Resenha: Como as democracias morrem

Levitsky, S.; Ziblatt, D. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro
Os nomes dos cientistas políticos de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt foram bastante citados nos últimos meses por analistas que buscavam explicar o processo político brasileiro. Na maioria dos veículos da grande mídia a referência ao recém-lançado Como as democracias morrem (Zahar, 2018) não passou de simples citações. Deste modo, queremos nas linhas a seguir oferecer tanto uma síntese das linhas principais que compõe o livro da dupla, quanto fazer algumas considerações críticas acerca dele.

A tese fundamental de Levitsky e Ziblatt é que a morte das democracias pós-Guerra Fria se dá predominantemente pelas mãos de líderes eleitos, não pela via dos golpes de Estado clássicos. Como escrevem, o “retrocesso democrático hoje começa nas urnas” (2018, p.16).

No capítulo 1, tais líderes são descritos como outsiders que, embora possam permanecer marginais para sempre, ganham relevância caso encontrem algum tipo de apoio em partidos políticos do establishment. Nesse caso, em vez de guardiões da democracia, as agremiações acabam contribuindo para a legitimação de um potencial ditador.

A fim de prevenir a ascensão de “demagogos”, os autores propõe uma check list do comportamento autoritário. Na ordem apresentada, tais são os indicadores: rejeição das regas democráticas do jogo, negação da legitimidade dos oponentes políticos, tolerância ou encorajamento à violência, propensão a restringir liberdades civis dos oponentes, inclusive a mídia (2018, p.33-34).

Atualmente, os retrocessos democráticos se dão como erosões das regras que regem os sistemas políticos, especialmente das normas não escritas (grades de proteção) que permitem a convivência de partidos adversários.

E a elas ou autores dão uma importância determinante. A sustentação dos regimes democráticos, inclusive nos EUA, teria em normas sedimentadas pelos costumes da luta política (regras não-escritas) um poderoso reforçamento das constituições (regras escritas).

No caso norte-americano duas tiveram papel preponderante ao longo da maior parte da história, conforme desenvolvido no capítulo 5. A primeira é a tolerância mútua, definida como a aceitação do direito de existência e ascensão temporária ao poder dos rivais enquanto se mantiverem fiéis às regras democráticas. Na ausência disso, o autoritarismo toma à frente.

“Em quase todos os casos de colapso democrático que nós estudamos, autoritários potenciais – de Franco, Hitler, Mussolini na Europa entre-guerras a Marcos, Castro e Pinochet, durante a Guerra Fria, e Putin, Chávez e Erdogan mais recentemente – justificaram a sua consolidação de poder rotulando os oponentes como uma ameaça à sua existência” (2018, p. 107).

A segunda é a reserva institucional, ou seja, a prática de um partido ou político evitar tomar contra o adversário alguma medida que de fato o destrua, ainda que tal ação seja tolerada pela lei. O inverso disso é o jogo duro constitucional, na qual os partidos se batem dentro da lei, mas um deles leva ao limite legal suas ofensivas contra o outro. Um exemplo citado pelos autores é o impeachment de Fernando Lugo no Paraguai.

Na história da democracia dos EUA, tanto a tolerância mútua, quanto a reserva institucional entre os dois principais partidos se ergueram sobre uma base anti-democrática. Como assinalam no capítulo 6:

“As normas que sustentam nosso sistema político repousavam, num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução1 e os anos 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a desdemocratização do Sul e a consolidação das leis de Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no século XX. O ‘sólido Sul’ surgiu como uma força conservadora poderosa dentro do Partido Democrata, ao mesmo tempo vetando direitos civis e servindo de ponte com os republicanos” (2018, p. 140).

A luta por direitos civis na década de 1960 pôs em xeque esse arranjo e polarizou a sociedade estadunidense. A contradição entre a presença cada vez maior de negros, latinos e outras minorias étnicas, o avanço da luta por igualdade racial, e uma decadente camada de trabalhadores brancos no contexto de crise econômica, se expressou no alinhamento respectivamente ao Partido Democrata e ao Partido Republicano. Desse ponto de vista, a chegada de Trump à presidência não é o começo dessa história, mas seu ponto mais elevado até o momento.

Ao contrário de outros analistas, Levitsky e Ziblatt criticam a ideia de que há um recuo generalizado da democracia no mundo todo. Argumentam no capítulo 9 que “para cada Hungria, Turquia e Venezuela, há uma Colômbia, Sri Lanka ou uma Tunísia” (2018, p. 194-195). Listam ainda vários outros países, entre os quais o Brasil, onde a democracia estaria intacta. E a Europa, na qual as turbulências políticas não teriam afetado decisivamente as regras de convivência entre os principais partidos.

Contudo, assinalam que a ascensão de Trump é um fator que pode modificar esse diagnóstico. “O período 1990-2015 foi facilmente o quarto de século mais democrático da história mundial – em parte porque as potências ocidentais apoiaram a democracia. Isso pode estar mudando hoje” (2018, p. 195).

No plano interno dos EUA, preveem que a hipótese mais provável é o de aprofundamento do desgaste das grades de proteção democráticas. Independentemente do sucesso do presidente e seus asseclas, a crise é tão profunda que seguiriam a divisão entre os partidos, o abandono da tolerância e da reserva mútuas.

