Nova Gazeta Renana: Uma preciosidade esquecida pelo marxismo

 

É com uma felicidade imensurável que recebemos a notícia do lançamento da edição do Jornal A Nova Gazeta Renana (NGR) pela Expressão Popular. Ainda que não seja a primeira edição para o português, esta feita pela EDUC, é a primeira edição que apresenta não apenas os artigos de Marx e aqueles com autoria desconhecida, mas também os artigos de Engels, traduzidos com muito cuidado e competência por Livia Cotrim.

Mas a felicidade encontra-se no fato de que essa iniciativa possibilitará algo fundamental: resgatar uma obra ímpar que foi completamente esquecida pela tradição marxista.

Apesar destes 14 meses, isto é, o período em que Marx atua na NGR, ter-se evidenciado como momento de rara importância para o percurso intelectual do filósofo alemão, no interior da historiografia marxista é muito raro um estudo, ou até mesmo uma referência sequer desse trabalho desenvolvido por Marx durante o período das Revoluções Europeias. Sim!! Marx atua diretamente durante os processos revolucionários e o jornal foi seu principal porta-voz, mas não só. Durante esse mesmo período atuou de forma organizada em organizações que surgiram do seio dos processos sociais, como a Associação Democrática dos Trabalhadores de Colônia. Ou seja, mais do que apenas mais uma obra de Marx, é o momento em que o grande filósofo da revolução foi ator do processo revolucionário.

Se empreendermos uma busca efetiva no interior da tradição, pouco ou quase nada encontraremos acerca de nosso jornal. Maximilien Rubel, em seu Marx Critique du Marxisme, diz que: “o Livro sobre o Estado, previsto no plano de sua ‘Economia’, não foi sequer abordado, mas eventos históricos particulares fornecem a Marx a oportunidade de exprimir o fundo de seu pensamento sobre esse assunto” (RUBEL:1974, p. 284.). Essa citação reforça a ideia de que tal período histórico representa uma substancial influência no pensamento marxista. No interior de sua análise da obra do filósofo, Rubel enfatiza, como primeiro evento, a revolta dos tecelões da Silésia no verão de 1844. Sem dúvida, este acontecimento proporciona a Marx a elaboração de um texto decisivo. Contra Arnold Ruge, publica nos números 63 e 64 do Vorwärts! suas “Glosas Críticas à Margem do Artigo ‘Rei da Prússia e Reforma Social. Por um Prussiano‘”, no qual expressa sua crítica da razão política. É mérito de Rubel ser um dos raros autores que destacam e distinguem as “Glosas Críticas” com avaliações de primeira grandeza. Sintomática, contudo, e nisto Rubel parece ser apenas umas das muitas manifestações, de um dado comportamento convencional, é sua reduzida e esquemática abordagem dos materiais da NGR.

Não se trata, nesta passagem, de fazer qualquer tipo de cobrança a Rubel, mas de tomar seu caso como exemplo. Também padecem de profundidade e rigor os três capítulos que J. Elleinstein preenche com esta questão em seu livro Marx, sa vie, son ouevre, alertando que pretende, a seu modo, sintetizar monumentalmente o pensamento e a atividade do biografado. Outro exemplo é a História do Marxismo, dirigida por E. Hobsbawm. Não são encontradas mais do que algumas esparsas menções aos artigos da NGR no primeiro volume da coleção, em um capítulo do próprio Hobsbawn a propósito de uma questão relevante da política marxista, reforçando a ideia apresentada.

O número limitado de obras voltadas para a discussão do tema da política abordando a NGR apresenta também caráter fragmentário. As citações do jornal são lacunares e há escassez de referências, que, quando ocorrem, são recortadas e organizadas em meio às necessidades dos textos considerados. No aspecto mais teórico, temos a pequena obra de Auguste Cornu, Marx et la Revolution de 1848, que nos oferece muito pouco em termos de análise. Existem de fato apenas pouquíssimas obras que pretendem uma análise do conjunto dos artigos e uma delas é a de Fernando Claudin, Marx, Engels y la Revolución de 1848. No livro, Claudin assinala que: “Em sua maior parte os artigos da Nova Gazeta Renana e da Nova Gazeta Renana (revista econômico-política) não são conhecidos mais do que por um reduzido círculo de especialistas”, delimitando os objetivos de seu próprio estudo: “contribuir para o conhecimento desse importante segmento da história do marxismo, sobretudo no sentido de proporcionar ao leitor um material documental que facilite sua reflexão independente”. Para tanto, procede a uma “reconstituição sintética do discurso e da ação de Marx e Engels na revolução de 48, situando-os no contexto histórico correspondente”, buscando “evidenciar o uso prático que fazem de sua teoria (considerada em sua elaboração até o Manifesto Comunista) para analisar o processo revolucionário, nele orientar-se e tratar de influenciá-lo, e, por outro lado o efeito que o processo revolucionário, em geral, e sua prática política, em particular, tem em sua elaboração” ( CLAUDIN; 1976, p. XII).

