Apesar de ter se empenhado nos investimentos em segurança pública no Rio Grande do Norte, o governo Fátima não mudou significativamente a lógica de funcionamento das ações na área, endossando velhos problemas que permitiram a repetição da crise de insegurança no estado. É preciso pensar na segurança pública por outras perspectivas. Através do meu trabalho de mestrado, sustentei a hipótese de que mulheres que maternam jovens negros em periferias podem oferecer caminhos eficazes para a área.
Um pequeno estado nordestino, muito conhecido por suas praias, mas que regularmente também ganha notoriedade nacional pelo terror generalizado a que sucumbe, devido a suas fragilidades na segurança pública. Essa ambígua sinopse que trago sobre o Rio Grande do Norte é o retrato controverso difundido hegemonicamente na mídia nos últimos anos. Sem dúvida é verossímil, porém precisamos de muito mais elementos para compreendermos as ambiguidades que cercam o estado com bom desempenho turístico e assustadores indicadores de violência urbana.
Quem vem às terras potiguares para conhecer os cartões-postais provavelmente pouco ou nada verá da tragédia social que cotidianamente uma parcela significativa da população do RN vivencia. Isso porque os principais pontos turísticos são higienizados para evitar que as/os visitantes vejam a agressiva desigualdade urbana que submete setores específicos das/dos potiguares a uma situação de subcidadania, na qual essa parcela de residentes do estado tem constantemente direitos humanos e sociais negados ou ofertados precariamente. Essas pessoas são as/os moradoras/moradores de periferias, sujeitos que fazem suas vidas apesar da marginalização, tendo pouquíssima visibilidade das suas demandas, escassos dados quantitativos e menos ainda qualitativos, sendo por essas limitações uma massa de gente que pouco se conhece e que não há grandes esforços estatais para se conhecer.
Lócus das principais fragilidades de segurança pública, as periferias potiguares são alguns dos lugares onde se apresentam a complexidade que precisa ser refletida e trabalhada para resolver preventivamente maior parte das crises de insegurança. Todavia, para além de saber onde focar, também é necessário saber quais instrumentos usar e por quais vias. Através das discussões que acompanhei no movimento negro, referentes ao genocídio da juventude, e das informações contidas em trabalhos consolidados nacionalmente na área da antropologia do Estado, sobre as mobilizações por justiça de familiares de vítimas do modelo de segurança pública existente no Brasil, compreendi que as mulheres são comumente as mais responsabilizadas pelos cuidados a jovens negros, segmento que nos indicadores nacionais aparece como o mais vulnerável a violência urbana, sendo elas as que costumam encabeçar processos de luta pelas mudanças que garantam maior segurança em seus territórios, o que as leva a possuírem desenvoltura para propor políticas públicas potentes2 que resolvam os problemas de insegurança sem violar direitos, inclusive o de viver. No Sudeste, há uma literatura acadêmica considerável que tomou como colaboradoras de pesquisa sujeitos com esse perfil. No Nordeste, ainda temos poucas produções nessa linha, sendo minha dissertação um dos trabalhos que vieram ajudar a adensar tal discussão.
Minha pesquisa foi desenvolvida em um conjunto de bairros periféricos ao oeste de Parnamirim/RN, cidade limítrofe com a capital (Natal) e que está sendo um dos palcos dos atentados dos últimos dias. Ela foi realizada a partir das percepções de segurança pública de mulheres que maternam jovens negros e que tiveram um dos tutelados assassinados, tendo também como objetivo entender quais eram as estratégias de manutenção da vida que elas traçavam para salvaguardar aqueles que estavam sob seus cuidados.
Iniciei o mestrado no mesmo momento em que Fátima Bezerra (PT) assumia seu primeiro mandato como governadora, aquele também foi o ano em que Bolsonaro (PSL) foi empossado como presidente. Ambos iniciavam sua gestão após uma série de reformulações da política de segurança pública, as quais foram provocadas como reação à crise do sistema carcerário do ano de 2017. Dentre as alterações mais significativas, estava a criação de um Sistema Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, que requeria uma série de ações de estados e municípios para que pudessem fazer convênios com a União, assim como acessar recursos do recém-criado Fundo Nacional de Segurança Pública. Aquele era um momento de profundas reflexões para quem trabalhava com violência urbana, pois nós tínhamos passado por um pleito eleitoral em que esse tema teve enorme repercussão, inflamando alternativas radicais, como a flexibilização do porte de armas para civis e o apoio à truculência das polícias.
