Projeto Escola: Desresponsabilização Do Estado Pela Tutela De Crianças E Adolescentes

No ano de 2015 foi apresentado, à câmara de deputados, o “Projeto de Lei 867/2015, que Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o Programa Escola sem Partido”, apresentado por Izalci Lucas Ferreira, deputado federal pelo Distrito Federal do PSDB e defendido pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Subjaz ao projeto a ideia de que a família deve ser mais responsável do que a escola pela educação, o que ajuda o Estado a se desobrigar ainda mais de tutelar crianças e adolescentes. Na primeira versão, o projeto prevê obrigar que as escolas afixem cartazes incentivando que famílias denunciem supostas doutrinações político-partidárias que possam ocorrer na escola. No dia 08 de maio de 2018 o projeto foi debatido na câmara de deputados, recebendo parecer que visa acrescentar a proibição de oferta, nas escolas, de disciplina que tratem dos temas “gênero” e “orientação sexual”. Em vários estados e municípios leis similares já estão sendo aprovadas, conforme demonstra tabela sistematizada no blog “Professores Contra o Escola sem Partido”. No Estado de Roraima, por exemplo, já foi publicada em Diário Oficial a “Lei 1.245/2018, que Dispõe sobre a proibição de atividades pedagógicas que visem à reprodução do conceito de ideologia de gênero na grade curricular das Escolas Estaduais públicas e privadas do Estado de Roraima, e dá outras providências”.

O MBL é um movimento social organizado que elege deputados e vereadores para aprovar projetos de lei visando implantar o receituário liberal. No ano de 2015 o MBL produziu um documento com propostas de políticas públicas para as áreas de educação, saúde, sustentabilidade, justiça, economia, transporte e urbanismo e reforma política (MBL, 2015). Para a educação, além do Projeto Escola sem Partido, o MBL defende privatização de escolas, bolsas de estudos para crianças de baixa renda em escolas privadas e legalização da educação domiciliar, denominada Homeschooling.

O projeto do MBL para a educação se alinha com a filosofia expressa pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado pai do liberalismo, e, também, com a doutrina do economista norte-americano Milton Friedman (1912-2006). Na obra “Some Thoughts Concerning Education”, Locke (1693/2007) defende que a educação deve ser ofertada pela família. Milton Friedman (1912-2006), em artigo intitulado The role of Government in Education, (1955) defende que o Estado deveria, ao invés de manter escolas públicas, oferecer voucher (espécie de título com valor monetário) que permitisse às famílias liberdade de escolha para matricular crianças e adolescentes em escolas privadas. Caberia ao Estado fornecer educação gratuita apenas para as famílias realmente necessitadas, estabelecer os conteúdos mínimos de ensino; denominados de Standards; e proteger a livre concorrência entre as escolas privadas. No século XX, o liberalismo prevendo o papel do estado para assegurar a propriedade privada foi reivisitado pelo economista austríaco Hayek (1899-1992), que escreveu o livro intitulado “O caminho da Servidão”, em 1944. Neste livro Hayek defende que o Estado deve limitar os gastos sociais e servir à proteção da propriedade privada, garantida pelo Direito. Para isso, é importante que mantenha uma taxa de desemprego a fim de que os trabalhadores se sintam ameaçados, enfraquecendo as lutas sindicais.

Alinhada ao ideário liberal, a educação domiciliar visa garantir que a família tenha mais responsabilidade sobre a criança do que o Estado, o que é favorecido pelas políticas de avaliação de larga escala, pois, havendo exame nacional, é possível certificar conhecimentos sem frequência à escola. Permitir a educação domiciliar enfraquece o princípio legal da educação obrigatória, estabelecido na Constituição Federal de 1988. Ao obrigar as famílias a matricularem crianças e adolescentes em escolas, sob pena de sanções previstas em lei, o princípio da educação obrigatória acaba por obrigar o Estado a ofertar educação gratuita (APP Sindicato, 1997). Flexibilizar as formas de oferta da educação permite a desescolarização, tendência verificada nos documentos produzidos pelo Banco Mundial.

O Banco Mundial é uma agência independente da Organização das Nações Unidas (ONU) que faz empréstimos e doações para 187 países membros e, por meio de relatórios e condicionantes aos empréstimos, orienta suas políticas. No ano de 2018, a agência produziu um relatório, intitulado ‘’Learning. To realize Education’s promise’’. O relatório cita dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e pesquisas de organismos internacionais, para afirmar textualmente que escolarização não significa aprendizagem e que é necessário priorizar a aprendizagem. Para isso, assevera ser necessário o desenvolvimento de formas corretas de medir a aprendizagem e metodologias diferenciadas de ensino que desenvolvam habilidades. A partir de visão assistencialista, recomenda cuidados básicos para as crianças desde os primeiros meses de vida até os três anos idade.

