Sionismo e limpeza étnica do povo palestino

O sionismo político moderno surgiu em fins do século XIX. O pai foi Theodor Herzl, judeu nascido na Hungria, que exercia em Viena, então capital do Império Austro-Húngaro (1867-1918), a função de jornalista e autor teatral. Integrado à sociedade local, não tinha interesse pelo judaísmo ou por questões correlatas (SHLAIM, 2004: 38). O ponto de virada foi, conforme relatado em sua obraDer Jundenstaat [O estado judeu][1], o “Caso”, como ficou conhecido na França o caso Dreyfus. Refere-se à acusação de traição que sofreu naquele país o oficial Alfred Dreyfus, em 1894, por ser de origem judaica. A partir desse acontecimento, Herzl teria concluído que não haveria qualquer esperança de assimilação. Assim, a única solução seria que os judeus vivessem em seu próprio estado. Essa alegação, contudo, é questionada por estudiosos israelenses (PAPPÉ, 2007: 64).

Para assegurar a imigração de judeus da Europa para a Palestina, era necessário convencê-los que a transferência[2] para aquelas terras seria o único caminho para livrarem-se do “antissemitismo” – termo que se refere à discriminação contra semitas. Herzl (1998: 47) vinculou, nesse sentido, ao publicar O estado judeu, em 1896, a chamada “questão judaica” – para ele, herança da Idade Média – não à religião ou ao aspecto social, mas a um problema nacional.

Ele não sugeriu na publicação exclusivamente a Palestina para sua criação. Em seu livro, coloca a questão: “Devemos preferir a Palestina ou Argentina?.” Sua resposta é de que a “Sociedade (dos Judeus) aceitará o que lhe derem, tendo em consideração as manifestações da opinião pública a este respeito” (1998: 66). Na sua análise, nos dois locais houve experiências bem-sucedidas de “colonização judaica”. Em 1897, ano seguinte à publicação, durante o I Congresso Sionista realizado na Basiléia, Suíça, que reuniu 200 delegados do Leste da Europa, a Palestina acabou por ser escolhida:

Esse nome por si só seria um toque de reunir poderosamente empolgante para o nosso povo. (…) Para a Europa, constituiríamos aí um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie. Ficaríamos como Estado neutro, em relações constantes com toda a Europa, que deveria garantir a nossa existência. (Ibidem: 66)

Herzl empreendeu esforços para obter o apoio das elites judaicas e governantes europeus ao projeto sionista. Segundo Shlaim (2004: 41), seu pressuposto “não declarado” e de seus sucessores era que o movimento alcançaria o seu objetivo “não através de um entendimento com os palestinos locais, mas por meio de uma aliança com a grande potência dominante
do momento”.

Esse parceiro seria a Grã-Bretanha, que vislumbrava a Palestina como sua “futura aquisição”. Como parte de sua estratégia de convencimento, Herzl explanou que os britânicos poderiam se beneficiar da criação em região de Gaza de um “oásis sionista”, ao que seria necessário levar água do Nilo através de um canal (PAPPÉ, 2007: 81). Num primeiro momento, esse plano foi frustrado, dada a objeção do lorde inglês Cromer, que comandava o Cairo. Herzl propôs, como alternativa, a instituição do estado judeu temporariamente em Uganda, então colônia inglesa, para depois passar à Palestina. O que foi visto como traição por outras lideranças sionistas, como Chaim Weizmann[3] (1874-1952), uma vez que o próprio idealizador do Estado de Israel havia nacionalizado o judaísmo, sinalizando o local definido no I Congresso Sionista. O plano de Uganda, consequentemente, não foi levado adiante. A Palestina voltou a ser central na proposta sionista (Idem).

