“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu… O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi; e Deus pede conta do que passou”.
(Eclesiastes)“Nós procuramos o fio de Ariadne, para nos guiar no caminho certo. Uma luz na escuridão. Como nós gostaríamos de saber o nosso destino. Para onde ele nos leva. Mas a verdade é que só existe um caminho que nos leva por toda a eternidade. Predeterminado pelo começo e pelo fim. O fim que também é o começo”.
(Série Dark)
Seria o homem o sujeito do seu próprio tempo ou “a maioria das pessoas não é nada além de peões em um tabuleiro de xadrez liderado por uma mão desconhecida”?1 Seria o tempo essa mão invisível consumadora das nossas experiências? É possível retornar ao passado e viajar pelo futuro? Questões filosóficas como essas compõem o assombroso dilema que envolve a nossa relação paradoxal com o tempo.
Ao longo da sua História, os homens se defrontam ante o tempo tal como Édipo se deparou frente a frente com a esfinge e o seu enigma: “decifra-me ou te devoro”. Esse é o mote da aclamada série alemã “Dark” (2017), disponível na Netflix, que vem conquistando repercussão mundial. O lançamento da sua derradeira temporada deu-se nos marcos do isolamento e distanciamento social que vem modificando abruptamente as nossas sensações e experiências com o espaço-tempo, o que torna a série providencial e ainda mais fascinante.
O tempo está para os homens da mesma forma que o fio de Ariadne esteve para Teseu. Diante do mortal labirinto de Dédalo, Teseu apenas sobreviveu após situar-se por meio do fio de novelo ofertado por Ariadne. Da mesma sorte, assim como enuncia o relojoeiro, narrador central da série Dark, “a vida é um labirinto. Alguns ficam vagando, procurando uma saída. Mas só existe um caminho, que o leva para o fundo. E você só entende quando chega ao centro”.2 Alcançar o cerne dessa nossa compreensão tem sido um desafio histórico que os homens ainda estão a interpretar.
Evidenciar uma noção sobre o tempo tem sido objetivo das múltiplas áreas do conhecimento. Desde os períodos mais remotos, a mitologia, a cosmologia, além da física relativista de Einstein, se debruçaram sobre esse tema suscitando respostas, ainda que indefinidas, sobre o magistral movimento dos homens no tempo. Um dos maiores cientistas de todos os tempos, Carl Sagan, anuncia a complexidade desse tema ao proferir a seguinte alusão: “o espaço e o tempo estão interligados. Não podemos olhar para o espaço à frente sem olhar para trás no tempo”.3
Por seu turno, a História enquanto a ciência dos homens no seu devir, utiliza-se do tempo tanto como objeto, como matéria-prima dos seus saberes e suas experiências. Nesse particular, emerge um necessário debate sobre a construção social do tempo pelos homens: seria a História uma sucessão de acontecimentos sob uma mera “linha do tempo”? Uma das narrativas da série “Dark” contribui para a elucidação desse problema:
Nós acreditamos que o tempo decorre de forma linear, que ele avança uniformemente para sempre…Até o infinito. Mas a diferenciação entre presente, passado e futuro não passa de uma ilusão. O ontem, o hoje e o amanhã não se sucedem, mas estão conectados em um círculo infinito. Tudo está conectado.4
A perspectiva do tempo em Dark, coaduna-se com uma leitura dialética sobre o tempo, e por conseguinte a História. Consolidada pela École des Annales, um movimento historiográfico do século XX, essa nova concepção sobre a História assume o tempo enquanto processo, cujo motor de sua transformação são as inúmeras concatenações do tempo presente com o tempo passado. Parafraseando Marc Bloch, o célebre historiador dos Annales, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”5, e assim como evoca o historiador Marc Ferro, “o historiador não é aquele que fala do passado. Ele se serve do que se sabe do passado para falar do presente, para compreender o que se passa hoje”.6
Destarte, a história vista pela ótica de uma retrógada “linha do tempo”, se esvai por si mesma. Trata-se de uma história escassa de sentidos e significados uma vez que o seu contexto não consiste nas relações materiais de existência, e sim em datas isoladas que não explicam, e escamoteiam as construções históricas da realidade humana. De acordo com o revolucionário alemão Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.7 Esse é o verdadeiro sentido do tempo vivido pelos homens, um tempo que rompe com os marcos tacanhamente cronológicos e deflagra a História como processo dialético de rupturas e permanências, resquícios e descontinuidades.
Em “Dark”, a peregrinação sobre o tempo perpassa pela mutabilidade do ser. Na série, “tudo flui e nada permanece”, e, conforme a alegoria do filósofo Heráclito, “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Quando imergimos, águas novas substituem aquelas que nos banharam antes”. Esse é o nexo que constitui os emaranhados da existência dos homens sobre o tempo. Desatar os nós acerca do tempo tem sido a busca insaciável da humanidade em sua jornada. Se o que sabemos é uma gota em um oceano, conhecer a nossa passagem sobre o tempo é imprescindível, pois “um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la” (Edmund Burke).
Referências:
1 DARK. Produção de Baran bo Odar, Jantje Friese, Quirin Berg, Max Wiedemann, Justyna Müsch. Alemanha: Netflix, 2017.
2 Idem.
3 Recomendamos a leitura da obra “Cosmos” de Carl Sagan, o maior de seus sucessos. O livro fala sobre o papel do homem no universo e a relação que existe entre todas as coisas. Ganhou uma versão na TV que foi considerada a melhor série sobre astronomia e a mais vista do mundo, ver: SAGAN, Carl. Cosmos. Companhia das Letras, 2017.
4 DARK. Produção de Baran bo Odar, Jantje Friese, Quirin Berg, Max Wiedemann, Justyna Müsch. Alemanha: Netflix, 2017.
5 Mac Bloch ainda complementa: “Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”, in: Marc Bloch. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 65.
6 Recomendamos a obra “O ressentimento na História”: FERRO, Marc. O ressentimento na História– compreender o nosso tempo. Editorial Teorema. 2007.
7 MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.