Práticas assistencialistas não visam resolver os problemas sociais, mas apenas prestar assistência mínima aos mais necessitados. Kramer (1992), em estudo sobre a história das políticas de educação infantil no Brasil, mostra como a visão assistencialista contribuiu para que o Estado se desresponsabilizasse de ofertar creches e escolas para crianças de 0 a 6 anos de idade.

O assistencialismo não altera a realidade do capitalismo, o qual submete adultos e crianças à alienação, ao estranhamento e aos maus tratos. Na obra O Capital Marx critica o trabalho infantil e levanta problemas relativos às leis de ensino obrigatório em diversos países, denunciando que, ao serem transformadas em apêndices de máquinas, as crianças são submetidas a uma atrofia intelectual. No primeiro volume de O Capital, Marx cita relatórios produzidos para inquéritos parlamentares sobre trabalho infantil, publicados na Inglaterra, nos anos de 1841, 1860 e 1963.

No Brasil a situação das crianças não foi diferente. Segundo Rizzini (2009, p. 376):

“O Brasil tem uma longa história de exploração da mão-de-obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos, no caso das crianças escravas da Colônia e do Império; para os “capitalistas” do início da industrialização, como ocorreu com as crianças órfãs, abandonadas ou desvalidas a partir do final do século XIX; para os grandes proprietários de terras como bóias-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; nas casas de famílias; e finalmente nas ruas, para manterem a si e as suas famílias”.

Na primeira metade do século XXI o trabalho infantil ainda grassa, o que é apontado nos relatórios produzidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). O relatório de 2013 aponta uma redução nos índices de trabalho infantil no mundo, mas isso só mostra a permanência desse problema:

“Entre 2000 e 2008, o número de crianças trabalhadoras em todo o mundo diminuiu em cerca de 30 milhões. Não obstante este progresso, no fim daquele período ainda havia mais de 215 milhões de crianças trabalhadoras, mais de metade das quais a realizar trabalho perigoso. Além disso, a tendência geral decrescente mascarou o aumento do número de crianças em atividade econômica na África Subsaariana, de 2004 a 2008 (OIT, 2010d). Embora estes números sublinhem a magnitude do desafio que continua a afrontar a comunidade mundial, também transmitem uma clara mensagem de esperança – o progresso contra o trabalho infantil é possível com opções políticas sãs e um substancial empenho nacional e internacional.” (OIT, 2013, p. xiii)

O relatório minimiza a própria constatação de que ainda existem crianças realizando “trabalho perigoso”. Ao postular que a responsabilidade pelo problema está na miséria das famílias e choques, silencia em relação aos efeitos do capitalismo sobre as mazelas que a infância ainda sofre. Demonstra ideário assistencialista, ao partir da premissa de que a causa é a miséria das famílias e choques, cabendo à segurança social o papel de mitigar as vulnerabilidades. Importa, aqui, ater-se ao significado da palavra “mitigar”, que significa apenas suavizar, reduzir, abrandar, ou seja, não significa resolver um problema.

“O relatório argumenta que o trabalho infantil é impulsionado pelas vulnerabilidades familiares associadas à pobreza, aos riscos e aos choques e que a segurança social é imprescindível para mitigar essas vulnerabilidades”. (OIT, 2013, p. xiii).

Os choques são definidos pela OIT como sendo os eventos que “perturbam” a economia das famílias, comunidades ou regiões. Podem ser tanto a morte de alguém em uma família, quanto catástrofes naturais ou crises macroeconômicas que provocam redução geral dos rendimentos das famílias.

O Brasil também faz parte do mapa do trabalho infantil, figurando, no relatório da OIT (2013), com uma porcentagem de 8% do total de crianças nas idades entre 5 e 14 anos em situação de trabalho infantil. Segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, o número de crianças de até 19 anos que trabalham no Brasil é de 3,3 milhões de pessoas.

A educação infantil ainda não é uma garantia para as crianças brasileiras. Nos dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2016, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), percebe-se uma defasagem entre o número de matrículas, nas creches e pré-escolas, em relação ao número de matrículas nos anos iniciais do ensino fundamental.

