Ainda é preciso discutir organização

A discussão sobre a forma de organização sempre foi um ponto central na história da esquerda e hoje não é diferente. Mesmo que muitos preguem que o capitalismo mudou e, consequentemente, exige novas formas de organização, é sempre importante voltar ao velho debate, até mesmo para se entender o quão nova são as formas propostas atualmente.

Muito se diz acerca do modelo leninista de partido, de como este conduz necessariamente a burocratização, que este é um modelo ultrapassado e, por isso, é necessário uma organização realmente democrática, sem hierarquizações, na qual o consenso prevaleça, pois só assim pode-se evitar que uma “casta de iluminados”, denominada de vanguarda, assuma para si a luta do povo. Contudo, é preciso aprofundar em que consiste esses elementos acima levantados. Mas, para tanto, vamos nos ater na estruturação de nossa sociedade uma vez que este é um elemento fundamental para nosso debate. Se o capitalismo mudou, se no século XXI a organização social é outra que não aquela dos séculos passados, XIX e XX, como muitos afirmam, então precisamos encontrar elementos fundamentais que demonstrem essa mudança. O ser humano sempre se organizou visando garantir sua existência, e as várias formas de sociedade são um reflexo dessa necessidade e com o capitalismo não é diferente. Ora pois, se olharmos bem a forma com que os indivíduos se relacionam em prol de sua sobrevivência, perceberemos que o conjunto das pessoas ainda estão divididas entre aqueles que recebem salário, aqueles que pagam o salário, aqueles que vivem de seu pequeno comércio, aqueles a qual a sobrevivência não é garantida de forma alguma, sendo completos excluídos da sociedade. Além disso, percebemos o quanto as grandes indústrias lucram com a apropriação privada das riquezas produzidas socialmente, base de sustentação do mercado financeiro. E o lugar que os indivíduos ocupam no interior da sociedade conforma, por sua vez, as classes sociais. E mesmo sabendo que as classes sociais não são homogeneas, e comportam dentro de si várias matizes e estratificações, isso não muda sua localização geral na sociedade. Se contemporaneamente essas estratificações ganharam caracterisitcas específicas, isso não faz que com que os indivíduos deixem de ser pessoas que recebem salário ou que pagam o salário. Assim, não teríamos a sociedade organizada entre trabalhadores, aqueles que recebem o salário, e burgueses, aqueles que pagam o salário, da mesma forma que no século XIX e XX? Não daríamos importância à produção e não seria isso a causa da conversão dos indivíduos em meras mercadorias a disposição do mercado? Por fim, não seria a causa da miséria em que vive a grande maioria da população com relação a um grupo reduzido de detentores da riqueza?

Para mudar a atual sociedade é necessário mudar sua forma de organização, em todas as esferas, tanto econômica, quanto política e cultural e para tal é imprescindível uma revolução. Aqueles que se propõe a um debate sobre uma nova forma de organização política não vislumbram em seu horizonte a radicalidade de tal transformação, acreditando que o diálogo que abarque a pluralidade é o caminho para a mudança. Então perguntamos a eles: como é possível haver uma democracia radical, ampla se nossa sociedade é organizada em diferenças fundamentais, em classes bem delimitadas que impõe interesses tão antagônicos? Ou seriam iguais os interesses daqueles que recebem salário daqueles que o pagam? É nítido que esses interesses são diametralmente opostos, afinal um burguês se interessa muito pouco com a qualidade do transporte coletivo uma vez que este se encontra muito distante de sua realidade. Só é possível assumir o poder transformador da democracia assumindo a inexistência ou flexibilizando a noção de classe socialmente existente. No entanto, as próprias relações sociais nos dizem o quanto nossa sociedade é marcada por essas diferenças. O capitalismo só é capitalismo porque existe uma apropriação desigual da riqueza produzida por uma parte da sociedade.