O autor espanhol percorre os textos da NGR em busca de expor seu conteúdo categorial e com isso contribuir para a compreensão de Marx em sua época. Porém, este autor não logra sucesso em sua empreitada por não adentrar realmente nas especificidades contidas na NGR. Ao se propor a uma síntese do pensamento de Marx à luz dos eventos, Claudin não adentra com profundida na obra do filósofo alemão o que nos exige empreender tal tarefa. Permanece no âmbito apenas dos eventos e com isso sua obra possui valor para aqueles que pretendem conhecer as minucias dos acontecimentos entre os anos de 1848-1849, que se convencionou o nome de Primavera dos Povos. Quanto ao pensamento de Marx, pouco contribui para a reflexão.

Outro exemplo é Michael Löwy. O sociólogo não analisa a NGR em seu livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx, apesar de fazer pequenas menções a gazeta, e percorrer um período que engloba a época em que é elaborado o jornal. No entanto, escreve um artigo na década de 70 no qual toma a NGR como base, dentre outras obras, para empreender uma discussão sobre revolução no pensamento de Marx. Mesmo se enquadrando em meio àqueles que se referem à NGR, é necessário compreender a falta de rigor e a confusão presente em sua elaboração, justamente por não percorrer o conjunto de artigos que compõe a NGR, imputando elementos estranhos à obra que servem para corroborar uma tese já dada de antemão.

Se recuarmos mais no tempo, nos deparamos com a obra de Mehring, na qual também encontraremos a debilidades no tratamento dos textos da NGR. Em sua clássica biografia de Marx escrita em 1918, analiticamente pouco nos oferece de valioso a respeito, apesar de reservar dois capítulos de seu livro para o assunto. Apesar disso, este autor possui uma coletânea de artigos da NGR que serviram de base para alguns teóricos do início do século entrarem em contato com a obra de Marx, mas uma investigação dos textos é realmente escassa em seu percurso pelo pensamento marxista.

No entanto, seria um equívoco de nossa parte afirmar que havia um desconhecimento do jornal no início do século XX como se sucedeu em meados deste mesmo século. Nas primeiras décadas deste período, os ditos revolucionários conheciam e reivindicavam a NGR como modelo de periódico a ser seguido. O advento da gazeta, bem como dos eventos que se desdobraram na Europa nos anos de 1848-1849, figuravam no imaginário daqueles revolucionários como referencia intelectual e como referencia para a ação. Como afirma Trotsky, em sua autobiografia:

A folha bolchevique Novaia Jizn (Vida Nova), sem Lenin era qualquer coisa de pálido. Natchalo [periódico editado por Trotsky] ao contrário, teve um sucesso enorme. Tenho para mim que nenhum outro jornal do último meio século, se aproximou tanto como o nosso de seu modelo clássico, a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana) de Marx (1848).(TROTSKY; 1978, p. 159.)

Demonstrando como a NGR servia de inspiração e era um “modelo” para aqueles indivíduos. Desde Trotsky e Lenin até Riazanov passando por outras personalidades, os artigos do jornal serviram como base para elaboração no contexto russo. Este último dedica uma conferência que se encontra no livro Marx-Engels e a História do Movimento Operário, a uma análise do período em questão e com ele, da NGR. Roman Rosdolsky elabora um livro denominado El Problema de los Pueblos “sin historia” (livro este também desconhecido da maioria dos marxistas), no qual analisa rigorosamente os artigos de Engels escritos para a NGR sobre o tema em questão.

No livro de Lênin Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática (1905), encontramos uma análise que se volta para os interesses imediatos do autor, aparecendo como um repositório de tática do proletariado, relacionando o conteúdo da NGR com a realidade russa. A gazeta é reivindicada pelo autor e serve a ele como base para a elaboração de seu próprio pensamento acerca da revolução, demostrando o tamanho do impacto que teve na tradição marxista, como podemos comprovar com o trecho a seguir, retirado de uma análise do pensador russo acerca de uma passagem da NGR:

Esta é uma passagem muito instrutiva, que nos oferece quatro teses importantes: 1) A revolução alemã, não acabada, diferencia-se da francesa, acabada, pelo fato de que a burguesia atraiçoou não só a democracia em geral, mas, em particular, o campesinato. 2) A base da realização completa da revolução democrática é a criação de uma classe de camponeses livres. 3) A criação de tal classe significa a supressão dos encargos feudais, a destruição do feudalismo, mas não ainda de modo algum a revolução socialista. 4) Os camponeses são “ os aliados mais naturais” da burguesia, precisamente da burguesia democrática, sem os quais ela é “impotente” contra a reação. (…) Todas estas teses, modificadas de acordo com as particularidades nacionais concretas, pondo regime de servidão em lugar de feudalismo, podem também ser aplicadas na sua totalidade à Rússia de 1905. (LENIN; 1979, p. 469)

