Quantas vezes escutamos e respondemos esta pergunta… no meu caso, acredito que já foram milhares. Quase sempre paciente, respondemos, respondemos… e continuaremos a responder. Só que desta vez resolvi escrever. Como sempre, meu caro leitor, é preciso limpar o terreno: o que é utopia?

A palavra utopia vem sendo empregada para designar um lugar (um topos) que não existe, que ainda não existiria, como algo não real, lugar que não existe. Este é um significado bastante ligado a etimologia da palavra. Outro sentido é aquele que diz que utopia são grandes visões de mundo, de sociabilidade e que também não existem ainda, mas são capazes de mover milhares de pessoas na construção deste lugar, ou forma de viver, que ainda não existe mas movidos pela utopia, poder-se-ia caminhar rumo a sua construção. Todavia, no senso mais comum a palavra utopia é empregada de forma hegemonicamente pejorativa para designar sonhos irrealizáveis, coisas sem fundamentos na realidade, delírios, imaturidade, algo impossível de ser alcançado. É sobretudo a este último sentido que resolvi escrever aos meus caros leitores, me opondo absolutamente contra esta forma tacanha do entendimento de utopia, detidamente: o socialismo como uma utopia.

Como introdução ao assunto é preciso dizer ainda que a designação de utopia em relação ao socialismo é feita por intelectuais que tentam revestir sua covardia com belas palavras para dizerem que o socialismo é um sonho bonito e que influenciou milhares de vidas… tudo isso conjugado do passado imperfeito da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Neste caso, sustento que o intelectual que assim o faz, procede em decretar o fim da história, não apenas do socialismo, mas da necessidade de emancipação humana, em defesa da sociabilidade burguesa. Covarde, por que não é capaz de assumir com honestidade intelectual o projeto capitalista de ceifar vidas inteiras para garantir o bem viver de uma classe apenas. Chamarei estes intelectuais, aqui, de filisteus, em constante referência teórica a Marx e Trotsky quando das polemizações com seus oponentes.

Na boca e na caneta de muitos filisteus o socialismo não passa de uma utopia, pois os que defendem esta forma de produzir e reproduzir a vida careceriam de serem mais realistas, no caso, o comunismo seria uma falta de senso de realidade. Vejamos nas palavras do míope intransigente, David Horowitz: “En la práctica, el socialismo no funciona. Pero el socialismo no podría haber funcionado, porque se basa en premisas falsas acerca de la psicología y de la sociedad humana, y la gran ignorancia de la economía humana”. Problematizaria: de qual prática Horowitz se refere para inferir o seu não funcionamento? Quais são as falsas premissas sobre a psicologia e da sociedade humana sobre a grande ignorância da economia humana? O filisteu não diz uma única frase, assim como Alena Ivánovna (“um piolho…”) diande de Raskólnikov[1] , apenas determina de forma absoluta para tentar conquistar um púbico determinado. Digo que isto sim seria uma espécie de utopia, utopia como ideologização, neste caso, puro cinismo, escárnio, pois não apresente nenhuma crítica além de colocar como um representante do pensamento conservador que tem em parte das redes sociais o seu momento de vaidade.

Afirmam que os socialistas defendem uma política utópica, que falta realismo para entender o mundo. Pois bem, estes filisteus estão completamente errados. Erram por ignorarem a realidade que está a dois dedos de seu nariz, ou erram propositalmente, neste caso, como disse, por puro cinismo.

O conjunto de filisteus de salão não é pequeno, vejamos apenas mais um para garantirmos o plural da lata de lixo da história. Aqui quem escreve é um conhecido dos brasileiros, Fernando Henrique Cardoso, cínico como a agiota Ivánovna, quando questionado sobre a existência de o espaço para a ideologia e utopia: “Não é grande, mas algum espaço sempre existe”[2] , responde ele ao entrevistador, associando utopia com falta de racionalismo e ideologia como desejo político, tudo isso regado em uma perspectiva de ideologia e utopia publicado por Karl Mannheim.

Muito já se escreveu e ainda se escreve sobre a morte do socialismo e sua suposta derrota, tendo por base as experiências soviéticas. Todavia é preciso observar a história com mais cautela e não aligeirar análises que se fundamentam em impressões ou meras postagens de redes sociais. Todas estas novas plataformas são hospedeiras de fontes históricas importantes, mas atenção: são fontes, devem ser tratadas como tal.