Após o I Congresso Sionista, dois rabinos foram enviados à Palestina para reconhecimento do local. Em telegrama, eles descreveram o cenário com que o movimento que visava criar um estado judeu naquelas terras teria que lidar: “A noiva é bela, mas está casada com outro homem.” (SHLAIM, 2004: 40) Em outras palavras, os visitantes anunciavam que a Palestina não era um descampado, um lugar deserto e inabitado. Como conta Pappé,

Nas vésperas da Guerra da Criméia (1853-1856), cerca de meio milhão de pessoas viviam na terra da Palestina. Eram de língua árabe. A maioria era muçulmana, mas cerca de 60 mil eram cristãos de várias denominações e cerca de 20 mil eram judeus. Além disso, tinham que tolerar a presença de 50 mil soldados e funcionários otomanos, assim como de 10 mil europeus. (2007: 41)

Segundo Shlaim (2004: 54), independentemente da linha sionista, que incluía os denominados trabalhistas, os moderados e os revisionistas – cujo fundador foi o judeu russo Zeev Jabotinsky (1880-1940) –, a ideia de que era preciso o apoio de uma grande potência para consolidar o projeto sionista prevalecia. Assim como a necessidade de estimular a imigração judaica e transferir os palestinos nativos, usando a força militar para tanto. A diferença era que os revisionistas consideravam essa opção explicitamente.

Em seu livro Expulsions of the Palestinians – The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948, Nur Masalha apresenta uma série de citações de lideranças sionistas que demonstram a predominância da ideia de transferência voluntária ou compulsória da população árabe local como base para a constituição de um estado exclusivamente judeu na Palestina. Segundo ele, essa ideia foi articulada desde cedo. “Theodor Herzl forneceu uma referência prévia à transferência mesmo antes de delinear sua teoria de renascimento sionista em seu Judenstaat.” (1993: 8; tradução nossa). Ainda conforme Masalha, em 12 de junho de 1895, visando a transição de uma “sociedade de judeus” a Estado, Herzl escreveu em seu diário:

Quando nós ocuparmos a terra, nos traremos imediatamente benefícios ao Estado que nos receberá. Nós precisamos expropriar com cuidado a propriedade privada nos estados alinhados conosco. Nós tentaremos, quando a população paupérrima cruzar a fronteira, procurar emprego a eles na mudança de países, enquanto vamos negar-lhes qualquer emprego em nosso próprio país. Os proprietários de terra virão para o nosso lado. Ambos, o processo de expropriação e a remoção dos pobres, precisam ser feitos discreta e circunspectamente. (Ibidem: 9) (tradução nossa)

Em um diálogo entre dois pioneiros do Hovevie Zion (Amantes de Sião), em 1891, também foi exposta a ideia de transferência. Um deles afirmou que a terra “na Judéia e Galiléia está ocupada por árabes”. Seu interlocutor respondeu: “É muito simples. Vamos assediá-los até que eles partam. Vamos deixa-los ir à Transjordânia.” (Ibidem: 9; tradução nossa) Ainda de acordo com Masalha, Israel Zangwill – criador do lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra” – apresentou a remoção de árabes da Palestina como pré-condição para a realização do projeto sionista (Ibidem: 10). Como indica o autor, o criador do poder militar do Yishuv[4] e primeiro premiê de Israel em 1948, David Ben Gurion, indicou a importância da ideia de transferência em várias citações em seu diário (Ibidem: 13). Em uma delas, em 12 de julho de 1937, afirmou que

A transferência obrigatória dos árabes desde os vales do Estado judeu proposto pode oferecer-nos algo que nunca tivemos [uma Galiléia livre de árabes], inclusive quando formos donos do nosso destino nos dias do Primeiro e Segundo Templo. (Apud MASALHA, 1993: 13) (tradução nossa)

Também segundo Masalha, em carta a seu filho Amos, de 5 de outubro de 1937, Ben Gurion escreveu que

Devemos expulsar os árabes e tomar seu lugar […] e se temos que usar a força, não para despojar de suas propriedades aos árabes do Negev e Transjordânia, mas para garantir nosso próprio direito de assentamentos em ditos lugares, a força estará a nossa disposição. (Idem) (tradução nossa)

Baseando-se em documentos oficiais israelenses, o historiador Benny Morris escreveu inicialmente que a transferência enquanto expulsão dos árabes para constituição do estado judeu era central no projeto sionista. Posteriormente, em versão revisitada de sua obra The Birth of the Palestinian Refugee Problem, afirmou que:

