhes assegura o direito de retorno, bem como a seus descendentes – determinação reiterada centenas de vezes naquele fórum desde então. No ano seguinte, foi criada a já citada UNRWA, que hoje contabiliza entre seus assistidos mais de 5,1 milhões, em campos na Jordânia, Líbano, Síria e nos territórios da Cisjordânia e Gaza, ocupados militarmente por Israel em 1967. Dados de 1998 indicam que havia 14.034 refugiados palestinos oriundos de Qaqun[6].

Qaqun depois de 1948
Além do Kibbutz ha-Ma’pil, em 1949, três outros foram fundados em terras do vilarejo: Gan Yoshiya, 1km ao sul da vila; Ometz, 1km ao norte do local; e ‘Olesh, 4km a sudoeste. Channi’el foi construído em terras da aldeia em 1950. Instituído no começo desse último ano, Yikkon serviu como acampamento de trânsito para os novos imigrantes judeus. Já Burgeta, erguido em 1949, está a 5km a sudoeste, porém não em terras de Qaqun (KHALIDI, 2006: 560). De acordo com Walid Khalidi (2006: 560),

A fortaleza ao topo da colina, um poço que havia pertencido à família de Abu Hantash [um dos moradores] e um edifício escolar são tudo o que resta da vila. A fortaleza é cercada por escombros de pedra e restos das casas, e o edifício escolar ainda é usado como escola pelos israelenses. Cactos e uma velha amoreira crescem ao sul da colina. As terras adjacentes são cobertas por pomares. Em adição, algodão, pistaches e vegetais crescem nessas terras. Há uma fábrica israelense de processamento de forragem, a nordeste do local do vilarejo.

Ainda conforme esse autor, “as ruínas da fortaleza cruzada/mameluca e da mesquita mameluca, assim como fragmentos arquitetônicos de outras estruturas, podem ser vistos ainda hoje”. Nessa área, encontra-se o Parque Nacional de Kakun [Kakun National Park]. Embora conste essa grafia na placa à entrada do parque, o local é denominado Fortaleza de Qaqun no site do Departamento de Conservação da Autoridade de Antiguidades de Israel, responsável por “preservar o patrimônio arqueológico de Israel e sua herança cultural”[7]. Ali, consta a informação de que projetos de reabilitação do local estão em curso. “Há ruínas que datam das épocas dos cruzados, mamelucos e otomanos.”[8] Filho de argentinos de origem judaica que teriam imigrado em 1960 para Israel em busca de melhores condições de vida, Eitan Bronstein tinha cinco anos quando passou a viver no Kibbutz Bahan, entre Tel Aviv e Haifa, perto de Qaqun. Ele conta que brincava nas ruínas da aldeia:

Diziam que lá havia sido uma fortaleza dos Cruzados. Nunca, na infância, tinha ouvido falar que ali fora uma aldeia palestina, que ali existiram palestinos.[9]

Em sites de agências de turismo de Israel, também consta essa informação, bem como de que o local foi capturado pelo exército iraquiano durante a “guerra da independência e tomado pelas Forças de Defesa de Israel em 5 de junho de 1948”[10]. Meron Benvenisti (2002: 302) explica que

[…] a rotina de associação de estruturas monumentais com os Cruzados é a geralmente aceita não apenas em guias para o público em geral como também na pesquisa. Autores descrevem as ruínas antigas encontradas nos destroços da vila abandonada e as identificam como sítios do tempo das “Cruzadas”, mesmo que no corpo da pesquisa eles cautelosamente as declarem com “muitos vestígios estruturais primitivos… datados da Idade Média e períodos posteriores”. E de fato, de acordo com fontes históricas, a fortaleza de Qaqun, assim como a mesquita, o centro administrativo e o mercado amplo foram construídas pelo sultão mameluco Ruqn al-Din Baybars entre 1267 e 1271. É impossível diferenciar partes do sítio que foram das Cruzadas daquelas que foram Mamelucas, já que foram construídas no mesmo período, no mesmo estilo arquitetônico e a partir dos mesmos materiais de construção. Mas esse importante detalhe não desencorajou aqueles que conduziram a pesquisa – e outros acadêmicos que contribuíram – em classificar o sítio como um “bastião Cruzado”21. Os vestígios dos “períodos posteriores”, ou seja, dos moradores da aldeia de Qaqun, onde habitações árabes permaneceram intactas até 1948, não foram considerados dignos de estudo arqueológico.