Número de matrículas na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, segundo dados do censo do INEP (2016)

CRECHE

PRÉ-ESCOLA

ANOS INICIAIS

3.233.739

5.034.353

15.346.008

Fonte: INEP, 2016

O número de matrículas em creches corresponde a 21% do total de matrículas nos anos iniciais do ensino fundamental. As matrículas em pré-escola correspondem a 33% do total de matrículas nos anos iniciais. Considerando o total de matrículas em creches e pré-escolas, de 8,258.092, e o número total de crianças até 4 anos de idade, que, segundo censo do IBGE, é de 13.796.159, tem-se um contingente de 5.338.067 de crianças até os 4 anos de idade fora da educação infantil, o que corresponde a 38,7%.

Vários dados indicativos da situação da infância brasileira não são encontrados no censo do IBGE ou em outro centro governamental de pesquisa. Reportagem de Mori (2018), da BBC, traz à tona o problema da falta de dados estatísticos centralizados sobre a infância no Brasil. Segundo a reportagem, o disque-denúncia, serviço no qual a população denuncia anonimamente casos de violência para que sejam investigados pelas polícias Miliar e Civil, recebeu 15.707 denúncias de violência sexual contra crianças no ano de 2016. No entanto, apenas o Sistema Único de Saúde (SUS) tem dados sobre o número de atendimentos às vítimas do abuso sexual infantil e não há órgão que mapeie denúncias ou que monitore o que acontece com as crianças.

A educação infantil poderia ser um importante instrumento para que situações de abusos e maus-tratos às crianças fossem detectadas, denunciadas e sanadas. Embora situações de abuso possam ocorrer na escola, esta instituição é mais coletiva, aberta e vigiada do que a família, o que possibilita a criação de mecanismos de proteção e prevenção de abusos e maus-tratos.

O Projeto Escola sem Paritido, portanto, parece ser uma tática para desobrigar o Estado de tutelar crianças e adolescentes. O que os liberais e o MBL querem, na verdade, é liberdade para que as famílias façam o que quiserem com as crianças e adolescentes. Quem saberá que um bebê está sendo abusado sexualmente, se não houver tutela do Estado por meio de saúde pública e escola para todas as pessoas? Toda família deveria ser tutelada pelo Estado, obrigada a levar bebês para avaliações periódicas em postos de saúde e matricular em creches a partir dos seis meses de vida. Apenas isso garantiria que 100% dos casos de abuso sexual e maus tratos fossem devidamente estancados pelo Estado, que deveria ser obrigado a manter também casas lares para todas as crianças em situação de risco. Crianças e adolescentes precisam da tutela do Estado em primeiro lugar. Nenhuma família deveria ter liberdade de manter crianças e adolescentes em situação de abuso, privação intelectual. Às leis que visam a proibição do debate sobre gênero subjaz a ideia que famílias devem ter liberdade de discriminar, punir ou reprimir pessoas LGBTs dentro de seus próprios lares, impondo-lhes valores que não condizem com a realidade concreta de seres humanos.

O Projeto Escola sem Partido, PL 867/2015, ao instituir, no artigo segundo, “sobre os princípios da educação nacional”, o “VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, apresenta crianças e adolescentes como propriedades privadas de suas famílias, e não como membros de uma coletividade. O MBL não questiona o fato de que nem todas as famílias possuem valores condizentes com a manutenção da vida sadia de crianças e adolescentes. Ao invés de proteger a criança, o MBL protege o Estado de ter de cuidar da criança.

Salienta-se, aqui, que a não escola do chamado Homeschooling, não ameaça apenas a escola, mas a própria vida de crianças e adolescentes, principalmente de bebês, que não podem reclamar por contra própria dos descuidados que recebem. Enquanto houver uma ordem capitalista que inevitavelmente produz miséria e violência, afetando principalmente aqueles que não podem se defender sozinhos, lutar por saúde e escola obrigatórias é tática necessária para responsabilizar o Estado por cuidar e educar crianças e adolescentes. Crianças não são propriedades privadas de famílias, são membros de uma coletividade e por ela devem ser cuidadas.


REFERÊNCIAS:

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FRIEDMAN, Milton. The role of government in education. Economics and the Public Interest, ed. Robert A. Solo, copyright 1955 by the Trustees of Rutgers College in New Jersey.Reprinted by permission of Rutgers University Press. Disponível em: <https://webspace.utexas.edu/hcleaver/www/FriedmanRoleOfGovtEducation1955.htm> Acesso em 20/05/2013

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Tamara André