Sobre o socialismo é importante esclarecer alguns pontos centrais para nossos leitores. Do que se trata esta palavra? O que é o socialismo que comparece na boca dos filisteus sem nenhum critério de indicação, análise e caracterização… assim como se poderia fazer um “bala de côco” (até mesmo a bala possui critério para ser realizada) … generalizando, tratando a coisa de forma abstrata e vazia.

O socialismo que me refiro neste artigo é o socialismo científico desenvolvido inicialmente por Marx e Engels e nesta perspectiva, socialismo não se relaciona com absolutamente nada que seja vazio ou meramente abstrato.

O socialismo desenvolvido no século XIX é chamado de científico porque trata do real, da realidade, daquilo que existe. Não é científico por se tratar de um departamento universitário onde pessoas (cientistas) usam jaleco e desenvolvem seus experimentos em laboratórios. O socialismo científico é chamado assim por ser propor desenvolver um entendimento, necessariamente, racional e coerente diante das fontes históricas disponíveis. Não se preocupa, nesta perspectiva, em produzir um conhecimento idealista, calcado no subjetivismo do analista, ou ainda no relativismo entre sujeito e objeto. Não permite espaço para o pragmatismo ecletista que determina seu entendimento de acordo com as marés das relações de poder de cada momento ou agencia financiadora.

O socialismo científico trata da realidade concreta, da síntese de múltiplas determinações. Em outras palavras, o socialismo (não nos referimos a um certo socialismo vulgar, temos como referência aqui o próprio Marx) se ocupa daquilo que existe, aqui e agora, de milhares de trabalhadores que produzem toda a riqueza social e ao mesmo passo vivem na miséria. Trata de apresentar a crítica daquilo que existe agora, não no amanhã, ou ainda daquilo que ficou “preso” em um passado.

Marx, não escreveu “O Comunismo”, como a sua obra maior, mas sim “O Capital: crítica da economia política”. O socialismo é fruto da realidade concreta, se constitui nela e pretende transformar radicalmente a sociedade existente. Não cabe ao socialismo nenhuma pecha de ilusório, pois este trata justamente de desvelar as ilusões apresentadas pelo pensamento burguês através de suas ideologias. Não cabe a acusação de que os socialistas devem ser mais realistas, pois é o próprio socialismo a forma de pensamento da classe trabalhadora, inicialmente da vanguarda do proletariado europeu diante da necessidade real de se organizarem internacionalmente para combaterem a exploração capitalista. Os socialistas não tratam de utopia, mas sim da sociedade burguesa e suas relações de produção ajustadas aos interesses de uma das classes sociais predominantes: a burguesia.

Veja, meu caro leitor, até aqui só falamos de coisas reais, da vida de milhares de seres que vivem para o trabalho imposto, estranho e que só lhes arranca a vida. Se o filisteu deseja falar de utopias, de sonhos irreais, este deveria falar de si mesmo enquanto membro da classe dominante e de seu programa político onde a vida da classe trabalhadora pouco tem valor no que se refere a humanização, a emancipação humana.

Considerando que o filisteu de salão diz se preocupar em não ser sonhador e utópico, vejamos, de verdade, onde é que se encontra a falta de realismo e mesmo o delírio do míope intransigente, que insiste em negar o que está diante dos seus próprios olhos: a realidade que o socialismo jamais ignorou!

Hoje no Brasil, são mais de 14 milhões de trabalhadores desempregados… nenhum deles são empreendedores de sucesso como prega o pastor da Filisteia! Mais da metade da classe trabalhadora vive de trabalhos informais, como bicos e vendas de produtos para o consumo direto. Milhares de mulheres são vítimas da violência e dos trabalhos empregados, a maioria absoluta vive em situações de precarização extraordinárias!

Milhões de pessoas passam fome no mundo, países como Etiópia e Somália se mostram incapazes de resolver a guerra civil, e antes que o filisteu diga alguma coisa, nos estados Unidos a população também sofre com a fome, desemprego e habitação… não, estas realidades não são uma exclusividade do continente africano, pois trata-se do modo de operação do próprio sistema capitalista. Trata-se da lógica da economia política da sociedade burguesa. E aqui não nos deteremos a questão moral (embora ela seja importante), pois a lógica do modo de produção capitalista independe da moral para se reproduzir no tempo presente.