Lembro-me que alguns dos primeiros dados que levantei sobre essas questões naquele ano indicavam como o governo Fátima estava se enquadrando bem nas exigências do Sistema Nacional de Segurança Pública, conseguindo convênios com o governo Bolsonaro, que destinava remessas significativas (15 milhões) usadas para compra de equipamentos bélicos para as polícias. Além desses recursos, o estado também financiava com a própria receita o aumento do quadro efetivo das polícias, principalmente a militar (PM). Todas essas informações eram propagandeadas como a grande solução para insegurança e pareciam um discurso convincente, pois naquele período o RN, assim como todo o Brasil, experimentava uma redução no índice de homicídios e outros crimes. A equipe de pesquisadoras/pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança pública, que produziu o Anuário da Segurança Pública de 2019, comunicou naquele documento que era necessário cautela para comemorar aqueles resultados, ressaltando que não era interessante que eles fossem instrumentalizados apenas como feitos governamentais, mas sim documentados, monitorados e avaliados setorialmente para que pudessem ser prolongados. A gestão federal e a do Rio Grande do Norte seguiram o caminho contrário.
Naquele anuário, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública convidou uma série de estudiosas/estudiosos da violência urbana para levantarem hipóteses sobre o que havia motivado os bons resultados. Os apontamentos de Gabriel Feltran chamaram minha atenção. Para explicar o porquê entendia que aquela redução estava relacionada a transformações das lógicas internas do mundo do crime, o sociólogo categorizou em cinco grupos os Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), sendo eles: mortes internas ao mundo do crime e às suas redes próximas, mortes ocorridas na guerra entre as polícias e o mundo do crime, feminicídios, latrocínios, LGBTfobia; afirmando que em 2018 (período de referência do anuário) as duas categorias na qual se encontram a maioria dos assassinatos são as mortes internas ao mundo do crime e às suas redes próximas, onde se concentram de 75% a 80% dos homicídios, e as mortes ocorridas na guerra entre as polícias e o mundo do crime, onde está entre 11,4% das pessoas vitimadas. Tendo acesso a essas informações, em minha dissertação defendi que as medidas que estavam sendo tomadas pelo governo Fátima em parceria com a gestão Bolsonaro eram apenas reafirmações da forma que historicamente o Estado brasileiro gere os problemas de insegurança pública, destacando ainda que tais iniciativas não davam conta de garantir o direito à vida, visto que aumentavam a tensão beligerante, impulsionando os confrontos armados entre as polícias e as pessoas em conflito com a lei, além de não desarticularem organizações de criminosas/criminosos que em suas disputas produzem uma série de assassinatos, ocorrências que, como trouxe acima, são os dois elementos que Feltran entende como os principais causadores de homicídios no Brasil.
Por que dois governos com pessoas que reivindicavam espectros políticos tão distintos na área da segurança pública tinham tanta cumplicidade? Também é interessante indagar o porquê das soluções que ambos dão para insegurança serem tão pouco efetivas, mas, mesmo assim, continuarem sendo endossadas. Trazer essas questões nos faz voltar ao problema do baixo interesse nas pessoas periféricas desse país (e neste caso específico do RN), que são as principais vítimas da insegurança, gente que, devido a história escravocrata que nos corta, em sua maioria é negra, e devido ao trato como “ralé” (já bem refletida por Jessé de Souza em seus trabalhos) que faz não ser pensado em lógicas favoráveis a esse segmento. Essa administração negligente das políticas públicas (como as de segurança) tenta tornar a vida de quem é marginalizado impossível de ser vivida, maneira de gerir populações que Achille Mbembe chamou de “necropolítica”. Todavia, em meu trabalho de campo, pude atestar como mulheres empenhadas em não morrer e nem deixar ninguém que estava sob seus cuidados perder a vida criavam condições de habitabilidade em territórios precários, em um movimento que parecia combinar as ideias de conhecimento envenenado de Veena Das e de dignificação da vida através do amor de bell hooks. Este é o motivo que me faz defender que precisamos das mulheres que maternam jovens negros em periferias para mudar a lógica da segurança pública no RN.
Como jovem negro e morador de uma das periferias que pesquisava, senti na pele durante meu trabalho de campo os efeitos do aumento do efetivo policial e de seu poder bélico em meu território. Só consegui fazer minhas observações participantes em alguns dias e em determinados lugares, isso porque nem sempre me senti seguro estando no mesmo ambiente em que a PM fazia ronda, tinha medo de ser agredido, torturado, executado por seus/suas agentes. Tinha também receio de ser vítima de bala perdida em um tiroteio ou, por estar muito atento a tudo que ocorria, ser acusado de ser um informante pela facção que reivindica o controle da região, o que me levaria a sofrer cruéis retaliações. Sabia desses riscos por ser um cientista social que já vinha documentando a algum tempo os problemas de insegurança daquele conjunto de bairros, todavia falar publicamente sobre o assunto era penoso, pois não encontrava muitos espaços dispostos a refletir sobre aquela temática sem sensacionalismos, as mortes e demais violências do modelo de segurança pública que têm sido naturalizadas. Até que em 25/05/2020, após a morte do afro-americano George Perry Floyd Jr (morto por estrangulamento em uma abordagem policial nos Estados Unidos), foi iniciado um levante internacional pela vida das pessoas negras, contexto que permitiu a efervescência dos debates contra modelos de segurança pública que não garantiam a salvaguarda da vida da população negra. Em diversos estados do Brasil e outros lugares do mundo, casos que geraram a morte de negras/negros detonaram mobilizações. No RN, o desaparecimento e depois descoberta do assassinato de Geovane Gabriel, detido por PMs em um dos bairros em que fiz campo, foi o mobilizador das discussões contra o extermínio da juventude negra.