Na sua análise, essa associação é feita para “erradicar os traços de uma civilização inteira” e reforçar a “conveniente escolha de uma narrativa histórica”. Pesquisando na internet, segundo relata Eitan Bronstein, ele descobriu que Qaqun havia sido uma vila palestina, destruída em 1948. O impacto da revelação o inspirou a criar a organização Zochrot em 2002, que se dedica a resgatar a memória de aldeias palestinas. Um dos seus trabalhos é renomear as vilas, incluindo a denominação original em árabe.

 

Mudando a paisagem
Dezenas de aldeias na Palestina deram lugar a parques e bosques com espécies não nativas (PAPPE, 2008: 299 e 300). Segundo esse autor (2008: 296), o processo que classifica como “limpeza étnica” incluiu apagar quaisquer vestígios de sua existência anterior e reinventá-las sob outra forma. O historiador israelense revela que, nessa fase, nomes dos vilarejos foram mudados. Segundo Benvenisti (2002: 11), a transformação foi objeto de ampla pesquisa. Foram formados “comitês para designação de nomes” por região para tanto. Ele cita, por exemplo, um cuja missão era renomear aldeias, montanhas, vales, estradas, áreas verdes na região do Al-Naqab (Negev), ao sul da Palestina histórica. Reunia inicialmente nove acadêmicos reconhecidos em seus campos de atuação, como arqueólogos, cartógrafos, geógrafos e historiadores. Em 18 de julho de 1949, eles se reuniram no escritório do primeiro-ministro David Ben-Gurion em Tel Aviv para organizar a tarefa. Na sequência, realizaram uma conferência que atraiu “centenas de participantes entusiasmados”. Segundo esse autor (2002: 11), incluindo altas lideranças políticas entre seus membros, “transcendia os limites dos campos de pesquisa, adquirindo praticamente um status oficial”. Entre seus objetivos, assinalava o desenvolvimento e avanço no “estudo da terra, sua história e pré-história, acentuando o aspecto da colonização e a conexão sócio-histórica entre o povo de Israel e a Terra de Israel (Eretz Israel)” (Idem). Assim, providenciariam documentação concreta para assegurar essa ligação. Em dez meses, teriam resultados. Os mapas seriam fundamentais para incutir no senso comum a ideia de que esses lugares teriam sido criados em áreas desoladas (BENVENISTI, 2002: 14). Em carta ao primeiro-ministro Ben-Gurion, o Comitê para Designação de Nomes escreveu: “Nós somos obrigados a remover os nomes árabes por razões de Estado. Tal como não reconhecemos a propriedade política dos árabes sobre a terra, também não reconhecemos sua propriedade espiritual e seus nomes.” (Idem) Em princípio, a opção foi por rebatizar a maioria dos lugares em referência direta aos nomes árabes (BENVENISTI, 2002: 17). Eram ou transliteração para o hebraico, ou baseados na similaridade sonora com nomes antigos. Essa escolha, contudo, resultou em polêmica no Comitê para Designação de Nomes. Os contrários à preservação da raiz árabe lembravam que o objetivo era a hebraização. Declaravam serem esses “nomes primitivos”,

não somente sons estranhos aos nossos ouvidos, mas inexatos. Seus significados são obscuros e muitos são nada mais que nomes aleatórios de indivíduos ou epítetos de natureza depreciativa ou insultuosa. Muitos são ofensivos em seus sombrios e morosos significados. (2002: 17)

A alegação dos que defendiam a recriação dos nomes, e não sua extinção, era de que, nesses casos, teriam ligações com os antigos hebreus. Mantê-los conforme a escrita hebraica seria uma forma de redenção (BENVENISTI, 2002: 19). De acordo com Pappé (2008: 298),

Como era inevitável, algumas aldeias palestinas descansavam sobre as ruínas de civilizações anteriores, incluída a hebraica, mas esse era um fenômeno limitado e nenhum dos casos implicados era inequívoco. Os sítios “hebreus” propostos remontavam a tempos tão antigos que havia poucas possibilidades de determinar sua localização de maneira apropriada, mas, como é óbvio, a razão para hebraizar os nomes das aldeias desalojadas não era acadêmica, mas ideológica. […] O entusiasmo arqueológico por reproduzir o mapa do ‘antigo’ Israel basicamente não era outra coisa que um intento sistemático por parte de acadêmicos, políticos e militares de desarabizar o país: o objetivo não era apenas mudar seus topônimos e geografia, mas antes sua história.