É certo, em algum grau, que a práxis do sionismo, de início, tem sido caracterizada por uma sucessão de microcósmicas transferências; a obtenção da terra e o estabelecimento de quase todo assentamento (moshava, literalmente colônia) tem sido acompanhada pelo (legal e usualmente compensado) deslocamento ou transferência de um beduíno original ou comunidade agrícola assentada. […] Hess, Motzkin[5], Ruppin e Zangwill, certamente, não pensavam em minideslocamentos, mas em uma massiva, estratégica transferência. Todavia, na prática, a ideia era desbalanceada, na maioria das mentes sionistas, por uma medida de moral dúbia. É verdade que pelo menos até os anos 1920 e 1930, os árabes da Palestina não se viam e não foram considerados por qualquer um como um “povo” distinto. Eram vistos como os árabes ou, mais especificamente, como os “árabes sírios do sul”. Além disso, sua transferência de Nablus ou Hebron para a Transjordânia, Síria e mesmo Iraque – especialmente se adequadamente compensada – não deveria ser uma formulação ao exílio do lar; “Árabes” deveriam meramente ser deslocados de uma área árabe para outra. (2004: 42)(tradução nossa)

Segundo o autor (Idem), na primeira metade do século XX, esse tipo de transferência de “minorias étnicas para o coração de suas áreas nacionais” era “moralmente aceitável, talvez mesmo moralmente desejável” e seria solução para conflitos futuros. Para Morris (Ibidem: 44), se durante as últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX os sionistas que advogavam a transferência não eram predominantes, no início dos anos 1930, o apoio à ideia emergiu entre as lideranças do movimento e evoluiu, como resultado das ondas de revolta árabe. Com a oportunidade aberta em 1936, segundo ele, a cúpula sionista anunciou seu apoio à transferência (Ibidem: 46).

Não obstante reconheça que declarações dos “pais do sionismo” apontem o caminho da transferência, Morris refuta em sua obra a ideia de que o plano de expulsão da população palestina não judia integrasse a política sionista. Na sua concepção, a transferência, que ganhou apoio a partir das revoltas árabes, foi vista como caminho diante da recusa dos árabes em aceitar a partilha de suas terras. Assim, foi resultado da guerra “iniciada pelo lado árabe” em 1948. (Ibidem: 60)

Já Masalha aponta que foram formados comitês de transferência que apresentaram vários planos e propostas a lideranças árabes de países vizinhos com o objetivo de transferir os palestinos não judeus em geral para a Transjordânia, Síria e Iraque nos anos 1930 e 1940 (1993: 12).

Para Walid Khalidi, a ideia de transferência dos árabes seria um eufemismo para limpeza étnica (1988: 5). O conceito foi discutido em Comissão de Especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992. Com base nas informações fornecidas por essa comissão, o secretário-geral apresentou ao presidente do Conselho de Segurança documento relativo à Guerra Civil Iugoslava (1991-2001), datado de 24 de maio de 1994[6]. Nesse, consta a seguinte definição para limpeza étnica, oriunda de um “nacionalismo equivocado”: “tornar uma área etnicamente homogênea pelo uso da força ou intimidação para remover pessoas de determinados grupos”. Ainda de acordo com o informe, tais atos abrangem a remoção forçada da população civil local, em violação à lei internacional, mediante o uso de métodos de coerção como

assassinato em massa, tortura, estupro e outras formas de agressão sexual; lesões corporais graves a civis; maus tratos a prisioneiros civis e prisioneiros de guerra, utilização de civis como escudos humanos; destruição de propriedade pessoal, pública e cultural; saques e roubos; expropriação forçada de propriedades; forte deslocamento da população civil (…).[7]

Ainda no informe consta que “represálias, retaliação ou vingança” não servem como justificativa à violação de leis internacionais e Convenções de Genebra. Na concepção de Pappé (2008: 19), a definição se enquadra no que aconteceu na Palestina em 1948, ano da criação do Estado de Israel. Segundo ele, foram traçados planos com o objetivo de preparar as forças paramilitares sionistas para as ofensivas nas áreas rurais e urbanas após a saída dos britânicos da Palestina, que ficaram com o mandato sobre aquelas terras como espólio da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) (Ibidem: 53). Os planos foram: A (esboçado por Elimelech Avnir, comandante da Haganah em Tel Aviv, a pedido de Ben Gurion em 1937); B (concebido em 1946); C (uma fusão de ambos); e, por fim, D (Dalet). Sobre os três primeiros, Pappé afirma que o propósito foi “dissuadir” a população palestina de atacar os assentamentos judeus e reprimir ofensivas (2008: 53).