Como é possível observar milhares de trabalhadores em situação de rua e dizer que o mundo vai bem? Como é possível depositar o discurso de sucesso em uma sociedade em que bilhares de trabalhadores, a maioria mulheres, são explorados recebendo salários? Acredita-se que trabalhando (vendendo força de trabalho) arduamente, todos podem ter uma vida maravilhosa onde os planos serão realizados pois se dedicaram o suficiente para merecerem uma posição de destaque na sociedade… Veja, caro leitor… onde fica mesmo a utopia??? Quem é que está ignorando a realidade? Quem é mesmo o sonhador? Certamente não somos nós socialistas!

O filisteu mente, e mente desesperadamente, pois precisa esconder a realidade da classe trabalhadora. Não tem nenhum compromisso com a realidade para além do seu bolso. A verdade não é critério na sua prática. Se precisarem mentir, falsificar, traficar, vilipendiar, assassinar nações inteiras eles o farão. E poderíamos exemplificar estas práticas, minimamente com muita segurança, desde o Século XV até o XXI, sem muitos esforços.

O socialismo é uma utopia?

O filisteu é que tem que ser mais realista!

De forma intransigente ele nega a intervenção militar contra os trabalhadores pobres no Rio de Janeiro, nega a existência da desigualdade social no Brasil, nega a população carcerária que é uma das maiores do mundo, onde mulheres são obrigadas a dar à luz nas cadeias! Ele nega o papel de polícia assassina das foças armadas no Haiti, nega que o fato de o Brasil ser o décimo país mais desigual do mundo, nega o racismo, nega a fara dos privilégios e mordomias dos juízes e políticos, nega a opressão contra as mulheres, nega a realidade onde o estado sionista de Israel confina os trabalhadores palestinos na Faixa de Gaza!

O socialismo é uma utopia?

O filisteu é que tem que ser mais realista!

Como o caro leitor pode observar, o socialismo nunca foi uma utopia, mas a expressão da realidade da sociedade de classes, onde a necessidade grita com a fome, com a morte, diante do corpo de trabalha incessantemente durante toda vida. O socialismo trata de entender a realidade desigual e combinada internacionalmente e a sua superação. Não há espaço para devaneios ou sonhos com coisas que aqui e agora ainda não existem. O socialismo científico é uma forma de mudar a vida que existe para bilhões de trabalhadores por todo o mundo, não se trata de ignorar a realidade, mas efetivamente de entender e transformar esta realidade onde o filisteu goza com o trabalho alheio, coberto por um manto “sagrado” do direito democrático dos ricos.

Por mais que sapateiem os filisteus, enquanto existir capitalismo, existirá o socialismo revolucionário e nosso papel é não dar um só dia de paz a este míope teimoso que bem sabemos… enxerga muito bem, por isso o desespero em combater o socialismo revolucionário. Sabe que o Socialismo trata de apontar o dedo na cara da classe dominante e que isso pode significar o fim dos seus privilégios e suas ações que pregam uma vida linda onde na verdade reina a coisificação e a condenação à morte pelo trabalho alienado.

O socialismo é uma utopia?

Não, utopia é acreditar que é no capitalismo que encontraremos justiça, moradia, realização e humanização. Utopia é acreditar que o capitalismo é a melhor forma de se viver. Utopia é negar a realidade e a forma de funcionamento da produção de valor. Utopia é acreditar que trabalhando bastante um dia também se levará o seu filho para fazer selfie com o Mickey Mouse na Flórida. Utopia é defender o patrão achando que ele é seu amigo, utópico é vestir a camisa da empresa achando mesmo que ela é sua família (…). Utopia é achar que recebendo um salário será possível ter a sua própria casa… e levantar pela manhã para tomar aquele café colonial com as crianças. Utopia é ir ao posto de saúde e achar que vai ter médico especialista (pediatra por exemplo) antes de seis meses!

Talvez a palavra utopia pudesse ser, neste caso, para o filisteu, trocada por uma outra.

Quem é o sonhador mesmo?

Com a palavra, os dançarinos da burguesia: os filisteus.


[1] Em referência aos personagens de Fiódor Dostoiévski em Crime e Castigo, publicado em 1866 na Rússia.

[2] Bloco 4 da entrevista concedida a Marcos Antônio Beal, São Paulo, em 23 de setembro de 2013.