As mulheres com quem trabalhava naquele período absorveram no cotidiano a morte de Gabriel como já vinham absorvendo a mortandade da juventude, usavam os inúmeros casos como o dele para orientar suas práticas de maternagem, norteando-as sobre quais estratégias adotarem para manterem os tutelados fora de risco. Aquelas mães, irmãs, tias e avós de jovens negros já tinham desenvolvido técnicas elaboradas para garantir o cuidado da sua parentela. Eram elas quem mais monitoravam (formal e informalmente) o funcionamento dos serviços públicos da região, garantindo que seus familiares tivessem acesso a direitos sociais (como educação, esporte, lazer, cultura, saúde, assistência social, trabalho e previdência) que os distanciava da insegurança pública. Elas iam atrás das fichas, brigavam quando se sentiam cerceadas e trocavam informações sobre como diminuir a burocratização para acesso a políticas públicas. Naqueles movimentos rotinizados, elas me mostraram como as questões da segurança eram bem mais amplas que sua compreensão comum nos marcos compartimentados da institucionalidade do Estado. Elas tinham noções espaciais muito bem demarcadas sobre lugares e horários de circulação perigosos, montando cartografias imaginárias e estratégias de acompanhamento do percurso dos filhos para que eles transitassem evitando alguns dos riscos que existem em nosso território. Foi também através delas que descobri o poder das relações de parentesco na intervenção de ações violentas, pois aquelas mulheres sinalizaram como a interferência de um familiar pode evitar, interromper ou amenizar uma agressão. Entendo que isso é devido a elas serem as grandes mediadoras de conflito em suas comunidades, conseguindo administrar situações de tensão por vias não-violentas.
Ao conviver mais intimamente com algumas das mulheres que maternam jovens negros nas periferias em que realizei minha pesquisa, também devido ter feito pesquisa de campo na companhia da minha mãe, que mediou as entrevistas, senti na pele que estava sendo protegido da morte por mulheres que, ao se esforçarem para garantir a manutenção da existência da sua unidade doméstica, construíram possibilidades de habitabilidade para jovens negros em nosso território. Minha dissertação é uma pequena contribuição para refletir sobre o papel desses sujeitos na segurança pública, acredito que o governo do RN ganharia muito se levantasse mais dados sobre as ações de cuidado que mulheres em contexto semelhante produzem no estado, assim como se monitorasse e sistematizasse as intervenções positivas delas que devem ser mantidas e ampliadas, as contratando para ações preventivas a crises de insegurança, tanto para aconselhar órgãos estatais quanto para mediar conflitos em seus territórios.
Produzi esse texto após o Ministro da Justiça do governo Lula (Flávio Dino), em visita ao RN, anunciar que será destinado R$100 milhões para viaturas, armas e a construção de um novo presídio no estado. Enquanto escrevia, vi a notícia do adiamento das provas do concurso público para PMRN. Em meio ao caos dos inúmeros atentados, estamos testemunhando mais do mesmo nos investimentos para segurança pública, infelizmente, não consigo enxergar um cenário animador se o governo estadual não se propuser a mudar a lógica de gestão da área. As crises de insegurança continuarão cíclicas enquanto não houver iniciativas para as prevenir. O governo Fátima e o governo Lula podem ter boas alternativas se aplicarem parte dos R$100 milhões em iniciativas desenvolvidas a partir de fóruns de segurança em comunidades periféricas do RN, muito provavelmente as mulheres que maternam jovens negros estarão lá para discutir políticas para insegurança que não tire ou degrade a vida dos sujeitos mais vulneráveis à violência letal intencional no estado.
Referências Bibliográficas:
DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu. 2011, n. 37 pp. 9-41.
FELTRAN, G. Homicídios no Brasil: esboço para um modelo de análise. In: Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2019. p. 30-35.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2019.
_________. Indicie de Vulnerabilidade Juvenil a Violência. São Paulo: FBSP, 2017.
hooks, b. Vivendo de Amor. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. 2010.
MBEMBE, A. Necropolítica Seguido de Sobre El Gobierno Privado Indirecto. Santa Cruz de Tenerife: Melusina, 2011.
SOUZA, J. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato. São Paulo: Editora Leya, 2017.
TAVARES, J. Território, maternagem e extermínio da juventude negra: uma etnografia nas periferias ao oeste de Parnamirim/RN. Natal: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFRN, 2021.
2 O projeto “Mulheres da Paz”, desenvolvido no município do Rio de Janeiro e replicado em outras cidades, é um ótimo exemplo.