Plano Dalet
O plano que selou o destino dos palestinos foi o Dalet. O nome foi dado pelo Alto Comando Sionista (KHALIDI, 1988: 8) Conforme Pappé (2008: 54), “independentemente de se esses palestinos decidiam colaborar ou opor-se a esse estado judeu, o Plano Dalet propunha sua expulsão de forma sistemática e total de sua pátria”. Derradeiro, e o mais agressivo, este foi finalizado em reunião das lideranças sionistas no local que se convertera no quartel-general da Haganah, a Casa Roxa em Tel Aviv – atual capital de Israel -, em 10 de março de 1948 (PAPPÉ, 2008: 11). Esse plano continha mapas indicando por onde os grupos paramilitares atacariam cada aldeia, como seriam essas incursões, a partir das informações de cada vila, mapeadas nos anos 1940:

Para elaborar o Plano Dalet, além de contarem com a hospitalidade dos seus habitantes, os sionistas criaram uma rede de colaboradores. Não obstante o desprezo que nutriam por essas pessoas, a ponto de um dos acadêmicos envolvidos na montagem desse plano – Moshe Pasternak – chegar a afirmar que seria difícil conseguir informantes entre elas, por seus modos primitivos, ao final, obtiveram algum resultado favorável aos seus intentos. (PAPPÉ, 2008: 43) (tradução nossa)

Segue mapa das operações que estariam ali previstas, por região.

Mapa publicado em All that Remains, KHALIDI Walid (2006: 325).

O Plano Dalet foi colocado em operação pelas organizações paramilitares Stern Gang, Irgun e Haganah. A tropa de elite dessa última, o Palmach, passou de 700 membros em 1941 para 7 mil em 1948. Mais tarde, as três se fundiram para constituir as Forças de Defesa de Israel (PAPPÉ, 2007: 143).

Cada brigada “recebeu uma lista das aldeias que deveria ocupar. A maioria das aldeias estava destinada à destruição, e somente em casos excepcionais os soldados receberam ordens para deixá-las intactas” (Ibidem: 164 e 166). A primeira operação, denominada Najsón, contou com a participação não apenas de todos os grupos paramilitares, mas incorporou veteranos judeus de guerra oriundos da Europa Oriental e outros recém-chegados. O objetivo foi a expulsão massiva da população das áreas rurais a oeste das montanhas de Jerusalém. A primeira aldeia a sucumbir nessa operação chamava-se Qastal (El Castillo) (PAPPÉ, 2008: 129).

Assim como Pappé, Walid Khalidi (1988: 8) afirma que o Plano Dalet foi executado com o objetivo deliberado de expulsar a população árabe da Palestina e destruir essa comunidade para colocar em prática o projeto sionista de constituição do estado judeu naquelas terras.

Já Meron Benvenisti (2002: 126) afirma que, embora os objetivos do Plano Dalet fossem militares, há controvérsias que visasse a limpeza étnica até maio de 1948:

Os comandantes das forças judaicas certamente realizaram alguns ataques cujos objetivos foram aterrorizar os árabes para que saíssem de suas casas, mas em outra mão há abundante evidência de que a liderança judaica foi surpreendida pelo escopo do êxodo e mesmo promoveu esforços para persuadir os árabes a permanecerem em suas casas (Ibidem: 126). (tradução nossa)

De acordo com Benvenisti, até a criação do Estado de Israel, a transferência da população árabe se deu ex-post facto [como resposta aos acontecimentos no terreno]. A “transferência premeditada” foi levada a cabo a partir do começo de junho de 1948 (Ibidem: 146)