É possível conquistar direitos mas tal conquista esbarra inexoravelmente em limites que são intransponíveis pela nossa própria forma de organização social. Se existe uma classe que se beneficia diretamente das riquezas produzidas, como então tocar em seus interesses se essas mesma classe é aquela que domina político, culturalmente nossa sociedade? A via eleitoral, justamente por isso, não é capaz de operar tal mudança mesmo que seja de fundamental importância a presença de parlamentares que representem a classe trabalhadora.

E uma organização política precisa refletir todas essas relações. Uma forma de organização só é adequada se ela refletir de fato as demandas do projeto a que se propõe. Qualquer organização que pretende transformar a realidade, que pretende operar transformações profundas nas relações sociais precisa ser uma organização dos trabalhadores, e aqui não “fetichizamos” a classe, pois estes são a chave para essa transformação. São eles que produzem as riquezas que são apropriadas pelos detentores dos meios de produção, assim são eles que garantem a existência do burguês como burguês. Se esse grupo se insurge contra essa forma de sociabilidade então ela só pode ruir. E para organizar os trabalhadores, se colocar a serviço destes, a organização precisa refletir as necessidades desta classe.

E como em qualquer combate, as decisões para ação precisam ser feitas visando a vitória final, sempre em consonância com os interesses de um lado da batalha. Assim, algumas escolhas não são feitas por mero capricho ou desejo. Quando se diz da necessidade de unidade na ação isso reflete exatamente o embate que está sendo travado. E são esses elementos que o modelo leninista de organização procura elencar. O centralismo democrático, tão mal visto nos dias atuais devido aos anos de burocratização promovido pelo stalinismo, é uma exigência da luta, em como vamos enfrentar o inimigo. Se não somos um na luta, abrimos espaços para sermos derrotados, e se não discutimos internamente, se não refletimos sobre as inúmeras possibilidades e escolhemos uma, por votação, como os trabalhadores em suas assembleias, também somos derrotados.

Os trabalhadores em suas lutas particulares, de suas categorias específicas, em seus locais de trabalho, implementam métodos que reconhecem como eficazes na luta contra o patrão. Possuem o espaço do sindicato no qual podem discutir, deliberar, eleger um política para ser aplicada rumo à melhoria das condições de vida. Em uma assembleia se vota a política que vai ser implementada pela direção do sindicato, e ganha aquela que tiver a maioria dos votos, sendo esta acatada por todos, afinal para eles o espaço da assembleia é soberano. Ou seja, não existe no cotidiano da luta problemas em se perder uma discussão ou posição, já que é necessário agir. E são essas práticas que inspiram o modelo leninista de organização. Porém, com uma grande diferença. Não se quer apenas melhorias salariais ou das condições cotidianas de trabalho, se quer unir todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras para uma transformação radical da sociedade, para além de suas demandas mais imediatadas.

Por disso dizemos que uma forma de organização política não se apresenta como a melhor pelo gosto do freguês, mas pelas necessidades colocadas em função da ação. O que vemos, com partidos com o PSOL, no Brasil, e o Syriza, na Grécia, são velhas fórmulas repaginadas que buscam nos dizer que a forma de transformação não se encontra na radicalidade da luta, não se encontra no desmantelamento do status quo das relações sociais, mas na lapidação das arestas presentes no interior dessa sociabilidade, na humanização dessa mesma forma societária. E o que afirmamos é: não é possível humanizar o capitalismo, só é possível destruí-lo. E a organização leninista é o melhor caminho para isso.

Os trabalhadores só serão livres, só terão uma vida digna se a nossa forma de organização social mudar. Por isso, uma organização política dos trabalhadores precisa ter em seu DNA a certeza da revolução, porque reformas por dentro do estado, na forma como este existe no interior da sociedade capitalista, não transforma profundamente a situação. Parafraseando o velho Marx, a melhor forma de organização política é aquela em que os antagonismos sociais não são aprisionados pela força, ou seja, artificialmente. A melhor forma de organização política é aquela que os leva à luta aberta, e com ela a resolução.


Ana Godoi