É claro como Lenin toma a NGR como base de sua elaboração para a Rússia de então. Não queremos aqui investigar a pertinência ou não da avaliação que apresentamos, mas queremos apenas demonstrar a importância atribuída ao jornal no início do século passado, e como esta tradição se perdeu com o passar do tempo. Trotsky também se utiliza da NGR e de textos elaborados no período de 1848-1850 para a formulação de sua tese acerca da revolução permanente. De forma menos explicita que Lenin, utiliza-se dos artigos do periódico como base de sua elaboração. Em seu livro Resultados y perspectivas, no qual apresenta pela primeira vez as bases de sua teoria, encontramos referencias à 1848, que se coadunam com a análise de Marx do período, claramente como uma influência tomada por ele. No trecho abaixo vemos uma parte de tal análise:

O ano de 1848, apresenta uma grande diferença com relação ao ano de 1789. A revolução Prussiana ou a Austríaca em comparação com a grande revolução, surpreendeu pela falta de brilho, por um lado chegou demasiado cedo; por outro demasiado tarde. O gigantesco esforço que necessita a sociedade burguesa para acertar contas radicalmente com os senhores do passado, só pode ser conseguido mediante a unidade de toda nação que se subleva contra o despotismo feudal, mediante uma evolução acelerada da luta de classes dentro desta vasta nação em vias de emancipação. (…) No ano de 1848, a burguesia era incapaz de jogar um papel comparável. Não estava suficientemente disposta nem audaz para assumir a responsabilidade da eliminação revolucionária da ordem social que impedia sua dominação. Entretanto, já sabemos o porquê. Sua tarefa consistia – e disso sabemos claramente – em incluir no velho sistema garantias que eram necessárias, não para sua dominação política, mas simplesmente para a divisão do poder com as forças do passado. A burguesia havia extraído algumas lições da experiência da burguesia francesa: estava corrompida por sua traição e temerosa pelos seus fracassos. Não somente se resguardava em empurrar as massas ao assalto contra a velha ordem, mas, buscava o apoio na velha ordem, com o objetivo de rechaçar as massas que a empurravam adiante. (TROTSKY; 2005, p. 77)

Não é o momento de discutirmos a pertinência e a justeza das elaborações tecidas a partir da NGR, em avaliar qual se aproxima mais do que diz Marx neste período. A questão aqui é apresentar a recepção de nosso jornal e como ele é esquecido ao longo do século XX, com certeza devido ao seu conteúdo não se comungar com o dito marxismo oficial. Interessante notar que duas das principais e mais influentes concepções sobre a revolução desdobradas no interior do marxismo tiveram como origem e fonte de inspiração os artigos da NGR. Influência esta que contrasta com o esquecimento dos mesmos no período que se seguiu a consolidação de Stalin no poder da URSS, que resulta em grande perda para o marxismo e sua compreensão acerca do pensamento de Marx. Por isso, reivindicamos a leitura da gazeta e seu resgate para assim compreender o que realmente Marx elaborou no campo revolucionário.

Mas o que tem de especial na Nova Gazeta Renana?
A Nova Gazeta Renana é um jornal criado e editado por Marx entre os anos de 1848-1849 e tinha por objetivo disputar, entre os trabalhadores, um conjunto de compreensões sobre as revoluções que se desdobravam na Europa naquele momento. Ou seja, é um jornal de intervenção revolucionária criado por Marx, independente de qualquer organização que existia naquele momento – até poque ainda não existia uma organização apenas de trabalhadores – para apresentar aquilo que ele compreendia e também uma saída para os trabalhadores frente aos fatos desencadeados. A equipe editorial era composta por ele, mas também por Engels e outros antigos membros da Liga dos Comunistas, que havia sido dissolvida para que seus integrantes pudessem atuar nos processo revolucionários em curso. Dentre estes podemos citar os irmãos Wolff.

Ao longo dos números do jornal, encontramos debates fundamentais como: o papel do direito no processo revolucionário, ditadura e democracia, a concepção de Marx sobre as revoluções, o caráter das classes em seu processo de desenvolvimento e no próprio processo revolucionário, enfim, um conjunto de temas específicos da intervenção política. Esse momento é tão especial na obra de Marx e tão rico em seu processo de elaboração, pois é a única vez que Marx acompanha e atua em um processo revolucionário. No momento da Comuna, Marx encontrava-se em Londres e acompanhou o processo de longe.

Assim, fica claro que temos uma obra fundamental para qualquer indivíduo que se reivindica marxista e por isso convidamos aos leitores do Teoria e Revolução a conhecerem essa obra.

Ana Godoi