Segundo Rashid Khalidi (2006: 4), o argumento de saída dos árabes antes de maio daquele ano como simples subproduto de uma guerra que esses perderam é “base para a negação da responsabilidade pelos refugiados”. Para ele, essa visão ignora o fato de que, em muitos casos, os palestinos não estavam em luta. Ignora também a desigualdade de forças – com o Yishuvmelhor armado e organizado (Idem). Quando as lideranças árabes decidiram enviar suas forças à Palestina, após a criação do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, o contingente de pessoal era equivalente: no início, os governos árabes enviaram 25 mil soldados, mas esse número foi ampliado em quatro vezes ao longo da guerra – equiparando-se aos efetivos mobilizados pelos sionistas (PAPPÉ, 2007: 169). Naquele mês, contudo, os grupos paramilitares tiveram auxílios importantes para melhor se equiparem:

Durante a trégua nos combates, os exércitos árabes não se reabasteceram de armamentos porque a Grã-Bretanha estava decidida a observar o embargo de armas imposto pela ONU às facções em guerra. As forças judaicas, por seu lado, continuaram a eludir a proibição, importando quantidades consideráveis de armamento pesado dos países do bloco do Leste, que desobedeceram à medida da ONU. A paridade da primeira semana foi substituída por uma superioridade dos judeus quando os combates foram retomados em meados de junho de 1948.  (PAPPÉ, 2007: 171).

O embargo britânico a que os árabes se armassem destinou-se aos exércitos da Jordânia, Iraque e Egito, que utilizavam munições inglesas. (Ibidem: 168). Segundo Pappé,

É de se admirar que os estados árabes tenham conseguido pôr quaisquer soldados no campo de batalha. Somente no final de abril de 1948, os políticos do mundo árabe prepararam um plano para salvar a Palestina, que na prática era um esquema para anexar a maior área possível do seu território aos países árabes intervenientes na guerra. A maior parte desses exércitos possuía uma experiência de guerra muito limitada e um treinamento muito sumário quando o mandato chegou ao fim. A coordenação entre eles era deficiente, bem como a moral e a motivação dos soldados, com exceção de um grande grupo de voluntários, cujo entusiasmo não bastava para compensar a sua falta de perícia militar. (…) O mundo árabe, os seus líderes e sociedades juraram salvar a Palestina. Os políticos não estavam propriamente a ser sinceros; é provável que os soldados e seus comandantes tivessem um empenho mais genuíno no salvamento da Palestina. (2007: 168)

No caso da Jordânia, houve inclusive um acordo tácito com Israel às vésperas da guerra, de partição do território (Ibidem: 178). Os líderes hachemitas de fato controlariam uma parte da Palestina (atual Cisjordânia) até 1967, quando essa passou a ser ocupada militarmente por Israel (TAMARI, 2002: 71). Juntamente com o futuro estado judeu, dividiriam ainda o domínio de Jerusalém. Outra parte do território (Faixa de Gaza) ficaria sob administração egípcia até aquele ano (HOURANI, 2007: 471).

Impulsionado pela recomendação feita pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 1947 de partilha da Palestina em um estado árabe e um judeu, o deslocamento de palestinos se expandiu significativamente. Na narrativa oficial israelense, a saída dos palestinos se deu em consequência da guerra. Para Rashid Khalidi (2006: 4), essa argumentação ignora, sobretudo, a necessidade de “transferência” dos árabes, que constituíam a maioria da população, para garantir a instituição de um estado judeu. Ele refuta a ideia difundida pela historiografia israelense tradicional de que os palestinos deixaram suas casas sob ordens de sua própria liderança. Isso foi realidade em alguns poucos casos isolados, como medida de segurança aos habitantes; no geral, entretanto, esses líderes fizeram esforços – “infrutíferos” – a que a população permanecesse. (Idem)

Relatos e documentos dão conta das táticas utilizadas pelos grupos paramilitares sionistas. De posse das informações de cada local, enquanto em boa parte das aldeias há indicações de que a estratégia era atacar deixando-se uma única saída para os habitantes saírem rumo a países árabes vizinhos, em outras, cercava-se dos quatro lados, não havendo como escapar. Nessas, os massacres e atrocidades são descritos por historiadores como Ilan Pappé. Serviram de propaganda para expulsar os palestinos que viviam em aldeias vizinhas.