Assim, salvar a democracia dos EUA significa “… restaurar as normas básicas que a protegiam no passado”, já que em essência “sempre foram saudáveis”. Mas é preciso fazê-las funcionar “numa era de igualdade racial e de diversidade étnica sem precedentes” (2018, p. 218).

Algumas considerações
Quais as fronteiras da democracia? O que exatamente a caracteriza? Que linhas não podem ser cruzadas sob pena de pôr em risco o regime?

Segundo a análise de Levitsky e Ziblatt, a resposta reside nas regras informais que estabelecem a boa convivência entre os grandes partidos políticos em cada país. Daí vem sua compreensão de que é essencial renovar consensos mínimos, fortalecer as grades de proteção, a fim de salvar as democracias.

Os autores acertam quando identificam as desigualdades sociais na raiz desses acordos, no caso dos EUA. Mas falta notar que as grades de proteção democráticas são um escudo contra as demandas e mobilização populares – nesse caso de inclusão dos negros no sistema eleitoral.

A partir da crise de 2008 a boa convivência entre os principais partidos em vários países foi rompida porque passou a ser necessário encontrar novos caminhos para garantir os interesses dos proprietários dos bancos e grandes indústrias, contra os da maioria das populações.

E aqui é importante notar que a classe trabalhadora é no máximo um coadjuvante em Como as democracias morrem. O centro do palco cabe às instituições, às suas decisões, seus erros e acertos. E quando surge a mobilização popular, ela é aconselhada a não ir longe demais para não prejudicar ainda mais o combalido status quo.

É dentro dessa moldura que Levistky e Ziblatt apresentam a estratégia de uma ampla frente democrática. A condição para isso é a suspenção temporária de diferenças políticas importantes em nome do bem maior representado pela salvação do regime. Contudo, a nosso ver, os estratos da classe trabalhadora mais atingidos pela crise não encontram muitos motivos para defender uma democracia que lhes oferece poucas perspectivas. Por isso a análise em termos de democracia x autoritarismo é limitada para compreender os movimentos eleitorais que levam à ascensão de líderes de extrema-direita, por exemplo.

Voltando à pergunta do início: até onde vai a democracia, nos termos dos autores? Falta no livro uma definição mais clara disso. Em outro trabalho de Levitsky, ele aponta quatro elementos básicos. Em primeiro lugar, Executivos e Legislativos são escolhidos em eleições livres e justas. Em seguida, todos os adultos possuem direito ao voto. Os direitos políticos e as liberdades civis, inclusive a de imprensa, associação, de crítica ao governo sem retaliação, são amplamente protegidas. E, finalmente, os governos eleitos não são tutelados pelos militares ou líderes religiosos (2002, p. 53).

Aceitando que tais elementos não contradizem a argumentação do livro aqui resenhado, sob esse ponto de vista dificilmente uma Colômbia pode ser incluída na categoria de democracia sólida, como fazem ao professor de Harvard. O país está entre os campeões mundiais de mortes de defensores de direitos humanos. No caso do Brasil, os processos eleitorais brasileiros são fortemente influenciados pelo poder econômico dos financiadores de campanhas. Por via legal ou ilegal, o desequilíbrio entre as candidaturas dos grandes partidos e dos partidos ideológicos é abismal, nada se parecendo com uma competição justa. Nos EUA, o corajoso A nova segregação (2017), de Michelle Alexander, indica o entrelaçamento entre encarceramento em massa e perda de direitos políticos de parcela considerável da população negra norte-americana.

Por mais fora de moda que soe a alguns ouvidos, democracia sem predicado é uma noção vazia. Por esse termo entendemos democracia burguesa, um regime político cujo funcionamento se baliza nos interesses do lucro do capital financeiro, no qual as liberdades coletivas e individuais encontram seu limite nesses interesses. E como liberdades mais fundamentais, no fim das contas, restam apenas aquelas relacionadas à possibilidade de resistir às investidas legais ou ilegais de governos representantes dos grandes grupos econômicos.

Se os autores não restringissem sua análise às situações internas a cada país considerado, a começar dos EUA, o caráter autoritário da democracia apareceria com maior relevo ainda. Como já notou Perry Anderson, democratas e republicanos sempre acreditaram não existir conflito entre os valores estadunidenses e os interesses estadunidenses. Entre a relativa democracia interna e a imposição imperial externa.

Os regimes democráticos repousam sobre interesses de classe inconciliáveis. Por isso são essencialmente pouco permeáveis à participação dos trabalhadores. A burguesia financeira é profundamente anti-democrática. Quem duvida, que se pergunte: o que acontece quando a necessidade de lucros, impositora de reformas que roubam aposentadorias e outros direitos básicos, é colocada sem disfarces sob escrutínio popular?


Textos referidos

Alexander, M. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução: Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017.

Anderson, P. A política externa norte-americana e seus teóricos. Tradução: Georges Kormikiaris. São Paulo: Boitempo, 2015.

Levitsky, S.; Way, L. The rise of competitive authoritarism. Journal of democracy, Volume 13, n 2, abril de 2002. Disponível em: https://scholar.harvard.edu/levitsky/files/SL_elections.pdf Acesso em: 16 de out. de 2018.

Notas

1 Período compreendido entre o final da Guerra de Secessão em 1865 e mais ou menos 1877.

Israel Luz