Mesmo diante da controvérsia, ao final, alguns nomes permaneceram como transliteração do árabe ou mantendo a similaridade sonora. Outros seriam baseados em nomes bíblicos ou passagens líricas do livro sagrado – no total, 350 de 770 nomes de assentamentos judaicos (Nurit Kliot, Apud BENVENISTI, 2002: 34). Entre eles, Gan Yoshiya, cujo significado é Jardim de Josiah[11], como já citado, um dos estabelecidos na área onde antes ficava Qaqun. Também fruto de debates no Comitê para Designação de Nomes, lugares foram ainda rebatizados com nomes de soldados mortos na “guerra da independência” e eventos como o Holocausto, visando a “modernização”, mediante o estabelecimento de uma conexão histórica. E “pelo menos 20% dos nomes pertenciam aos fundadores do sionismo, figuras públicas, líderes israelenses e pessoas que tinham dado contribuição significativa ao estado” (BENVENISTI, 2002: 35 e 36). Em locais em que não se conseguia estabelecer qualquer conexão histórica, a escolha foi por “nomes simbólicos abstratos” ou “derivados da agricultura e natureza” (Ibidem: 32 e 34). Conforme Benvenisti (2002: 35), entre maio de 1948 e março de 1951, o comitê – vinculado ao Fundo Nacional Judaico (FNJ) – apresentou 200 novos nomes em toda a área em que se criara o Estado de Israel. Quanto aos parques, Pappé lembra que o FNJ apresenta em seu site oficial esses lugares como atração turística[12]. A organização é denominada responsável pelo florescimento do deserto e a aparência europeia da paisagem:

Com orgulho proclama que esses bosques e parques se levantam sobre “zonas áridas e desérticas”: “os bosques e parques de Israel nem sempre estiveram ali. Os primeiros colonos judeus que chegaram ao país ao final do século XIX encontraram uma terra desolada.” (PAPPÉ, 2008, p. 302)

A paisagem havia se transformado totalmente. Conforme Benvenisti (2002: 309 e 310), somente com grande dificuldade um refugiado palestino poderia identificar seu local de origem depois de mais de 50 anos:

Um refugiado da aldeia de Qaqun conta: “Quando eu estive [lá] para visitar depois de 1967, eu não podia dizer exatamente onde tinha sido nossa casa. Eu era capaz somente de dizer aproximadamente, que nossa casa era localizada em uma área particular, porque havia uma amoreira grande perto da casa.”

Benvenisti (2002: 310) conclui:

 A identificação de aldeias árabes tornou-se um exercício botânico. A silhueta das aldeias estava preservada por cercas de cactos, o crescimento selvagem de árvores frutíferas, certas variedades de gramíneas e espinheiros que prosperavam nas ruínas de sítios desabitados, onde a terra tinha sido fertilizada pelos restos animais e humanos.

As representações sobre Qaqun e as transformações ali havidas após a Nakba, bem como a omissão sobre a existência de palestinos na aldeia até 1948 e os relatos dos seus antigos habitantes apontam para o que Edward Said (1935-2003) define como orientalismo. Algumas afirmações e ações de lideranças sionistas indicam a distinção que faziam entre si e os habitantes nativos. Em suas narrativas, os palestinos originários de Qaqun revelam o desprezo, abandono, negação a que teriam sido submetidos. Refletindo a perspectiva orientalista apontada, os palestinos de Qaqun – e das demais aldeias – foram transformados num “não povo”. Decorrência direta de sua desumanização foi a limpeza étnica planejada e levada a cabo em 1948 (PAPPÉ, 2007: 171 e 175). Ahmad H. Sa´di e Lila Abu-Lughod (2007: 13) destacam:

Se a mais distintiva medida da memória social palestina é a produção sob constante ameaça de apagamento e na sombra de uma narrativa e força política que a silencia, uma das mais características qualidades […] é sua orientação para o lugar. Para os palestinos, os lugares do passado pré-Nakba e sua terra têm um peso extraordinário. Não são simples lugares da memória, mas símbolos de tudo que tem se perdido e sítios de saudade aos quais o retorno é barrado.

Os autores argumentam que essa concepção norteia a visão lírica e mesmo poética das aldeias até 1948, que domina as narrativas dos palestinos, como apontam os relatos dos nativos de Qaqun. Para Rochelle Davis (2011, p. 25), o significado da palavra “nostalgia” é muito próximo ao caso palestino. Ela ensina que o termo “é pseudogrego e foi cunhado em 1688 por um médico suíço, Johannes Hofer, para descrever ‘a triste lua proveniente do desejo de retorno à terra natal’”.

 

Artigo baseado em dissertação de mestrado intitulada “Qaqun: história e exílio de um vilarejo palestino destruído em 1948”, defendida em dezembro de 2013 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), junto ao Departamento de Letras Orientais, sob orientação da professora-doutora Arlene Elizabeth Clemesha

 


Referências

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História oral

Depoimentos de refugiados palestinos de 1948 oriundos de Qaqun.

 


Entrevistas

Ilan Pappé

Eitan Bronstein

Soraya Misleh