As operações dos grupos paramilitares privilegiaram no começo centros urbanos, como Haifa, então o principal porto do país, designada na partilha ao que viria a ser o estado judeu. A elite já havia abandonado a cidade, quando dos primeiros ataques em dezembro de 1947. Em abril do ano seguinte, os sionistas tomaram a cidade, o que culminou no êxodo dos habitantes palestinos – que somavam mais de 50 mil. Outras grandes cidades, como Acre e Safed, tiveram o mesmo destino. Jerusalém também não ficou impune. À sua captura, as forças sionistas conduziram 30 operações, sendo sete delas entre dezembro de 1947 e 15 de maio de 1948 – todas em áreas destinadas na partilha ao estado árabe (TAMARI, 2007: 75). Os bairros do lado oeste foram atacados e ocupados no período (Ibidem: 134-140). Segundo Tamari,

Os objetivos dessas operações eram dois: (1) limpar o caminho entre Tel Aviv, Jaffa e Jerusalém para livre movimentação das forças judaicas; (2) limpar as vilas árabes do flanco oeste de Jerusalém da população palestina para prover déficit demográfico e um vínculo entre a proposta do estado judeu e a cidade de Jerusalém, conforme o Plano Dalet. (Ibidem: 75) (tradução nossa)

Os britânicos permaneceram na Palestina até 15 de maio de 1948 – um dia depois da Declaração de Independência de Israel –, com o argumento de que as forças judaicas empreenderam uma guerra de libertação nacional contra o mandato e a hostilidade árabe (PAPPÉ, 2007: 178):

A perda de 1% de sua população [judaica] toldaria o jubilo da obtenção da independência, mas não a vontade e determinação de judaizar a Palestina e de transformá-la num futuro porto de abrigo para os judeus do mundo todo na sequência do Holocausto.

Assim que a Inglaterra partiu, os Estados Unidos reconheceram o Estado de Israel. Dois dias depois, foi a vez de a União Soviética fazê-lo. Na sequência, mais países deram o mesmo passo. As consequências para os palestinos não foram levadas em conta (PAPPÉ, 2007: 169). Naquele momento, dois terços da população árabe local foram deslocados. Embora houvesse dezenas de observadores da ONU, conforme Pappé (2007: 214), eles nada fizeram a respeito. Exceção ao emissário Conde Folke Bernadotte, que propôs a revisão da divisão do país em duas partes e o retorno incondicional dos refugiados palestinos. Tendo chegado à Palestina em 20 de maio de 1948, foi assassinado por “terroristas judeus” em setembro do mesmo ano, “quando repetiu sua recomendação no informe final que apresentou à ONU”. (PAPPÉ, 2007: 214)

Ao final, foram três fases da limpeza étnica. A primeira foi inaugurada em dezembro de 1947, dias após a partilha recomendada pela ONU, e se prolongou até maio de 1948. A segunda, entre esse mês e janeiro de 1949, incluiu bombardeios aéreos indiscriminados e disparo de canhões em bairros com populações mistas. Durante essa etapa, foram assinadas duas tréguas e, ao final, um armistício entre os exércitos árabes e Israel (PAPPÉ, 2007: 168). A terceira fase do Plano Dalet se prolongou até 1954. Antes, contudo, já haviam sido destruídas centenas de aldeias. Historiadores apresentam números que variam entre 290 e 472 no total (Apud W. KHALIDI, 2006: XVI). Pappé (2008: 11) apresenta um número superior: 531 aldeias, além do esvaziamento de 11 bairros urbanos, culminando com a expulsão de 800 mil palestinos, de um total aproximado de 1,2 milhão. Na parte designada pela ONU ao recém-criado Estado de Israel, de 818 mil palestinos, restaram apenas 160 mil. A despeito das diferenças, conforme a metodologia adotada, fato é que a paisagem foi totalmente transformada:

