Estética e arte em Marx: o inverso do boicote stalinista à arte

Por mais que exista um questionamento sobre a relevância do debate sobre arte e estética sob a ótica marxista, existe uma leitura sobre sua produção que não se restringe à relação do fazer artístico com o desenvolvimento das forças produtivas – apesar da conexão ser essencial para o entendimento. Antes mesmo da ontologia in statu nascendi, que surge com os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx escreve 3 livros – que se perderam no tempo – em 1842: “Tratado da arte cristã”, “Sobre a arte religiosa” e “Sobre os românticos”; além de suas cartas e críticas literárias que seguiram para além do Jovem Marx.

O debate sobre arte não é somente filosófico ou uma mera digressão, é a compreensão de um labor com uma particularidade. Trata-se da análise da consciência através de suas manifestações subjetivas e o entendimento de um trabalho que possui diferenças propositivas com os outros fazeres: a desnecessidade para a sobrevida humana, tendo como único propósito a manifestação subjetiva.

O pensamento estético marxista, que bebe tanto de Hegel quanto de Feuerbach, se diferencia de ambos com particularidades essenciais para que se compreenda histórica e, filosoficamente, tanto a criação artística quanto sua leitura posterior interpretativa. Nesse sentido é necessário fazer alguns apontamentos sobre a concepção e estética em Hegel e Feuerbach e a especificidade da elaboração de Marx a partir destes.

Hegel inicia sua obra “Estética” afirmando a inteligibilidade da arte, possuidora de caráter social, capaz de ser racionalizada tanto em sua criação quanto em sua leitura, dependente unicamente do contexto social do artista, negando seus sentidos. O belo natural – que é o belo submisso à natureza – foi superado, a arte seria o descontentamento do ser com a natureza, a vontade de ser o inverso à sua designação natural; um ato de rebeldia, mediadora entre o sensível e o inteligível, o finito e o infinito, o subjetivo e o objetivo; a tomada de consciência do absoluto a partir do sensível, resultado de uma atividade consciente além do aparente – mas com sua aparência já deixando entrever o que a ultrapassa.

O ponto em que as diferenças com Marx se aguça, Hegel vê a arte como o primeiro momento da consciência, seguido da religião e depois a filosofia. E, ainda, portadora de uma razão de ser separada por completo dos sentidos, unicamente dependente da formação do indivíduo como ser social.

Feuerbach contesta a filosofia hegeliana a partir de uma ótica que concebe a arte nos limites de sua constatação de existência do ser, conhecimento buscado apenas pelo saber empírico. Outra discordância – também salientada por Marx – é a dos três momentos lógicos da manifestação do Espírito. Feuerbach vê o sensível como oposição à teologia, capaz unicamente de representar o “verdadeiro, imediato, inequívoco”. Além disso, afirma a possibilidade da arte ter como único valor a contemplação, e nega a mediação dialética. A arte surgiria como negação à religião e à vida objetiva, um retorno à natureza, ao ser humano desalienado de volta à sua essência; atributo humano inato.

Emancipados de qualquer influência da objetividade, os sentidos colocariam a arte distante de qualquer racionalidade, seria o “órgão do absoluto”. O “materialismo sensualista”, que era a leitura da estética a partir unicamente do sensorial, punha o objeto artístico no finito e a essência do homem enquanto natureza.

Sobre a contestação de Feuerbach a Hegel, Marx escreve no “Manuscritos econômicos e filosóficos”:

A grande realização de Feuerbach é:

Ter mostrado a filosofia nada mais ser do que a religião trazida para o pensamento e desenvolvida por este, de vendo ser igualmente condenada como outra forma e modo de existência da alienação humana;

ter lançado os fundamentos do materialismo genuíno e da ciência positiva, ao fazer da relação social de “homem com homem” o princípio básico de sua teoria;

ter-se oposto à negação da negação que alega ser o positivo absoluto um princípio auto-suficiente, positivamente baseado em si mesmo.

Feuerbach explica a dialética de Hegel e, ao mesmo tempo, justifica a adoção do fenômeno positivo, aquele que é perceptível e indubitável, como ponto de partida, da seguinte maneira: Hegel principia pela alienação da substância (logicamente, pelo infinito, pelo universal abstrato), pela abstração absoluta e fixa; i. é, em linguagem comum, pela religião e pela teologia. Em segundo lugar, cancela o infinito e postula o real, o perceptível, o finito e o particular. (Filosofia, cancelamento da religião e da teologia.) Em terceiro lugar, a seguir revoga o positivo e restabelece a abstração, o infinito. (Restabelecimento da religião e da teologia.)

As reflexões de Marx sobre a estética são inseparáveis de suas elaborações acerca do domínio econômico; as conclusões artísticas caminham de mãos dadas com o sentido da atividade humana. Na diferença com Hegel, o principal ponto é a separação entre objetivação e alienação. A partir de Marx existe uma compreensão muito mais elaborada do trabalho como atividade material que perpassa entre o homem e a natureza, criando o mundo dos objetos humanos – retirados da natureza com modificações, mudando o contexto e a função primária.

A tese da diferença de natureza entre o homem e o animal irracional desperta, em Marx, uma elaboração que, nesse ponto, vai mais ao encontro da Estética de Hegel do que com a de Feuerbach; seria absurda a alegação de que a produção artística não sofra nenhuma influência da realidade – para além do sensitivo.

Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx entende a arte como um desdobramento do trabalho; ambos separam o homem da natureza, transformam-na e a moldam de acordo com seus interesses. A atividade artística teria uma dimensão humana essencial e insubstituível, sem a ambiguidade hegeliana que concedia a liberdade de expressão apenas aos que rompiam com a natureza. Nesse ponto, Marx bebe tanto em Hegel quanto de Feuerbach para traçar uma lógica de pensamento estético: valoriza os sentidos como meio de afirmação do homem sem sua inferioridade perante a teoria, porém, sem negar a influência direta e vital da realidade objetiva e da história na criação e no pensamento ante o fazer artístico.

Diferente de Feuerbach, na elaboração sobre a influência sensorial na produção, Marx também bebe da ideia de emancipação dos sentidos, libertando-os das malhas da alienação social; sendo este sentido mutável, integrante do processo de humanização: “A formação dos cinco sentidos é obra de toda a história passada”; porém, opondo-se veemente à ideia de imediatez feuerbachiana, originando outro sentido à função da arte. Para Marx, não é possível que haja contemplação de uma obra desvinculada por completo do Belo Natural, e os sentidos, embora pertencentes ao homem não apenas enquanto animal, mas também enquanto ser social. Afinal, os sentidos sã perpassados por determinações oriundas da história da humanidade e do presente em que se vive, recebendo, portanto, influências da realidade objetiva de modo a se desvencilhar do puramente natural. É, assim, influenciado pelo desenvolvimento das forças produtivas.

A arte está para Marx como parte do processo de formação da humanidade. Não é uma celebração, nem uma contemplação desinteressada. É a formação de uma perspectiva que não é inerente aos seres humanos, e sim formado perante a existência da sociedade. Marx discorda do ativismo abstrato de Hegel, transformando a temporariedade em bases materiais estruturantes e hierarquizantes da realidade social do ser humano.

A práxis segue, mesmo no campo da arte, como centro conceitual. E articula suas diferenças precisas com o idealismo e com o materialismo vulgar. Marx não enxerga a arte como pura manifestação espiritual, desmembrada por completo do sensorial; porém, também discorda do empirismo de Feuerbach, não enxergando a beleza estética apenas no que é natural. A natureza e o homem se relacionam e se modificam, a arte é vista como atividade de efeito humanizador – por não ter como sua centralidade as necessidades de sobrevivência.


União Soviética e o “Realismo Socialista”

Existe uma grande polêmica que vem do período da União Soviética acerca do que seria a arte proletária. Para Stalin, a única maneira possível do fazer artístico seria a partir de uma ótica do Estado: a arte seria apenas uma ferramenta de propaganda que estaria a serviço de “ideais revolucionárias”. Já para Trotsky, a defesa da arte se dava a partir dos princípios da Revolução de Outubro, estimulando a diversidade e inovação: a revolução se estendia à libertação artística.

Além disso, há uma “confusão” criada propositalmente entre o Realismo que Marx debate com Hegel e Feuerbach e o Realismo enquanto movimento artístico francês. O elemento que Marx debate teoricamente é a influência (na maioria das vezes involuntária, imperceptível) dos elementos da realidade em relação as obras subjetivas; influência tanto da natureza quanto do meio em que se está inserido, sendo isso um pressuposto abstrato de sua existência essencial; de forma alguma dando brechas para interpretações que concedam a teoria como o subjetivo (as obras de arte) precisando estar a favor de uma realidade.

Em 1932, quando os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx começaram a circular na União Soviética – o livro teve circulação bastante tardia –, as direções do Partido Comunista esconderam a obra que em nada corroborava para o boicote cultural existente no momento. Em 1934, em Moscou, realizou-se o Primeiro Congresso dos Escritores, que estabeleceu como estética oficial o “realismo socialista”. Máximo Gorki e Zdanov postularam essa nova concepção usando como base a “teoria do reflexo” e o “romantismo revolucionário”. Ponto completamente inverso às posições de Marx, cujo conteúdo era ancorado à tipicidade, a arte existindo enquanto práxis. O que houve na URSS stalinista foi contrário ao marxismo em todos os aspectos, inclusive na questão estética, artística e cultural.

Trotsky e Breton no Manifesto da Fiari contrapõem a ideia stalinista da elaboração de um “realismo socialista” como pré-requisito artístico para a existência das obras, e discutem a existência da “arte proletária” unicamente possível dada a destruição do capitalismo, existindo apenas quando concebida dentro de um Estado operário, livre das mazelas do capitalismo, com mais liberdade e riqueza de pensamentos e reflexões. Seria o momento de maior diversidade e profundidade estética. Porém, na atualidade, temos de aproveitar e aprender com as escolas artísticas clássicas e contemporâneas, sem uma exigência de cunho político ou de sua retratação da realidade, afinal, a arte tem seu papel libertador em um termo próximo à filosofia: o de estimular.

A construção de uma sociedade socialista está no marco da emancipação do homem, não se restringindo às esferas econômicas e políticas. Essa emancipação também libertará o homem em seus sentidos.


Referências bibliográficas


(1) FREDERICO, celso. A arte no mundo dos homens. 1ª edição. São Paulo: Expressão popular, 2013.

(2) MARX, karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2004.

(3) TROTSKY, leon, BRETON, andré, RIVERA, diego. Por uma arte revolucionária independente. https://www.marxists.org/portugues/breton/1938/07/25.htm

(4) TROTSKY, leon. Literatura e revolução. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

(5) MARX, karl, ENGELS, friedrich. Cultura, arte e literatura. 2ª edição, São Paulo: Expressão popular, 2012.

(6) SÁNCHEZ, adolfo. As ideias estéticas de Marx. 3ª edição, São Paulo: PAZ TERRA, 1968.

(7) HEGEL, friedich. Estética, A ideia e o ideal. 1ª edição, São Paulo: Nova Cultura, 1968.

(8) HEGEL, friedich. Estética, O belo artístico. 1ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1968.

Fabiana Wolf