A Palestina tornara-se agora uma nova entidade geopolítica, ou antes, três entidades. Duas delas, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, encontravam-se mal definidas, a primeira totalmente anexada à Jordânia, mas sem o consentimento ou entusiasmo da população; a segunda num limbo, sob um regime militar, com os seus habitantes impedidos de entrar em território egípcio propriamente dito. A terceira entidade era Israel, decidida a judaizar todas as partes da Palestina e a construir um novo organismo vivo, a comunidade judaica de Israel. (PAPPÉ, 2007: 178)

Artigo baseado em dissertação de mestrado intitulada “Qaqun: história e exílio de um vilarejo palestino destruído em 1948”, defendida em dezembro de 2013 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), junto ao Departamento de Letras Orientais, sob orientação da professora-doutora Arlene Elizabeth Clemesha

 


Referências

BENVENISTI, Meron. Sacred Landscape – The Buried History of the Holy Land since 1948. Translator: Maxine Kaufman-Lacusta. California: University of California Press, 2002.

HERZL, Theodor. O estado judeu. Trad. David José Perez. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

KHALIDI, Rashid. The Iron Cage: The Story of the Palestinian Struggle for Statehood. New York: Columbia University Press.

KHALIDI, Walid. All that Remains: The Palestinian Villages Occupied and Depopulated by Israel in 1948. Washington: Institute for Palestine Studies, 1998.

KHALIDI, Walid. Plan Dalet: master plan for the conquest of Palestine. Journal of Palestine Studies. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/23122101/Walid-Khalidi-Plan-Dalet-Master-Plan-for-the-Conquest-of-Palestine. Acesso em: 26 mai. 2012.

MASALHA, Nur. Expulsion of the Palestinians: The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948. Washington: Institute for Palestine Studies, 1992.

MORRIS, Benny. The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited, 1947-1949. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

PAPPE, Ilan. História da Palestina moderna – uma terra, dois povos. Trad. Ana Saldanha, Lisboa: Ed. Caminho, 2007.

_______. La limpieza étnica de Palestina. Trad. Luis Noriega, Barcelona: Memória Crítica, 2008.

_______. The Forgotten Palestinians – A History of the Palestinians in Israel. London: Yale UniversityPress, 2011.

SHLAIM, Avi. A muralha de ferro – Israel e o mundo árabe. Trad. Maria Beatriz Penna Vogel. Rio de Janeiro: Fissus Ed., 2004.

TAMARI, Salim (ed.), Jerusalem 1948 – The Arab Neighbourhoods and their Fate in the War. The Institute of Jerusalem Studies & Badil Resource Center, Second Revised Edition, 2002.


[1] O escritor Moacyr Scliar (1937-2011), que participou do movimento juvenil sionista, aborda o assunto em seus comentários à edição de O Estado judeu traduzida para o português. HERZL, T. O Estado judeu. Trad. David José Pérez. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 21.

[2] O termo seria usado como um eufemismo pelos sionistas, segundo MASALHA, N.. Expulsion of the Palestinians: The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948. Washington: Institute for Palestine Studies, 1993.

[3]Chaim Weizmann viria a se tornar o primeiro presidente de Israel, em 1948. Disponível em:
<http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/biography/weizmann.html>. Acesso em: 13 de agosto de 2013.

[4] Comunidade judaica, em hebraico. PAPPÉ, I. História da Palestina moderna – uma terra, dois povos. Trad. Ana Saldanha, Lisboa: Ed. Caminho, 2007, p. 358.

[5] Leo Motzkin, presidente do Conselho Geral da Organização Mundial Sionista. Disponível em: <http://www.jta.org/1932/05/23/archive/zionist-movement-and-french-report-mr-motzkin-president-of-zionist-general-council-leaves-for-pale>. Acesso em: 12 de agosto de 2013.

[6] Disponível em: <http://www.icty.org/x/file/About/OTP/un_commission_of_experts_report1994_en.pdf>. Acesso em: 12 de agosto de 2013.

[7] Idem.

Soraya Misleh